A definição do novo chefe da Comissão Anticorrupção veio de uma nomeação do próprio Governo e só foi possível após uma alteração à lei do órgão que combate e previne a corrupção no país. A situação levanta questões sobre independência e imparcialidade. Rui Pereira dos Santos, o escolhido para o cargo, garante que irá agir com profissionalismo e responsabilidade, de acordo com a lei.
Depois de mais de um ano sem comissário, a Comissão Anticorrupção (CAC) é liderada oficialmente, desde 5 de julho de 2024, por Rui Pereira dos Santos, nomeado pelo Governo e que já desempenhou anteriormente funções de comissário-adjunto. Para que assumisse o cargo, o Parlamento Nacional alterou a lei n.º 8/2009 (lei da CAC), eliminando a exigência de um quórum mínimo de 49 deputados presentes na sessão para a votação (tanto para a nomeação, como para uma possível exoneração) que elege o comissário.
A ausência de consenso entre os deputados, dadas as propostas, tanto do Governo anterior (liderado pela FRETILIN), como do atual, levou a que a escolha do sucessor do ex-comissário Sérgio Hornai se arrastasse, porque nunca se preencheu o quórum mínimo para a votação em sede de Parlamento. A segunda alteração à lei n.º 8/2009, publicada a 8 de maio deste ano, foi então a solução para se conseguir eleger o novo líder da CAC e resolver o impasse.
Pela legislação atual, o Governo, que tem a maioria dos assentos no Parlamento Nacional, tem então poder para destituir ou nomear o comissário, sem que seja necessária uma votação mais ampla. A situação levantou questões ao público quanto à independência e imparcialidade da CAC, criada em 2009 para prevenir e combater a corrupção, enquanto órgão com autoridade para conduzir processos de investigação, busca e apreensão.
Para a diretora-executiva do Programa de Monitorização do Sistema Judicial (JSMP), Ana Paula Marçal, a diminuição do quórum foi necessária para assegurar a continuidade dos processos judiciais. “Não podemos esperar até que as testemunhas morram. Deve-se assumir a responsabilidade criminal”, justificou.
Sem um comissário, as investigações dos casos de suspeitas de corrupção foram suspensas, uma vez que a autoridade é quem pode delegar os trabalhos, entre outras diligências. Durante esse período, os processos pendente foram devolvidos ao seu proponente, nomeadamente o Ministério Público, enquanto que os casos já iniciados pela CAC ficaram com a comissão.
No artigo 8.º da lei da CAC consta que “o candidato a comissário deve ser reconhecido pelo seu elevado nível de independência e imparcialidade”
Contudo, o facto de Rui Pereira dos Santos ter sido designado para o cargo sob proposta do Governo, em reunião do Conselho de Ministros, a 12 de junho deste ano, preocupa a diretora-executiva do JSMP. “Isso pode ser um fator que limita o trabalho do comissário no combate à corrupção, se compararmos com uma pessoa sem ligação partidária”, afirmou. No artigo 8.º da lei da CAC consta que “o candidato a comissário deve ser reconhecido pelo seu elevado nível de independência e imparcialidade”.
“É muito cedo para se supor que o comissário não vai ser independente, mas duvido que o seu trabalho seja totalmente profissional”
A diretora-executiva do JSMP defende que a alteração do quórum não atrapalha em nada, se o Governo indicar uma pessoa independente. O facto de se nomear um membro do partido, segundo Ana Paula Marçal, torna essa alteração prejudicial. “É muito cedo para se supor que o comissário não vai ser independente, mas duvido que o seu trabalho seja totalmente profissional. Esperamos que o comissário seja uma pessoa com garra, que não se deixe ser controlado por ninguém”, acrescentou.
Tendo em conta a demora no processo de nomeação e o facto de o comissário ter ligações com o CNRT, a diretora-executiva do JSMP acredita “que não há seriedade em combater a corrupção em Timor-Leste.”
O jurista Armindo Amaral vê a alteração da lei n.º 8/2009 como uma ameaça à imparcialidade e à independência da CAC, porque o Governo tem o poder de propor a exoneração do comissário. “É um risco, porque obriga o comissário a obedecer a um sujeito político. Isso pode condicionar o seu trabalho, por se sentir intimidado, ao investigar casos que envolvem as elites ou pessoas com poder”, argumentou.
Armindo Amaral observou que a lei permite ao Governo nomear pessoas de acordo com a sua preferência ou com quem tenham algum acordo para prejudicar os seus adversários. Por isso, mostrou-se relutante quanto às possíveis estratégias da CAC para combater a corrupção. “Será que o comissário vai ter a coragem para investigar aqueles que o nomearam?”, questionou.
