A desigualdade no acesso à educação em Timor-Leste

Em Timor-Leste, os recursos alocados para a educação neste ano corresponderam a pouco mais de 6% do total do OGE/Foto: Diligente

Enquanto 86% dos estudantes do país têm de frequentar escolas públicas com condições precárias, uma minoria encontra nas escolas privadas um ensino de mais qualidade.

O ar abafado, o cheiro fétido e o ambiente pesado, quase irrespirável, fazem-nos questionar se estamos mesmo a entrar numa escola. São 9h. O calor ensopado entranha-se em todos os poros e nas paredes, também elas decompostas, do edifício da escola pública básica de Kuluhun, estabelecimento que alberga 813 alunos.

No rés do chão, placas magras de contraplacado separam as salas de aula. No primeiro andar, as duas turmas do 2.º ano, com 50 alunos cada, partilham a sala: alunos irrequietos falam, gritam, cantam, o que torna o processo de ensino caótico. Em cima das carteiras dos alunos, só pequenos cadernos e canetas. Nada de manuais escolares.

Entre berros, a professora do 2.º ano, Maria Luísa dos Santos, queixa-se do elevado número de estudantes e da falta de espaço. “Para ensinar bem, cada turma devia ter no máximo 35 alunos. E as turmas nunca deveriam ter aulas juntas na mesma sala”, desabafa.

Na escola pública de Kuluhun, duas turmas, por falta de espaço, partilham a sala/Foto: Diligente

Nas paredes, cartazes esguelhados com a conjugação dos verbos regulares e o alfabeto. No chão, sujidade por todo o lado, a contrastar com o vazio dos caixotes do lixo. Três casas de banho sem água competem com o cheiro podre da comida expirada. Livros descansam em paz em caixões de cartão, enquanto os alunos, vítimas de um sistema desigual, permanecem descontrolados, alheados da realidade absurda em que (des)aprendem.

A escola de Kuluhun não é a única nestas condições em Timor-Leste. Por todo o país, são muitos os estabelecimentos de ensino públicos como este, que mostram o pouco empenho dos sucessivos governos em relação à educação.

Segundo dados do Ministério da Educação, em 2021, 86% dos 140.442 estudantes do 1.º ciclo do ensino básico, cerca de 121 mil alunos, têm de recorrer a escolas públicas, onde reinam as condições precárias.

Passados 20 anos de independência, o investimento na educação pública, de acordo com os valores do Orçamento Geral do Estado (OGE), tem sido baixo. Em 2022, por exemplo, o montante alocado para a área, 115,6 milhões de dólares, correspondeu a pouco mais de 3% do total do OGE, segundo o Portal da Transparência de Timor-Leste. O OGE do ano passado foi de 3,2 mil milhões – valor até então inédito. Mesmo assim, em números absolutos, a quantia destinada à educação em 2022 foi 16 milhões inferior ao montante do ano anterior.

Já o OGE aprovado para este ano prevê uma percentagem pouco superior a 6% para a educação (137 milhões de dólares) em relação ao valor total (2,1 mil milhões de dólares), de acordo com as informações do Governo. Para chegar a estes números, o Diligente considerou a soma dos valores reservados ao Ministério da Educação, Juventude e Desporto (MEJD), ao Ministério do Ensino Superior, Arte e Cultura e à Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL), em consulta no Portal da Transparência.

Dados do Banco Mundial revelam que, em Timor-Leste, desde 2008, só uma vez o orçamento para a educação chegou aos dois dígitos. Foi em 2009 e não passou dos 10,6%.

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Fonte: Banco Mundial

Números preocupantes, se compararmos também o investimento dos países da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), grupo que Timor-Leste pretende integrar. Em 2021, o Governo timorense investiu 7,5% do orçamento no setor, percentagem que envergonha o país em relação à vizinha Indonésia, com um investimento de 19,2% em 2020. A média na Ásia Oriental e Pacífico é de 14,8%.

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Fonte: Banco Mundial

Perante este cenário, a especialista na área da Educação, Cesarina Guterres, considera que a esperança das famílias está nas escolas privadas, com mais qualidade do que as públicas.

