Crocodilo em Timor-Leste: “avô” no mito, predador na realidade

O crocodilo concentra-se em várias zonas do mar e lagoas de Timor-Leste/Foto: Pixabay

Embora seja considerado sagrado pelos timorenses, o réptil, quando ameaçado ou com fome, ataca. No país, dados do Governo revelam que, entre 2006 e 2023, 41 pessoas morreram, vítimas de trágicos encontros com os animais. Os números, contudo, podem ser ainda maiores, devido às dificuldades em monitorizar áreas remotas. Para tentar salvar vidas, a ONG Conservation International criou um projeto de gestão de crocodilos, que segue sem previsão para ser implementado.

Reza a lenda que Timor-Leste nasceu de um crocodilo (lafaek, em tétum). O animal, já velho e cheio de fome, decidiu procurar comida em terra, mas sem forças para regressar à água, foi ajudado por um rapaz. Em retribuição, o réptil ofereceu-se para o transportar às costas sempre que ele quisesse navegar. No entanto, a certa altura, o animal pensou em comer o jovem. Logo foi dissuadido pelos outros animais que lhe disseram que estava a ser ingrato. Envergonhado, decidiu partir para longe e convidou o rapaz para ir com ele, em busca de um disco de ouro, perto do sítio onde nasce o Sol. Viajaram, mas o crocodilo, já exausto, decidiu parar para descansar um pouco e o seu corpo transformou-se numa ilha. O rapaz transformou-se num homem e tinha ao pescoço o disco de ouro de que o velho animal lhe falara. Depois de explorar a ilha, decidiu chamar-lhe Timor, consta no reconto de João Pedro Mésseder e Isabel Ramalhete, no livro Contos e Lendas de Portugal e do Mundo.

Devido a esta lenda, que descreve a formação de Timor-Leste como resultado de uma comunhão entre a natureza e os humanos, grande parte dos timorenses considera o crocodilo como sagrado. Presente nas águas do mar de Timor e responsável por mortes, o réptil, no país, é carinhosamente chamado de “avô”.

No seu texto As lendas de Timor e a literatura oral timorense, o doutor em Cultura e Comunicação, Vicente Paulino, ressalta que, em Timor-Leste, o crocodilo é considerado como um parente. “Em alguns pontos da ilha, existe uma forte ligação de parentesco com este animal, que não se pode matar ou comer, por ser considerado avô lulik – avô sagrado”.

Neste sentido, acredita-se que o “avô” só ataca as pessoas más, poupando os que têm bom coração. No entanto, a realidade mostra que quando a fome aperta, o predador não se importa com a bondade ou maldade da presa.

Ilustrações da lenda timorense/Foto: Miriam Reis e Ana Biscaia (Manual de Temas de Literatura e Cultura do 10º ano do Ensino Secundário Geral Timorense).

Ataques

À uma da tarde de 21 de janeiro de 2021, o pescador Marcelino Gomes e o seu amigo Edy foram pescar na lagoa Mota Ain (encontro entre água do mar e ribeiras, em português), onde os crocodilos costumam ficar para caçar os animais que vão lá beber água.

O lugar situa-se a 50 metros do mar, na aldeia de Ratahu, do Suco Uma Wain Kraik, no município de Viqueque.

Embora esteja bem visível um sinal de aviso da presença de “crocodilo perigoso”, Marcelino Gomes e cidadãos daquela área acreditavam que, por serem boas pessoas, não seriam atacados, conta Trinito Gomes, sobrinho de Marcelino.

Ao chegarem lá, os dois amigos entraram na água. O sobrinho relatou que havia muita lama na lagoa, o que ajuda a camuflar a presença do animal. “Edy lançou primeiro a rede para a água e empurrou-a, mas não apanhou nada, como de costume. Ele queria ir mais fundo, mas teve medo de encontrar algum crocodilo. Marcelino encorajou-o, dizendo: ‘Os crocodilos são nossos avôs, não nos vão fazer mal’.” Trinito explica que Marcelino andou um pouco mais para a frente. “De repente, um crocodilo mordeu-o na cintura com as suas poderosas mandíbulas, enquanto abanava a presa de um lado para o outro. Edy, aterrorizado, bateu com a rede no animal para que ele largasse o amigo, mas em vão. O ‘avô’ arrastou-o para o fundo da lagoa”.