Tal como a diretora-executiva do JSMP, Armindo Amaral nunca concordou com a nomeação do comissário pelo Governo. Defende que o mecanismo deve ser mudado. “Pode-se formar uma equipa independente que recrute pessoas com capacidade e, desse grupo, seria selecionada uma pessoa para comandar a CAC. Temos muitos profissionais competentes para esse cargo”, opinou.
O jurista enfatizou que o combate à corrupção não é apenas obrigação da CAC e do Ministério Público (MP), mas também dos cidadãos e que, para isso, é necessário que todos se envolvam. Para Armindo Amaral é esse o caminho que garante o desenvolvimento das instituições e a responsabilização dos políticos quanto às decisões que afetam o bem comum. “Caso contrário, vai ser um problema. As leis não podem ser ferramentas políticas”, concluiu Armindo Amaral.
O quórum, o consenso e a alteração
As demoras na mudança de líderes da CAC têm sido recorrentes desde que o órgão foi constituído. Com o final do primeiro mandato do comissário CAC (2010 a 2014), cargo ocupado por Adérito de Jesus, em fevereiro de 2014, o segundo mandato, de Adérito Pinto Tilman, só começou em julho de 2014.
Depois, quando o segundo comissário terminou as suas funções, em julho de 2018, a CAC ficou sem liderança até janeiro de 2019, momento em que o terceiro comissário, Sérgio Hornai, assumiu a chefia. Apesar de o seu mandato ter terminado em 21 de janeiro de 2023, Sérgio Hornai manteve-se em funções até abril desse ano, de modo a que fosse indicado um substituto. Começou aí o impasse que deixou a CAC um ano sem “cabeça”.
A agravar a falta de concordância na classe política, uma vez que a votação acontece no Parlamento Nacional, entre maio e junho de 2023, com as eleições parlamentares, foi formado um novo Governo para dar início à VI Legislatura. Resumidamente, apoiando-se na lei nº 8/2009, sobre a CAC – referente ao quórum mínimo –, o CNRT, em oposição ao VIII Governo, num primeiro momento, e a FRETILIN, em oposição ao XI Governo, já depois das eleições, boicotaram as votações, levando a que a situação ficasse indefinida durante um ano.
Sabe-se que a 25 de janeiro de 2023, quatro dias depois da cessação do mandato de Sérgio Hornai, o VIII Governo propôs a candidatura de José da Costa Ximenes, ex-procurador geral da República, para o comissário.
O Parlamento Nacional da V Legislatura, liderado por Aniceto Guterres, agendou, sem sucesso, a votação em seis ocasiões, sendo que a bancada da oposição (CNRT) nunca compareceu, alegando que o candidato era parcial e exigindo outro candidato.
Com o objetivo de encontrar uma solução para os constantes boicotes da oposição, teve início em março do ano passado, ainda na V Legislatura, a proposta de alteração da lei n.º 8/2009, cuja principal mudança seria no requisito de ter três quartos (3/4) dos deputados presentes na eleição do comissário. Na altura, a ideia foi criticada pelos deputados do CNRT.
Posteriormente, quando o CNRT assumiu o Governo, os papéis inverteram-se e decidiram prosseguir com a alteração da lei da CAC, porque a FRETILIN, agora na oposição, também boicotou a votação do candidato apresentado pelo IX Governo – Rui Pereira dos Santos.
O atual Governo propôs inicialmente dois candidatos: Sérgio Hornai e Rui Pereira dos Santos. No entanto, os deputados, tanto da bancada do Governo como da oposição, concordaram que só deveria haver um candidato.
Quando o Governo devolveu a lista ao Parlamento, com a candidatura única de Rui Pereira dos Santos, os deputados da oposição discordaram, apontando o facto de o candidato ser presidente da comissão nacional da jurisdição do CNRT. Rui Pereira dos Santos, por sua vez, desmentiu o argumento, afirmando que é militante e membro do Grupo dos Profissionais do Partido, mas que não faz parte de nenhuma estrutura principal do CNRT.
Ao perceber que não iria haver consenso, o IX Governo acelerou a alteração da lei n.º 8/2009, eliminando a exigência de 3/4 dos deputados. Assim, com a lei n.º 4/2024, de 8 de maio, que altera a lei n.º 8/2009, de 15 de julho, a designação e a exoneração do comissário da CAC são propostas pelo Governo e votadas no Parlamento Nacional com maioria absoluta – ou seja, a votação acontece mesmo que a bancada de oposição esteja ausente.