“As pessoas com um nível socioeconómico médio ou alto, procuram escolas privadas, que oferecem melhor ensino. Mas, para aqueles com um nível socioeconómico baixo, a escola pública é a única alternativa”, disse. Assim, gera-se desigualdade no acesso a uma educação de qualidade, o que afeta a aprendizagem de crianças e jovens e o próprio país.

O Diligente quis entrevistar o Diretor Nacional das Infraestruturas Escolares, Hélio Lopes, sobre o projeto de construção de 204 unidades de ensino e 657 salas de aula anunciado pelo Governo. Enviou cartas, telefonou várias vezes, mas não obteve qualquer resposta.

A dificuldade de algumas famílias em acompanhar os estudos dos filhos

Nascido numa família carenciada, Honório Pinto, 5 anos, é um dos estudantes da escola pública de Kuluhun. O pai, Marcelino Pinto, é carpinteiro e  a mãe doméstica. Honório é o  filho mais novo de sete irmãos. O irmão mais velho abandonou a escola para trabalhar e ajudar os pais a financiar os estudos dos outros.

Em construção há cinco anos, a moradia que abriga os nove familiares tem um chão de terra batida e os quartos são separados por contraplacado. Honório não tem condições para estudar em casa.

Com o orçamento escasso, a família numerosa tem o arroz como alimento principal. “Comemos arroz com espinafres. Muitas vezes, só arroz. Carne só às vezes, mas nunca como fruta”, conta o menino, que, apesar de tudo, se mostra motivado para ir à escola e sonha ser Presidente da República de Timor-Leste.

Carne e fruta são luxos que não estão ao alcance diário de muitas crianças timorenses, assim mais dependentes da merenda escolar, que, como revela muitas vezes a comunicação social timorense, não chega a várias escolas. Os números não desmentem como é importante alimentar estes alunos. Metade das crianças timorenses abaixo dos 5 anos sofre de nanismo, uma das mais altas taxas do mundo. Com o nanismo, surge o fraco desenvolvimento cognitivo e, por conseguinte, problemas de aprendizagem.

As dificuldades não são só materiais. O pai até pede que o menino faça as tarefas da escola, porém, devido à rotina de muito trabalho, não lhe consegue dar a atenção necessária. Honório frequenta o 2.º ano, mas ainda tem dificuldades em ler, escrever e contar.

Marcelino confessa que tem conhecimento das dificuldades do filho nos estudos e que gostaria de ter condições para pagar uma escola privada. O carpinteiro não quer que a vida do filho seja igual à sua, mas não consegue ajudar mais.

O diretor da escola do ensino básico de Kuluhun, Mário Soares, ressalta que, muitas vezes, recai sobre os professores toda a responsabilidade pela educação dos alunos.

“Os estudantes voltam para casa, deixam a mochila num canto e fazem outras coisas. De manhã, os filhos levam-na de volta para a escola sem ler nada e sem fazer os trabalhos de casa”, lamenta.

Uma escola com mais qualidade tem preço

“Para ter uma educação de qualidade, temos de pagar”, afirma a professora Sandra Ludovina, que mensalmente tira 50 dólares do seu salário de 185 para financiar a escola de três filhos.

Profissional da Escola Básica do Sagrado Coração de Jesus (Sacrojes), um estabelecimento de ensino privado em Becora, a professora conta que é muito difícil pagar os estudos dos filhos e que, a meio do mês, a situação financeira já aperta. O salário da mãe é a única fonte de rendimento da família, porque o pai está desempregado há um ano.

Sandra tem cinco filhos. Os dois irmãos mais novos ainda não vão à escola por ainda terem menos de 4 anos e não haver dinheiro para o pré-escolar. O mais velho está no 8.º ano, o segundo no 7.º e a terceira, Josefa, frequenta o 3.º ano na escola em que a mãe leciona.

A casa onde vivem é fresca e calma, rodeada por muitas árvores. A casa e o ambiente familiar permitem a concentração dos filhos nos estudos. Sandra acompanha todos de perto, mas dedica a Josefa, por ser a mais nova, maior atenção. A menina já sabe ler, escrever e contar muito bem. Quer ser médica.