Todos os familiares foram procurar o cadáver. Segundo o costume, conta Trinito, quando há casos como este, o lia nain (dono da palavra) da uma lisan (casa sagrada, em português) chamada Uma Bee, situada naquela área, é informado para fazer um ritual ao réptil para que devolva o corpo à família.

“Procuramos o cadáver durante todo o dia. Por causa das fortes ondas do mar, a água salgada entrou na lagoa, que encheu, dificultando a busca. Até à meia-noite, a corrente acalmou e a água desceu para o mar, foi então que vimos um grande grupo de crocodilos a disputar o corpo do meu tio. Conseguíamos ouvir o som das mandíbulas enquanto os predadores mastigavam os pedaços do corpo. Na água, víamos sangue e gordura humana. Não fomos capazes de tirar o corpo”, contou Trinito Gomes, visivelmente perturbado.

Às 14h, o jovem e familiares conseguiram encontrar a perna esquerda e o resto do intestino de Marcelino. A família juntou os membros para realizar a cerimónia fúnebre.

No ano seguinte, a 19 de junho de 2022, aconteceu o mesmo ao seu amigo pescador, Edy. O homem foi atacado, precisamente no mesmo local, por um crocodilo, que apenas deixou o tronco para que a família pudesse celebrar o funeral.

Marcelino e Edy fazem parte das dezenas de pessoas mortas nos últimos anos, vítimas de trágicos encontros com os animais. De acordo com o Departamento do Controlo das Comercialização e Caça de Espécies Protegidas (DCCCEP), vinculado ao Ministério do Turismo e Ambiente, entre 2006 e este ano, houve 89 ataques de crocodilos a pessoas no país, dos quais 41 resultaram em mortes, sendo 34 homens e sete mulheres.

blank
Fonte: DCCCEP

De acordo com o DCCCEP, o município que mais concentra ofensivas dos animais contra humanos é Lautem, com 42 casos, sendo 27 mortais; seguido de Covalima (18 casos, quatro mortais) e Viqueque (11 casos, quatro mortais). Devido às limitações, muitas vezes, em monitorizar áreas remotas do país, a tendência é de que estes números, na realidade, sejam ainda maiores.

blank
Fonte: DCCCEP
Plano de gestão de crocodilos

O diretor nacional da Organização Não-Governamental (ONG) Conservation International – que desenvolve projetos de proteção ambiental em vários países –, Manuel Mendes, argumenta que a crença nos crocodilos como “avôs” é uma das principais causas para a existência de ataques. “Respeitamos a lenda, a história e a cultura de Timor-Leste, mas acreditar que o crocodilo só ataca pessoas que cometem erros não se justifica cientificamente. Quando não há comida e o animal está com fome, se uma pessoa entra no seu habitat, é natural que ele a ataque, independentemente de ser pecador ou santo”, afirmou Manuel Mendes.

Outra causa tem a ver com as dificuldades financeiras das famílias que vivem nos lugares de risco. “Por falta de emprego, muitas pessoas pescam para sobreviver, colocando as suas vidas em perigo. Às vezes, na margem da lagoa, não encontram peixe e avançam, podendo facilmente ser atacados pelo animal”, explicou o diretor.

Na tentativa de impedir que mais pessoas sejam vítimas de investidas dos répteis, a CI-TL elaborou um plano de gestão de crocodilos. “Pretendemos instalar alguns instrumentos modernos à beira-mar, como câmaras e sensores, principalmente nos locais de risco, para podermos acompanhar a movimentação destes animais e detetarmos a sua quantidade”, detalhou Manuel Mendes.

A ONG também pretende desenvolver ações de sensibilização com as comunidades que vivem próximas a áreas consideradas como sendo de risco, alertando com mais sinais e aconselhando para não se entrar no habitat do predador, além de noções de primeiros socorros. “Quando uma pessoa é ferida por um ataque do crocodilo, temos de a levar ao hospital para receber tratamento e medicação, não devemos recorrer à cura tradicional. Há muitas vítimas, que, por não terem tido cuidados médicos, acabaram por morrer”, observou Manuel Mendes.

Neste sentido, a CI-TL pretende trabalhar com o Ministério de Saúde para disponibilizar medicamentos e médicos nos lugares de perigo, de modo a que o tratamento às vítimas seja mais rápido e eficaz. O diretor também falou em “destacar pessoal de segurança para que a atuação seja mais rápida, no caso de haver ataques.”

