Entre paredes e teto de bambu, funciona a Escola Básica de Kamlai. As crianças, sem qualquer material didático, acomodam-se num chão de terra. Como as mesas e cadeiras são insuficientes, muitas ajoelham-se ou ficam de pé para acompanhar as aulas. A Direção de Serviços de Educação de Ainaro quer fechar o espaço. Comunidade, no entanto, pretende manter a escola e exige melhorias.
A luz do sol já se espalhou em toda parte de Maubisse. A estrada de terra para uma das aldeias, repleta de pedregulhos e buracos, faz o caminho parecer ainda mais longo. Em Urahou, o ambiente é calmo e muito frio. Não há sinais de carros ou motas por ali. É segunda-feira de manhã e o relógio marca oito horas. Na via, há apenas crianças: carregam nas mãos cadernos e lápis e algumas também pequenas cadeiras ou bancos de plástico.
Vestem uniforme escolar. Umas com sapatos e outras descalças, caminham em direção a um armazém abandonado, com a bandeira de Timor-Leste hasteada, a tremular em frente à construção. O local, de aproximadamente 30 metros quadrados, divididos em duas salas de aula improvisadas, recebe, desde o início deste ano, os alunos da Escola Kamlai.
Os bambus, que ajudam a preencher as paredes e o teto não são suficientes para impedir a entrada da água, quando chove. Dentro do espaço, o chão de terra levanta poeira e não há janelas. É um ambiente ainda mais sufocante nos dias de muito calor. As mesas e as cadeiras são alguns pedaços de materiais de madeira. Atrás do armazém, há uma casa de banho recém-construída, mas sem água.
“Ten… Ten…Ten…”. Um aluno bate num ferro pendurado na árvore. A aula vai começar. A professora gesticula para que todos façam filas à frente da bandeira, como se fosse uma formatura. Em seguida, pede que cantem o hino de Timor-Leste. Aqueles que conhecem a letra entoam em voz alta, enquanto outros ficam em silêncio.
Segue-se agora a oração em língua portuguesa, dirigida pela docente. “São Paulo, rogai por nós”, repetem três vezes.
Finalmente, uma a uma, as crianças começam a entrar no armazém. Sorriem e acenam, entusiasmadas, e vão tomando os lugares. Não há, porém, assentos para todos. Aquelas que não têm a cadeira ou banco de plástico sentam-se no chão de terra, ajoelham-se ou ficam de pé. Tão-pouco há material didático. Para acompanhar as aulas, anotam no caderno o que a professora escreve num quadro preto, pendurado com pregos na parede de bambu.
No espaço, uma chapa de zinco separa dois grupos: a parte esquerda é ocupada por 52 estudantes do 1.º ano e a direita acolhe 37 alunos do 2.º ano.
“Fico com dores nas pernas por estar tanto tempo ajoelhado, mas não tenho cadeira”, lamenta Floriano Carlos, 8 anos. “É difícil escrever quando não consigo ficar numa mesa”, queixa-se Joaninha Mendonça, 12 anos. Para tentar organizar o ambiente e lidar com as duas numerosas turmas ao mesmo tempo, há somente Olandina de Araújo Lopes, 38 anos, a professora de todas as disciplinas.
Esta é a realidade de grande parte das crianças da aldeia de Urahou, estudantes do primeiro ciclo do ensino básico. O lugar em que vivem fica a quatro quilómetros de Maubisse, onde se localiza a Escola Básica Central. Para lá chegar, é preciso enfrentar uma estrada de terra, com muitas subidas, atravessar ribeiras e respirar poeira – na época seca – ou caminhar na lama – na época das chuvas –, num percurso que leva, em média, uma hora e meia a ser percorrido a pé.
Na procura por uma solução, para evitar que as crianças caminhassem, todos os dias, oito quilómetros (ida e volta), um grupo de pais organizou-se e criou o espaço a partir de um armazém abandonado, situado a poucos minutos do lugar onde as crianças moram. A ideia era fazer do lugar uma “extensão” da sala de aula do Ensino Básico Central de Maubisse Vila.
Para isso, firmaram, no ano passado, um acordo verbal com o antigo inspetor de Educação da escola, Manuel Pereira, que já não trabalha neste estabelecimento de ensino.
Apesar das boas intenções dos pais das 89 crianças de Urahou, tanto a Escola Básica Central de Maubisse Vila como os Serviços de Educação de Ainaro não tiveram conhecimento, por via oficial, da criação desta “classe paralela”. Como tal, não houve uma autorização para que as aulas tivessem início. Ainda assim, e com todos os problemas de infraestruturas e de falta de recursos, as aulas continuam a decorrer.
A professora (quase) omnipresente
Olandina de Araújo Lopes é a professora que ensina todos os alunos desta “sala de aula”. Indignada, diz que as condições precárias e o número elevado de estudantes dificultam o trabalho. “Tenho muitos alunos. Muitas vezes, não consigo controlar todas as crianças e fico stressada e zangada. Respiro fundo, contudo, e não deixo as emoções negativas tomarem conta de mim. E continuo a ensinar. A culpa não é delas e sei que são elas o futuro do país”, reflete.
