Confronto entre timorenses na cidade portuguesa, que resultou numa morte e em cinco feridos, gerou uma série de reações, algumas discriminatórias.
Situada na região central de Portugal, a cidade de Fátima é conhecida por ser o lugar onde três crianças dizem ter visto algumas aparições da Virgem Maria, em 1917. A localidade, que abriga um santuário homónimo, tornou-se ao longo do tempo num importante ponto turístico e religioso, atraindo uma multidão de cristãos todos os anos.
Há uma semana (2 de junho), porém, Fátima passou também a ser bastante associada a um episódio de violência, depois de um confronto que envolveu timorenses, segundo as autoridades. A confusão, que contou com suspeitos armados com armas brancas, como facas, resultou numa morte e em cinco feridos.
A polícia judiciária portuguesa investiga o incidente. Até ao momento, nenhum suspeito foi detido.
O caso acabou por gerar muitas reações, reacendendo discussões sobre o comportamento de cidadãos de Timor-Leste que vivem no exterior, a influência de grupos de artes marciais e a responsabilidade dos governantes do país.
Na avaliação de Ângelo Aparício, psicólogo e funcionário do Centro Nacional Chega! (CNC), o incidente é um reflexo da falha do poder público em promover a cidadania. “O que testemunhamos em Portugal é fruto do que plantámos e ignorámos até agora. O nome de Timor-Leste está manchado e continuará assim, se o investimento do Estado em crianças e jovens continuar a ser mínimo”, opinou.
Para o psicólogo, o ciclo de violência é parte da sociedade e “se não se investir fortemente para mudar essa realidade, esses comportamentos ressurgirão no futuro”.
Acrescentou que Timor-Leste tem uma das populações jovens mais numerosas do mundo. “Isso pode ser uma grande oportunidade para promovermos mudanças, investindo neles, ou pode ser um grande problema, se ignorarmos as suas necessidades”, observou.
Já a Fundação Mahein, num artigo publicado recentemente, cita que os jovens de hoje são, antes de mais nada, vítimas de uma economia estagnada e de um sistema público de educação fraco, e que a solução é investir no desenvolvimento de recursos humanos e na criação de empregos.
A Organização Não Governamental, que existe desde 2009 e trata de questões ligadas à segurança pública, destaca ainda que o comportamento antissocial de alguns jovens timorenses também está parcialmente ligado à falha das principais instituições “em incutir um sentido de responsabilidade e propósito, através de programas inclusivos que melhorem a sua participação em atividades significativas”.
O investimento na educação, este ano, correspondeu a 10% do Orçamento Geral do Estado (OGE). Desde a restauração da independência há 22 anos, foi apenas a segunda vez em que a percentagem de recursos alocados ao setor chegou aos dois dígitos. Em geral, a média rondava os 7%. Entre os países que compõem a ASEAN, bloco económico que Timor-Leste pretende integrar, o valor médio de investimento público na educação corresponde a 14,8% do orçamento estatal, segundo dados do Banco Mundial.
Os habitantes timorenses são, em sua grande maioria, jovens. De acordo com o censo 2022, 67% da população de aproximadamente 1,3 milhões de pessoas têm menos de 30 anos. Segundo um relatório do Banco Mundial divulgado no início deste ano, 70% dos cidadãos do país em idade laboral ou estão desempregados ou trabalham informalmente (sem contrato).
A elevada taxa de desemprego leva homens e mulheres a procurar melhores oportunidades no estrangeiro. Um levantamento da Organização Internacional para as Migrações (OIM), divulgado em 2023, indica que aproximadamente 50 mil timorenses estão a viver no exterior.
Segundo o documento, os seis principais destinos de emigrantes de Timor-Leste são o Reino Unido, Irlanda, Coreia do Sul, Austrália, Indonésia e Portugal.
Uma dessas pessoas é Maria Auxiliadora, 28 anos, funcionária de uma empresa de colheita de flores na Austrália. Em conversa com o Diligente, a cidadã, licenciada em economia, disse que foi obrigada a emigrar por não ter trabalho em Timor-Leste.
“Todos os meses, mando mil dólares australianos (cerca de 687 dólares americanos) para os meus pais. Uma parte deste valor é para pagar as propinas da escola do meu irmão. Neste momento, estou a juntar dinheiro para que, no futuro, possa abrir meu próprio negócio. Também já estou a construir uma casa em Díli para arrendar”, contou.
