O arco, a flecha e a identidade do povo de Ilimano

O tiro com arco exige muita concentração e equilíbrio/Foto: Diligente

A rama ou o tiro com arco ainda é parte do dia a dia das pessoas dessa comunidade, que utilizam o artefacto para caçar e pescar. Cidadãos apelam para que o Governo reconheça a atividade como modalidade desportiva para divulgar melhor a tradição e derrubar estigmas.

Bonecas, carrinhos e bolas costumam ser os primeiros brinquedos das crianças, mas não numa aldeia remota de Manatuto. Ali, os primeiros objetos lúdicos de meninos e meninas são o arco e a flecha. Perpetuado de geração em geração, o costume ainda se faz muito presente no dia a dia da população de Ilimano – comunidade situada na região de Subão Boot, costa norte de Timor-Leste.

Na localidade, todas as famílias têm o seu próprio artefacto, que é utilizado em diferentes circunstâncias e atividades, como caça, pesca e proteção.

O arco, geralmente de bambu, é feito à medida do utilizador, mas, por norma, mede um metro. A corda é feita da raiz de uma árvore muito grande, chamada Hali. Tiram a raiz e batem com um pau ou pedra até ficar esmagada e depois deixam-na a secar.

A flecha também é feita de bambu, mas com uma dimensão pequena. Há algumas flechas mais longas, com cerca de um metro. Na ponta, é colocado um ferro ou lâmina afiados, que podem ter diferentes tamanhos. Em Ilimano, o tiro com arco é mais conhecido como rama.

Faustino Mauloko da Cruz, 50 anos, caçador e pescador, habitante da aldeia We ua, destacou que o artefacto garantiu a sobrevivência dos antepassados, através da caça. Por essa razão, honram a rama.

“O arco e a flecha são uma das maiores tradições e um ícone identitário do nosso povo. Aprendemos a usá-los quando ainda somos pequenos, uma vez que é a fonte da nossa subsistência. Pescamos e caçamos no mato para nos alimentarmos”, argumentou.

Na comunidade, algumas pessoas têm emprego formal e as crianças e jovens vão à escola. Porém, a maior parte dos habitantes procura viver do modo mais autossuficiente possível, como os ancestrais.

“Temos hortas, porém, muitas vezes, a colheita não é satisfatória, por causa da qualidade da terra. Para encontrar alimentos, temos de levar carne seca para trocar por dinheiro e por outros produtos, como arroz e farinha de palmeira”, contou Francisco Mauloko.

O caçador explicou que, quando matam os animais, os donos do arco e da flecha, realizam um ritual de agradecimento ao material, no sentido de “alimentar” e “aquecer” a arma.

“Quando abatemos um veado, por exemplo, levamo-lo para casa, amassamos os grãos crus de milho até formar uma pasta, que depois é moldada em círculos. Os bolos de milho são colocados num prato, juntamente com pedaços do coração e do fígado do animal para depois os lia nai’n (donos da palavra, em português) fazerem uma reza e oferecerem os alimentos aos antepassados”, detalhou. Depois de fazer o ritual, colocam, na ponta do arco, um pano vermelho para sinalizar que o objeto já foi utilizado para matar um animal.

“Normalmente, atiro a uma distância máxima de 100 metros. Atiro só uma vez e acerto, confio na minha arma e na minha pontaria”, sublinhou Francisco Mauloko, orgulhoso.

Um tiro com arco exige muita concentração e capacidade de equilibrar o peso do arco, da flecha e do próprio corpo. “Esta prática permite-nos treinar o nosso foco e autoconfiança”, acrescentando que é necessário exercitar muito, mas que se for um treino intensivo, no máximo numa semana, é possível aprender.

Preconceitos

O povo de Ilimano vive entre o monte Kuri e Maneo, espalhado por aldeias como We ua, Wehau, Hatumeta, Wealik. Outras pessoas, por volta de 15 famílias, vivem em Museun, Terrassu e Wetrade, que se situam nas montanhas.

No meio de Kuri e Maneo, o ambiente natural é seco e montanhoso. A parte da superfície terrestre é constituída por calcário, pedras cobertas por um solo fino, onde crescem canas e tamarindos. Nesse cenário, a população conseguiu desenvolver a agricultura e cultiva milho, banana, papaia, noz de areca, entre outros vegetais. Algumas famílias criam animais. A água vem de fontes naturais.

Faustino Mauloko, contudo, lamenta os preconceitos existentes em torno da comunidade de Ilimano. “Muitos dizem que quando se visita o nosso povo, se deve ter cuidado, por receio do arco e flecha. Nunca atacamos ninguém, não usamos o artefacto para ameaçar pessoas, mas para nos sustentarmos. A falta de informação leva a que sejamos alvo de estigmas. Para evitar este problema, queremos divulgar a nossa tradição”, argumentou.