A escola, fundada no tempo indonésio, possui nove salas de aula – espaço adequado para os 549 alunos – e uma sala dos professores. No centro do estabelecimento, uma biblioteca. Ao lado da sala dos professores, uma cantina onde se vendem bolachas e comida nasi bungkus (arroz embrulhado em folhas, em língua indonésia). A escola tem água, mas as casas de banho não têm portas e não são suficientes para tantos estudantes.

Às 13h20 começa a aula de Matemática. A sala tórrida, sem ventoinha nem ar condicionado, não impede os 37 alunos de uniformes azuis, sentados em pares, com cadernos e canetas na mão, de fazerem barulho com os braços no ar, ávidos de responder às perguntas da professora. Nenhum tem manuais escolares.

Ambiente que conspira a favor dos alunos

Frequentar uma escola com boas condições é uma realidade fora do alcance de grande parte das crianças e jovens timorenses, destaca o professor do 2.º ano da turma B, da Escola Portuguesa Ruy Cinatti, em Díli (EPD), Alexandre Canadas.

“Na escola, os pais da maioria dos alunos têm um nível socioeconómico acima da média”, informa.

A EPD, com 1.300 alunos, maioritariamente timorenses, é uma escola do sistema educativo português, financiada por Portugal. É grande a lista de espera dos pais que querem que os seus filhos estudem aqui. Percebe-se. Tem as condições de uma escola em Portugal e abre portas ao ensino superior português. Perante o cenário atrás descrito, surge como um oásis num deserto.

Benícia Santos é uma das alunas da Ruy Cinatti. Também quer ser médica, mas parte com vantagem em relação a Josefa. A sua mãe é professora e o pai enfermeiro. Na casa onde a menina vive em Díli com os pais e a irmã – que também estuda na mesma escola – a varanda estás repleta de vasos com flores, o chão é de mosaico, há três quartos e uma sala. Tudo impecavelmente limpo e organizado.

Anita Santos, mãe de Benícia e Maisha, diz não ter muita dificuldade em pagar 70 dólares de propinas mensais (35 para cada filha), porque ganham o suficiente.

No dia em que o Diligente visitou a família, por volta do meio-dia e meia, Benícia já estava vestida com o uniforme da Escola Portuguesa e terminava de preparar a mochila e o lanche.

A escola que a recebe é muito diferente da de Honório ou Josefa. O edifício principal e o colorido das paredes captam o olhar de qualquer um: exposições de trabalhos dos alunos, avisos de atividades extracurriculares, decoração feita pelos estudantes. Os estudantes, professores e funcionários trabalham, conversam, sorriem, deslocam-se animadamente de um lado para o outro.

Na cantina, a refeição é nutritiva. Cada aluno tem um tabuleiro composto de por um prato de arroz com rancho, uma maçã e sopa. Em cada mesa, há jarros de água fresca para todos se servirem.

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Na EPD, as boas instalações ajudam na aprendizagem/ Foto: Diligente

Às 13h15, os alunos do 2.º ano da turma A começam a aula. A sala equipada com aparelhos de ar condicionado está organizada e tem todas as condições para que os alunos aprendam. Sentam-se em pares para que se possam ajudar uns aos outros. Um aluno, um manual. Mas o professor utiliza outros materiais para os auxiliar a contar. A aula é interativa. Todos levantam a mão para responder às questões do professor. Uma atmosfera saudável, onde as crianças se sentem à vontade para aprender.

Na parede, em cima do quadro, estão colados os números ordinais e as letras. Atrás deles, um armário que guarda os livros complementares ao manual. Tudo conspira a favor destes alunos.

O português ainda é um problema. Embora a escola utilize o use no como língua de ensino, o professor Alexandre Canadas diz que os alunos ainda têm dificuldades no domínio da língua portuguesa. “Às vezes, nota-se que uma parte dos estudantes apresenta dificuldades em se expressar em português. Porém, isso não significa que não compreendem o idioma ou os conteúdos ensinados”, observa o docente.

Sobre o acompanhamento dos pais em casa, o professor considera fundamental que o apoio aconteça nos lares. “O problema é que os pais nasceram na fase em que a Indonésia proibiu o português e, por isso, não dominam a língua”, diz.

