As crianças que vendem bandeiras de Timor-Leste para a festa de restauração da democracia

Aproximadamente 52 mil menores no país (entre os cinco e 17 anos) são sujeitos a algum tipo de atividade laboral incompatível com a idade, revelou um estudo da Comissão Nacional contra o Trabalho Infantil/Foto: Diligente

Nas vésperas da data em que se comemora a independência do país, o trabalho infantil, percetível a cada esquina da capital, serve como lembrete de que o futuro da nação deve ser mais bem cuidado.

A poucos dias da celebração dos 22 anos da restauração da independência, a 20 de maio de 2024, as ruas da capital enchem-se de crianças a vender bandeiras de Timor-Leste. Com o símbolo oficial do país em riste, os menores trabalham para ajudar a família.

Ao longo do tempo, a presença de crianças a deambular pelas vias de Díli a vender produtos diversos, ilustra, na verdade, o desafio de melhorar os indicadores socioeconómicos da nação de 1,3 milhões de habitantes, onde quase metade da população ainda vive na pobreza.

Segundo o último relatório (divulgado em março deste ano) da Organização das Nações Unidas, que avalia o bem-estar dos cidadãos no mundo, entre 2015 e 2022, Timor-Leste desceu 18 posições no ranking que mede o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), passando a ocupar o 155º lugar entre 193 países analisados.

Conforme o estudo, em geral, os timorenses sobrevivem com 1,60 dólares por dia, muito abaixo da linha da pobreza internacional: 2,15 dólares por dia.

Um outro relatório divulgado no início deste ano, elaborado pelo Banco Mundial, revelou que apenas 30% da população em idade laboral (cerca de 234 mil pessoas) está empregada formalmente, ou seja, com algum tipo de contrato de trabalho. A maioria dos trabalhadores em Timor-Leste ou está desempregada ou atua informalmente.

Nesse contexto, muitos jovens começam a trabalhar precocemente, para ajudar a sustentar as suas famílias. De acordo com um estudo da Comissão Nacional contra o Trabalho Infantil (CNTI), que fez um levantamento no país entre 2016 e 2022, aproximadamente 52 mil menores (entre os cinco e 17 anos) são sujeitos a algum tipo de atividade laboral incompatível com a idade.

Elaborada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), uma agência especializada das Nações Unidas que se dedica a promover a justiça social e os direitos laborais no mundo, a Declaração sobre Princípios e Direitos Fundamentais estipula que todos os países membros da entidade, como Timor-Leste, atuem para a “abolição efetiva do trabalho infantil”.

A OIT considera a desigualdade social, a ausência de uma educação pública de qualidade e a falta de medidas que promovam o planeamento familiar como alguns dos fatores que mais contribuem para a existência de menores a trabalhar.

Segundo a agência especializada da ONU, o trabalho infantil reforça problemas psicológicos, colabora para um baixo rendimento escolar, prejudica a socialização, a preparação para o mercado de trabalho e compromete o desenvolvimento intelectual da criança e futuro adulto.

Neste sentido, enfatiza a OIT, o trabalho infantil constitui uma violação dos direitos humanos fundamentais, por impossibilitar que os menores se desenvolvam de forma integral e vivam convenientemente a sua infância.

A Constituição da República Democrática de Timor-Leste (CRDTL), nas alíneas a e b do artigo 18.º, destaca que as crianças “têm direito à proteção especial por parte da família, da comunidade e do Estado, particularmente contra todas as formas de abandono, discriminação, violência, opressão, abuso sexual e exploração”.

Alheios a estas definições e conceitos, os menores continuam nas principais artérias da capital, dia e noite, a empunhar bandeiras de Timor-Leste. Numa segunda-feira, a equipa do Diligente foi acompanhar a movimentação destes jovens cidadãos.

Na avenida Governador Alves Aldeia, estão dois meninos, um deles com uma bandeira pelas costas e o outro com outras mais pequenas nas mãos. Aguardam, sob o sol abrasador, que algum condutor pare o veículo e adquira os seus produtos.

Quando saem da escola, enquanto os colegas vão para casa descansar ou passear para o Timor Plaza, GM e LM ficam na rua a trabalhar/ Foto: Diligente

LM, 12 anos (à direita na foto) e GM (à esquerda), de 11 anos, frequentam o 5.o ano na Escola Primária de Tuanalaran e moram em Balide. À tarde, depois de terminarem as aulas, os amigos vão tentar a sua sorte na rua, na esperança de conseguirem algum dinheiro. Os pais de ambos estão desempregados e a falta de dinheiro é constante.

LM é o sexto filho de oito irmãos. GM é o segundo filho de quatro irmãos. Quando saem da escola, enquanto os colegas vão para casa descansar ou passear para o Timor Plaza, eles ficam na rua a vender qualquer coisa – neste caso, as bandeiras de Timor-Leste.