Para se ter uma ideia, o valor das remessas enviado por trabalhadores de Timor-Leste na diáspora para o país foi, em 2021, de cerca de 170 milhões de dólares americanos – a segunda maior fonte de receitas da nação, atrás apenas dos valores gerados pela exportação de petróleo e de gás, revelou o Ministério das Finanças.
Além de ajudar as famílias timorenses, os cidadãos que se encontram no exterior contribuem para a economia dos países onde vivem.
Novas regras para migrações em Portugal
O incidente em Fátima serviu também para intensificar debates sobre questões relacionadas com imigrantes, assunto em evidência em Portugal desde as últimas eleições – em que o Chega (partido de extrema-direita que apoia uma agenda anti-imigração) obteve 50 cadeiras na Assembleia da República, tornando-se na terceira maior força política.
Um dia após o episódio de violência, o Estado português apresentou medidas que tornaram mais rígidas as regras para os estrangeiros que pretendem obter autorização de residência em território lusitano: os imigrantes que quiserem viver no país terão agora de pedir nos consulados portugueses um visto de trabalho, caso contrário não vai ser possível regularizarem-se. A nova legislação, promulgada pelo presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a 3 de junho, entrou em vigor no dia seguinte.
Dessa forma, o decreto-lei (nº 37-A/2024) extinguiu o procedimento conhecido como manifestação de interesse, que permitia aos indivíduos chegarem como turistas e, através de um contrato de emprego (ou promessa de um) ou comprovativo de contribuição para a Segurança Social, solicitar na Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) a permanência em Portugal. As medidas não afetam quem já tenha dado entrada no processo de regularização pelo referido meio até 3 de junho.
Para os cidadãos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), da qual Timor-Leste faz parte, contudo, deve haver mais flexibilidade. No novo Plano de Ação para as Migrações, conjunto de diretrizes para regular a imigração, no item 8, é destacado o compromisso em “reforçar o enquadramento operacional do acordo de mobilidade CPLP”. O plano, apresentado pelo primeiro-ministro, Luís Montenegro, a 3 de junho, ainda terá de ser aprovado na Assembleia da República.
O documento realça que “não há evidência de correlação entre o aumento da população estrangeira residente e as participações criminais”.
Numa entrevista concedida à TSF e Diário de Notícias, publicada a 1 de junho, o ministro da Presidência de Conselho de Ministros de Portugal, António Amaro, enfatizou que “não há recuo na ideia de um acordo de livre circulação com os países da CPLP”.
“Na preparação deste plano [de Ação para as Migrações], cuidámos de ouvir os grupos parlamentares e houve uma posição praticamente unânime de que, dentro dessas regras, faria sentido haver uma discriminação positiva, um tratamento mais favorável aos imigrantes que vêm de países da CPLP, por uma razão de proximidade cultural e linguística que torna a integração social mais fácil. Há um largo consenso nacional para a existência de um tratamento mais favorável das pessoas que vêm dos países da CPLP”, afirmou o ministro na entrevista.
Segundo as autoridades, tanto o decreto-lei como o plano são necessários para tentar agilizar centenas de milhares de processos pendentes de análise e a incapacidade de resposta dos serviços competentes.
O líder do Chega, André Ventura, no entanto, em declarações à imprensa portuguesa no dia 3 de junho, classificou o Plano de Ação para as Migrações como “frouxo, mal formado, pouco eficaz e pouco conseguido”, destacando que “um dos grandes problemas que temos é precisamente com os regimes de vistos para a CPLP”. “Portugal tem evidentemente uma ligação e uma proximidade cultural com alguns países do mundo. Isso não pode significar ‘bar aberto’ à entrada em Portugal”, concluiu.
Na quinta-feira (6.06), em Póvoa do Varzim, durante uma ação de campanha para as eleições do Parlamento Europeu, André Ventura foi confrontado por Iqbalh Hossain, cidadão do Bangladesh, que disse trabalhar numa estufa a cortar cravos e a viver em Portugal há três anos. Jornalistas da SIC registaram o momento. O vídeo, apenas numa rede social, acumula mais de 1,7 milhões de visualizações.