A alteração da lei n.º 8/2009 não foi bem recebida pela FRETILIN, o principal grupo político de oposição ao Governo. O partido teme que a mudança possa tirar autonomia ao comissário na condução das investigações. “O artigo 11.º da segunda alteração à lei da CAC enfraquece a autonomia do comissário, pois pode ser exonerado se fizer alguma investigação contra o Governo ou contra a liderança do partido com maioria parlamentar”, consta no comunicado de imprensa. No entanto, o argumento de não poder investigar o atual Governo não está referido em nenhum artigo da lei da CAC, e não passa de uma observação da FRETILIN.
A segunda alteração à lei da CAC também exige que o mandato do atual comissário (quatro anos) se mantenha até um novo ser eleito, evitando assim que o cargo fique vazio, como sempre aconteceu.
“Se eu não fizer o meu trabalho de forma profissional, independente e imparcial, eu próprio vou resignar”, diz o novo líder da CAC
Em conversa com o Diligente, o novo líder da CAC, Rui Pereira dos Santos, fez questão de enfatizar que a alteração à lei não afetará o seu trabalho. “É contra o dever do comissário adiar ou ignorar um caso só por ser família ou por ter algum tipo de relação com uma entidade. Se eu não fizer o meu trabalho de forma profissional, independente e imparcial, eu próprio vou resignar”, assegurou.
Rui Pereira comprometeu-se a liderar com responsabilidade, tratando todos os casos de forma justa e igual, cumprindo as leis, principalmente a Constituição e a lei da Comissão Anticorrupção. “A CAC tem um tratamento igual para todos. O suspeito pode ser do CNRT, da FRETILIN, ou de outros partidos: devemos investigar todos os casos. Ninguém pode ser colocado debaixo da mesa. Ninguém está acima da lei”, afirmou.
O comissário diz que ainda não consegue enumerar os casos que estão com a CAC, nem referir quais vão ser as prioridades de investigação. Neste momento, estão a ser feitas melhorias na administração, porque todas as decisões administrativas, sendo competência exclusiva do comissário, estiveram suspensas.
Desta nova liderança, destaca-se, para já, a ideia de criar uma direção para a Declaração de Rendimentos, Bens e Interesses (DRBI), que trata do registo da riqueza dos funcionários públicos. O levantamento está a ser feito por uma equipa da Direção Geral da Prevenção e Sensibilização.
Eleito no mês passado, com 41 votos, para o período de 2024-2028, Rui Pereira dos Santos foi assessor legal do vice-ministro da Administração Estatal, Jacinto Rigoberto de Deus, pouco antes de assumir o cargo na CAC. Começou a carreira durante a ocupação indonésia, como assistente de advogado e defensor. O novo comissário também desempenhou funções como juiz no Tribunal Distrital de Díli, de 2000 a 2005, e foi ainda provedor-adjunto da Provedoria dos Direitos Humanos e Justiça (PDHJ) durante quatro anos.
Artigo relacionado: Falta de comissário atrapalha investigação
Capacidade de investigação
O trabalho da CAC foi também colocado em questão pela diretora-executiva do JSMP. Ana Marçal observou que há casos de corrupção que foram absolvidos por falta de provas suficientes e, às vezes, as testemunhas acabaram por não dar a cara.
Sugeriu que a CAC, o MP e outros órgãos de investigação pesquisem com mais profundidade e que se criem mecanismos de segurança para pessoas que fazem denúncias de crime de corrupção. Ana Marçal destacou ainda a necessidade de um acréscimo do orçamento para a comissão, no sentido de capacitar os investigadores e de ter instalações e equipamentos adequados.
A corrupção está relacionada com o mau uso do dinheiro do povo, para proveito próprio ou de alguém. “Já gastámos muito dinheiro, e vemos que o desenvolvimento do país continua a ser lento. Não queremos que o progresso do país seja aproveitado apenas por alguns”, concluiu Ana Marçal.
Artigo relacionado: Em seis anos, corrupção em Timor-Leste causa prejuízo de quase 25 mihões
Fazendo parte da missão da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (UNCAC), Timor-Leste encontra-se entre os países com democracia deficitária, de acordo com o Índice de Perceção da Corrupção (IPC), de 2023. O relatório da Organização Não-Governamental (ONG) Transparência Internacional colocou o país no 70.º lugar entre as 180 nações analisadas, com 43 pontos (em que 100 é percecionado como transparente e 0 como muito corrupto) – precisamente a média global.
“A corrupção vai continuar a proliferar até que os sistemas de justiça consigam punir irregularidades e monitorar os governos. Quando a justiça é comprada ou sofre interferência política, é o povo que acaba por sofrer”, observou o presidente da ONG Transparência Internacional, François Valérian, no estudo.
Leia mais: Timor-Leste no Índice de Perceção da Corrupção
Cuidado com os expeditos!