O projeto ainda prevê transformar as cinco primeiras lagoas identificadas como perigosas em sítios turísticos. “Queremos criar casas com corredores seguros para que as pessoas passem e possam ver os crocodilos em segurança, o que trará rendimento para a comunidade”, relatou Manuel Mendes.

Estas cinco lagoas, de acordo com o Diretor de CI-TL, são Ratahu, em Viqueque, Hasan Foun, em Covalima, Haubion, em Manatuto, Bikan Tidi, em Ainaro e Modo Mahon, em Same. “Queremos criar alternativas para que a comunidade que vive nas zonas de risco não tenha de arriscar a sua vida a pescar e ao mesmo tempo passar ter um rendimento com a presença dos animais”, sublinhou Manuel Mendes.

O plano de gestão crocodilos, porém, ainda não tem previsão para ser implementado. Para desenvolver o projeto, o diretor salienta que precisa do apoio do Governo, principalmente do Ministério do Turismo e Meio Ambiente.

“Quando entramos no seu habitat, os ‘avôs’ podem comer os seus ‘netos’”

O chefe do DCCCEP, Flamínio Xavier, enfatizou que, embora o crocodilo seja uma espécie protegida, o Governo tem de dar atenção especial ao animal por causa da crença que o envolve no país, o que acaba por favorecer a ocorrência de tragédias.

“Na cultura, cremos que o animal é nosso ‘avô’, mas temos de pensar que há muitos ataques deste réptil. Podemos chamar-lhes avôs, mas quando entramos no seu habitat, os ‘avôs’ podem comer seus ‘netos’”, afirmou.

Flamínio Xavier acrescentou que a população de crocodilos tem aumentado. Anualmente, uma fêmea da espécie pode ter mais de 50 ovos e no mínimo 20. “Com este aumento e menos alimentos disponíveis, os animais passam também a considerar outras presas, como os humanos”, ressaltou o chefe do CDDDEP.

A autoridade informou que, em 2014, foi instalado um centro de gestão de crocodilos em Hera, no município de Díli, para transferir os animais que são encontrados nas lagoas e à beira-mar. “No período, já foram capturados sete crocodilos, um deles no mês passado, perto da ponte de Habibie, na capital. Possivelmente, ele veio de Metinaro ou Loes de Liquiçá para caçar”, contou Flamínio Xavier.

A captura do animal é feita de forma arcaica: prepara-se uma armadilha, atrai-se o bicho com um pedaço de carne e espera-se o predador abocanhá-la para, em seguida, puxar uma corda, que é amarrada no pescoço do crocodilo. A partir daí, o réptil fica agitado, sendo necessário alguns homens para segurar a corda. Quando o animal se cansa, prende-se a sua mandíbula com outra corda e depois o rabo. Após o réptil ser imobilizado, é feito o seu transporte para o centro, numa camioneta.

Pelo facto de o processo ser de extremo risco, muitos crocodilos deixam de ser capturados. “Ainda não temos materiais seguros para capturar estes animais”, admitiu Flamínio Xavier.

Em relação ao plano da Conservation International, o chefe do DCCCEP disse que já submeteu a proposta ao Fundo Global para o Meio Ambiente, a fim de conseguir recursos que garantam a concretização do projeto.

Array

Ver os comentários para o artigo

  1. O crocodilo mutou, nos dias de hoje virou politico. E que as vantagens, o dolar, o kareta estado, sao deveras uma grande tentacao.
    E um animal super inteligente!

  2. O crocodilo de Soibada e o crocodilo de Manatuto!

    O crocodilo de Soibada nasceu de um “affair” de um crocodilo femea de TL com um jacare de Portugal, por sinal um jacare marujo.
    O crocodilo de Manatuto e “rai nain”. Mas no processo de subsistencia nacional, fizeram um acordo e ate sao compadres. O de Manatuto gracas ao POVO, e politico, e um crodilo “manda chuva”, charlatan, beijoqueiro e pantomineiro.
    O de Soibada e crocodilo com um palmares invejavel. Ora vejamos, e galardoado com a medalha de merito mundial anfibia, de fazer invejar aos jacares europeus e sul americanos.
    Tanto um crocodilo como o outro, sao poliglotas, anedotas e nao vivem em palhotas, ao contrario do Ze Povinho.
    Ai crocodilo ao quanto obrigas!

    Ze Kakoak

Comente ou sugira uma correção

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Open chat
Precisa de ajuda?
Olá 👋
Podemos ajudar?