Questionados sobre o que sentem por terem de trabalhar, LM, cabisbaixo, limitou-se a chorar. Já GM, virou a cara para o lado e fingiu ignorar a tristeza do amigo. Por norma, vendem até às 20h e, muitas vezes, voltam para casa sem lucro.

Perto dali, encontramos RM, de 11 anos, e a sua irmã, IM, de 10 anos. São estudantes na Escola Primária da Tuanalaran. O menino sonha ser primeiro-ministro e a menina quer ser médica. “Estamos aqui, porque o nosso pai nos mandou. Precisamos de ganhar dinheiro”, explicam.

O vendedor ambulante João Batista Mendes, de 36 anos, pai de RM, IM e de mais quatro filhos quer educá-los para serem “independentes” desde cedo, tal como foi ensinado. “Quando era criança, vendia arroz embrulhado para ajudar a minha família e não me senti mal por isso. Tinha de sobreviver”, sublinhou.

João Mendes acrescentou ainda que, durante 22 anos de restauração da independência, o povo tem vivido com muitas dificuldades, enquanto os ema boot (governantes) e os seus familiares “vivem em abundância”.

Na rua António Heitor, perto de um conhecido hotel da capital, encontramos duas meninas a oferecer bolachas e bandeiras. MS, de 13 anos, e SC, de 8, explicaram que vendem naquele local, “porque passam por aqui pessoas com muito dinheiro”.

MS é estudante do 8.o ano do Ensino Básico do Farol e SC está no 2.o ano da Escola Primária de Vila Verde. “Às vezes, conseguimos levar 10 dólares para casa, outras vezes, vamos de mãos a abanar”, lamentaram. Tal como LM e GM, as famílias das meninas também passam por dificuldades financeiras e, por isso, elas têm de trabalhar.

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MS e SC numa rua da capital: “passam por aqui pessoas com muito dinheiro” / Foto: Diligente

Na rua Nicolau Lobato, vemos três meninas à frente de uma agência bancária: AS, 11 anos, estudante do 8o ano do Ensino Básico do Farol; LS, 12 anos, aluna do 9o ano na mesma escola e SM, 16 anos, que já terminou o ensino secundário, mas por falta de recursos financeiros, não conseguiu ainda ingressar no ensino superior.

Ao Diligente, as menores explicaram que a escolha do local de trabalho tem uma razão: “As pessoas entram para levantar dinheiro, então, quando saem, podem comprar”. Argumentam que são obrigadas a trabalhar, caso contrário não têm como pagar transporte, alimentação e materiais escolares.

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As meninas em frente à agência bancária: “As pessoas entram para levantar dinheiro, então, quando saem, podem comprar” /Foto: Diligente

Questionada sobre o que diz a OIT sobre o trabalho infantil e o que consta na CRDTL, AS fica incomodada: “Isso não é da sua conta. Se nos proibirem, têm de nos dar dinheiro para que possamos viver. Não estamos aqui porque queremos, entendeu?”.

Não muito longe dali, encontramos ER, de 6 anos, estudante do 2. o ano da Escola Primária de Rumbia e o seu pai, deficiente físico, a venderem pulsa, cigarros e, claro, bandeiras.

O sonho da menina é ser professora. Para isso, vai à escola de manhã e, à tarde, ajuda o pai, Elvis de Oliveira, de 54 anos, que recebe trimestralmente um subsídio do Ministério da Solidariedade Social para pessoas com deficiência, no valor de 180 dólares, quantia insuficiente para fazer face às inúmeras despesas da família.

“Esta quantia não chega para pagar a renda da casa (60 dólares americanos), comprar arroz e outras necessidades básicas. Graças a Deus, a minha filha vem ajudar-me todas as tardes”, contou.

Por norma, trabalham entre as 18h e às 20h. “Ganhamos apenas 10 dólares. Ela vende para conseguir ter algum dinheiro para comprar comida na escola. Se não for assim, os colegas comem e ela fica a olhar”, lamentou.

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ER, 6 anos, e o seu pai, deficiente físico/ Foto: Diligente

Em março do ano passado, o Parlamento Nacional aprovou uma legislação específica (lei nº6/2023) centrada na proteção de crianças e jovens em perigo “e sensível às suas necessidades”.

O segundo parágrafo do artigo 3º da referida lei cita que os menores estão em perigo quando: “não recebem, de forma grave ou reiterada, os cuidados de alimentação, saúde, educação; são obrigados a atividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou desenvolvimento; estão sujeitos, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança, equilíbrio emocional, bem-estar ou desenvolvimento”.

A legislação insta ao Ministério da Solidariedade Social, autoridades policiais, Ministério Público, tribunais e entidades que trabalham na defesa dos direitos dos menores a atuarem na sua proteção. Será que essa lei é inócua? Não são as crianças e os jovens o futuro da nação?

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