Mesmo em Ilimano essa mentalidade ainda está presente, neste caso, entre poucas pessoas que vivem no topo da montanha. “Quando fazemos uma visita, alguns cidadãos ficam dentro de casa a espiar. Só saem, quando vamos embora”, contou Faustino Mauloko.

Os habitantes no topo da montanha ainda não têm acesso a eletricidade, a estradas e a saneamento básico. No ano passado, um grupo de voluntários distribuiu painéis solares. As casas ainda são feitas de bambu. “A população alimenta-se de mandioca, batatas e outros produtos que cultivam na horta. O arroz é difícil de encontrar nos pratos desta população”, disse o caçador.

Os diversos tipos de flechas feitos de bambu e com ferro afiado na ponta/ Foto: Diligente

Os mais jovens e a prática

Entre os habitantes mais jovens de Ilimano, a rama mantém-se ainda muito popular. Numa simples passagem pelo Subão podemos encontrar alguns grupos a carregar o arco e a flecha, em direção ao mar. Para manter a prática em dia, os adolescentes e crianças organizam-se para treinar juntos o tiro com arco. “Quando nos sentimos preparados, vamos caçar no mato”, mencionou Zacarias da Cunha, 28 anos, pescador.

O pai de dois filhos afirmou que encoraja os meninos desde cedo para que mantenham a tradição. “A rama é uma forte marca identitária do nosso povo”, ressaltou.

Zacarias da Cunha sonha em ser atleta de tiro com arco. Afirmou que quer promover a prática para que a sociedade reconheça a atividade como uma modalidade desportiva. “Fico triste quando ouço que as pessoas têm medo de nos visitar por acharem que os vamos matar. Penso que isto acontece, porque esta tradição ainda não foi devidamente promovida”, lamentou.

O Governo, de acordo com Zacarias, deveria sensibilizar a sociedade para salvaguardar e promover a sua identidade.

O secretário de Estado da Arte e Cultura, José Soares Cristóvão, afirmou que o Governo considera importante preservar a identidade da população, já que o costume representa um traço cultural da comunidade e do país.

“Em algumas localidades, há aspetos culturais que já desapareceram, mas noutras não. É um desafio para todos, especialmente para o Governo, continuar a alertar a sociedade para preservar o seu património”, referiu. O secretário informou que o Governo pretende criar centros culturais pelos municípios.

Tiro com arco como desporto

Em Timor-Leste, apesar de o tiro com arco ainda fazer parte da vida de uma parcela da população, a prática ainda é considerada como uma atividade de caça.

Faustino Mauloko relatou que, durante a ocupação indonésia, os jovens de Ilimano participaram num evento de tiro com arco, na Indonésia, e um deles ficou em segundo lugar nesta competição.

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Jacinta da Cunha, 49 anos, ex-atleta de tiro com arco no tempo da ocupação indonésia/Foto: Diligente.

Jacinta da Cunha, 49 anos, foi uma das selecionadas para participar na competição. Aprendeu a usar o artefacto em 1992, mas por falta de autoconfiança, decidiu não ir. “Tinha muita vergonha, porque, na altura, o treinador disse que estaria muita gente a competir e a assistir. Como vivia na montanha, com poucas pessoas, fiquei assustada e decidi não ir”, partilhou.

Faustino e Jacinta sugerem que o Governo estabeleça a prática como uma modalidade desportiva para que as novas gerações possam participar em eventos internacionais. “Queremos que os nossos filhos possam mostrar os seus dotes”, afirmou Jacinta.

O diretor nacional de desporto, do Ministério da Juventude, Desporto, Arte e Cultura, Cesarino da Silva, reconhece que o Governo ainda não tem um plano para preservar a rama. “Sabemos que a população de Ilimano ainda pratica o tiro com arco. É uma tradição ainda desconhecida por muitas pessoas e pelo Governo também, por isso ainda não foi desenvolvida como uma modalidade desportiva”, justificou.

De acordo com o diretor, para a prática ser considerada como uma modalidade desportiva, o Governo terá de desenvolver um estudo para averiguar em que moldes esta tradição é praticada e por quantos cidadãos. “Temos de perceber se há muitas pessoas a praticar. Se forem apenas duas ou três pessoas, não pode ser considerada um desporto”, informou.

O dirigente, porém, mostrou-se entusiasmado em apoiar, juntamente com autoridades e a sociedade civil, a preservação de aspetos identitários do país. “O avanço da tecnologia faz com que estejamos quase a esquecer as modalidades desportivas tradicionais do povo de Timor-Leste. Devemos trabalhar junto da comunidade para continuar a resguardar práticas do tipo, como a rama”, concluiu.

 

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