Face a este problema, a escola oferece respostas. O diretor da escola, Acácio Brito, olha para a EPD como um farol na consolidação da língua portuguesa em Timor-Leste. Para tal, oferecem uma série de atividades para ajudar os estudantes a aprofundarem conhecimentos: teatro, leitura, banda da escola, o centro de formação, a direção de psicologia e orientação, a educação inclusiva, o gabinete de enfermagem, as atividades desportivas, ioga, ginástica, aeróbica, entre outras.

Três crianças, três realidades diferentes. A educação é um dos principais fatores de mobilidade social e de promoção da igualdade. Uma escola de qualidade mudaria a vida de milhares de crianças timorenses a viver na pobreza. No entanto, devido à situação financeira das famílias, não têm essa oportunidade. A falta de educação de qualidade continua, por isso, a perpetuar a pobreza e a agravar as desigualdades sociais em Timor-Leste.

Perante realidades tão distintas, em que uns têm acesso a muito e outros nem sequer ao mínimo, para que serve a Lei Básica da Educação, que deveria garantir o acesso gratuito a uma educação de qualidade? Onde está a igualdade de oportunidades e a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais que constam no artigo 2.º da Lei de Bases da Educação?

São questões que, infelizmente, parecem ainda não ter solução à vista.

Ver os comentários para o artigo

  1. A situação é muito complexa. As escolas públicas Timorense, principalmente, os sucessores do MEJD não têm boa fé de projetar e de desenvolver um bom plano para resolver estes constrangimentos. O futuro das gerações vindouras estão em questão.

    Estamos no ano de 2023 e estes problemas ainda surgens.

    Que pura e triste realidade.

  2. Parabéns pela reportagem! Mais uma boa reportagem. Três famílias com esperança para os filhos mas muitos “Honórios” vão ficar para trás. Infelizmente, os políticos podem ler a reportagem, mas não ligam. Estão concentrados nas lutas entre eles e a ver como chegam ao poder. Como é que os governos não conseguiram resolver problemas básicos? Infraestruturas, livros são assim tão difíceis? Até o governo mais incompetente conseguia resolver isso. Só pode ser falta de vontade. Querem manter o povo na ignorância para continuarem a governar. Triste destino do meu país.

  3. O artigo faz lembrar uma coisa que li outro dia no Facebook.

    “Para destruir uma nação, não é necessário usar bombas atómicas. Basta reduzir a qualidade da educação. Pacientes morrem nas mãos dos médicos. Edifícios caem nas mãos dos engenheiros. Dinheiro perde-se nas mãos dos economistas. A justiça perde-se nas mãos dos juízes. A humanidade morre nas mãos dos religiosos. A destruição da Educação é a destruição de um país”.

    DILIGENTE, CONTINUEM A ESCREVER SOBRE OS PROBLEMAS QUE AFETAM TIMOR. TÊM A RESPONSABILIDADE DE ACORDAR O POVO! SOU VOSSO FÃ! NÃO ME DESILUDAM.

  4. Uma desgraca franciscana!

    Uma desgraca franciscana
    O moldar de uma nacao de forma leviana
    As criancas sao o futuro mas a vida e marciana
    Merenda escolar magra como tanta cabana
    Ha que apostar na juventude de Viqueque a Maliana
    Leite de vaca, vitaminas, proteinas e parmesama
    Um bom banho, pijama e cama
    Toda a semana
    Para o Joao, Pedro, Jose e mana
    Educacao fisica, ginastica e sauna
    O existente e uma desgraca franciscana
    O Povo merece melhoria da vida quotidiana

  5. Sugiro que facam o intercambio de estudantes destas “escolas”, com os filhos dos politicos, pelo menos um mes por ano letivo. Eles logo diriam aos pais politicos a realidade do ensino.
    Outro problema que necessita urgente atencao e a descentralizacao do poder civil para o interior. Ministerio em Atauro, Maliana, Baucau, Viqueque, Liquica, Ermera. Os senhores ministros quando vem a Dili para reunioes, logo vem como os caminhos de cabra fazem doer os rins. Talvez assim dessem mais atencao.

  6. Noticias e informações interessantes. Que lástima? QueTL invista mais na Educação, de forma a melhorarar as condições minimas as escolas expostas e escitas e elevar a capacidade e nem se atreve dizer dignidade dos estudantes

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