Num português esforçado, Iqbalh Hossain, 33 anos, não se deixou intimidar e falou o que sentia ao político. “Minha filha nasceu cá e eu mandei-a embora porque ouvi muitas pessoas a reclamar, por isso é que fiz isso! Estou muito triste! Eu faço tudo direitinho! Tenho visto! Sempre que fala é racista”, afirmou ao líder do Chega. Com ar de indiferença e cercado por apoiantes, André Ventura seguiu caminho.
No vídeo, é possível ver Iqbalh Hossain, possivelmente depois do encontro, a falar com jornalistas, visivelmente emocionado e a gesticular muito. “Comecei a ver muitos racistas a dizer ‘é imigrante, é imigrante’”. Questionado se é vítima de racismo, responde: “Sim, ele [Ventura] é sempre racista”. Ao dizer que trabalha numa estufa a cortar cravos, ouve-se uma voz de um homem a gritar “viva Portugal, pá! Parem de lhe dar palco, ouve lá. Ainda existem portugueses neste país”, continua o homem.
Nos últimos dias, circularam nas redes sociais muitas publicações de timorenses a insultar os conterrâneos e a apoiar o político do Chega.
O ex-governante de Timor-Leste e presidente do Instituto de Política e Assuntos Internacionais (IPIA, em inglês), Fidélis Magalhães, observou que os atos são da responsabilidade individual dos envolvidos e não podem ser usados como pretexto para discriminar todos os cidadãos do país. “Portugal tem a sua polícia e sistema de justiça. Há muitas pessoas que cometem crimes lá, não são apenas timorenses”, reforçou.
Fidélis Magalhães apelou para a população não se deixar influenciar pelos discursos xenófobos de André Ventura, de modo a “não praticar autoflagelação desnecessária”.
O jovem ativista, Natalino Guterres, de 35 anos, corroborou a opinião do ex-governante. “O Chega há muito tempo que mantém sentimentos anti-imigração e está à procura de razões para justificar políticas contra imigrantes. Promover o discurso deles não é útil”, refletiu.
Autoridades manifestam-se
Em Timor-Leste, as autoridades, de forma vaga, limitaram-se a condenar o incidente, a pedir “a paz e estabilidade” e a tentar achar culpados. Autocríticas, no sentido de rever as políticas públicas para a formação dos cidadãos e criação de empregos, não há.
O presidente da República, José Ramos-Horta, no dia 5 de junho, pediu ao Governo português que expulsasse os envolvidos no confronto e os colocasse na lista negra para que não pudessem viajar para mais lado nenhum. “Já apelei aos jovens para não provocarem conflitos, a Igreja também o fez, mas não nos ouviram. Então, a melhor solução é puni-los e expulsá-los do país”, realçou.
O primeiro-ministro e líder do CNRT, Xanana Gusmão, na passada quinta-feira (6.05), preferiu culpabilizar os grupos de artes marciais e rituais, os quais proibiu de funcionar em Timor-Leste no ano passado. “É preciso deixar de vez as artes marciais”, disse aos jornalistas, ao deixar o palácio presidencial, depois do encontro com Ramos-Horta. Acredita-se que os envolvidos no confronto em Fátima sejam de coletivos rivais.
Já o ex-presidente da Comissão Reguladora das Artes Marciais (CRAM), Ato Lekinawa da Costa, discorda. “Limitar os grupos é a decisão mais fácil, mas não resolve o problema. A raiz dos atos violentos vem da falta de educação, não só da educação formal, mas da educação na família e na sociedade. Tem de haver um plano para educar a sociedade”, afirmou.
A bancada da FRETILIN, em nota, apelou “aos cidadãos em Timor-Leste e na diáspora para que se distanciem de violência, promovam a paz e a estabilidade, de forma a garantir o respeito e a harmonia entre timorenses e com outras populações”.
No comunicado de imprensa, a FRETILIN pede ao Estado e ao povo portugueses que “não assumam esta situação como uma generalização de toda a comunidade timorense em Portugal, e ajudem a evitar discursos e ações de carácter xenófobo e discriminatório contra quem quer que seja.”
António Verdial, chefe da bancada do (KHUNTO), também lamentou as atitudes dos jovens. “Peço à embaixada de Timor-Leste em Portugal e ao Ministério dos Negócios Estrangeiros e Cooperação timorense que tomem medidas para preservar o bom nome do país em Portugal e na diáspora”, sugeriu.