As aulas começam às 8h e acabam ao meio-dia, de segunda a sexta-feira. Não há outro professor que a ajude. Conta que, no início, em fevereiro, chegou a ter o auxílio de mais duas docentes, mas depois “elas foram obrigadas pela escola da vila a voltar ao lugar que tinham deixado”. Olandina ficou. “Estou a ensinar nesta escola, porque recebi, em fevereiro, uma carta da Direção de Educação do posto de Maubisse, sem o conhecimento da Escola Básica Central daquele suco, com um pedido de transferência para Kamlai. Assumi essa responsabilidade e aqui estou a cumprir uma decisão superior”, esclareceu.
Olandina ensina estas duas turmas em simultâneo. Cinco dias por semana, 89 alunos, o mesmo horário. A professora tem de alternar entre uma “sala” e outra a cada 15 minutos, para (tentar) garantir que todos os estudantes estão a acompanhar a matéria. “Quando estou numa das salas, escrevo uma frase no quadro e lemo-la em conjunto. Peço depois aos alunos que copiem a frase para o caderno ou façam um exercício. Passo então para a outra turma e repito o processo”, explica.
A professora ensina sete disciplinas. Num dia, leciona duas diferentes, uma a cada turma. Por exemplo, se no primeiro ano, ensina Tétum, ao segundo ano leciona Matemática. “Não tenho manuais de ensino nem materiais didáticos, o que muitas vezes dificulta a transmissão da matéria para os estudantes”, lamenta.
No primeiro ano, Português é dado, literalmente, a cantar. “Escolhemos músicas para crianças, em língua portuguesa, para cantarmos em conjunto, durante uns cinco ou dez minutos. Depois passamos para outra disciplina”, confessa a professora, que tem de encontrar formas para estimular quase nove dezenas de crianças todos os dias. A disciplina de Artes passa por ajudar os estudantes a pintar flores, casas ou paisagens.
Em Educação Física e Saúde, os estudantes aprendem a cuidar do corpo, sobretudo no que toca à higiene pessoal. Para o Estudo do Meio, a professora mostra-lhes a natureza – como se preparam e mantêm as plantações, como se cuida dos animais, entre outras atividades.
No entanto, afirma que se concentra mais a ensinar a escrita, a leitura e os números. “Alguns alunos já têm 12 anos e ainda têm dificuldade nesta parte. Mas fico contente, porque mostram grande interesse, coragem para aprender e nunca faltam”, conta, com um sorriso orgulhoso.
A professora e os estudantes de Kamlai enfrentam as dificuldades de um ensino sem recursos humanos nem materiais, mas nunca desistem. A existência desta escola motiva as crianças de 4 e 5 anos de Urahou, em idade pré-escolar, a aprender com os alunos do 1.º ano, sendo que alguns já têm dez anos. “Todas as crianças estão entusiasmadas para aprender e não as posso rejeitar. Agora, preciso de muito apoio das famílias, de organizações e do Governo para melhorar as condições da escola”, deixa o alerta.
Serviços de Educação de Ainaro querem fechar a escola de Kamlai
Segundo a diretora-interina da Escola Básica Central de Maubisse Vila, Senhorina de Araújo, nunca aconteceu um encontro formal entre a escola de Maubisse, os Serviços de Educação do município e a comunidade para dar conta da intenção de construir uma escola em Urahou. “Não temos conhecimento oficial da existência de uma escola chamada Kamlai, por isso, consideramo-la ilegal”, afirma.
Senhorina Araújo diz que os Serviços de Educação de Ainaro já decidiram fechar as turmas em Kamlai, mas a professora Olandina não está a cumprir as ordens e continua a ensinar, apesar das constantes chamadas de telefone a pedir que pare com as aulas. “Queremos evitar problemas que afetem o futuro das crianças. Muitos alunos querem ir estudar nessa escola (Kamlai), mas, na realidade, não existe espaço suficiente para todos”, explica a diretora.
A professora Olandina confirma ter sido pressionada. Realça também que não tem a intenção de deixar de dar aulas em Kamlai. “Estou a defender o direito das crianças ao acesso à educação”, afirma.
“Recebi ameaças, dizendo que iriam terminar o meu contrato se continuasse a ensinar os estudantes em Kamlai. Mas não desisti. Temos de manter a esperança, nesta área isolada, para que as crianças mantenham o espírito de querer aprender”, justifica.
A professora informou que, desde o início das aulas, em fevereiro deste ano, não recebeu apoio de nenhuma autoridade. “Sinto-me sozinha nesta luta, porque, até agora, ninguém apareceu para me defender. Somente os pais dos alunos. A comunidade garante que, mesmo que o Governo decida terminar o meu contrato, vai juntar dinheiro para me pagar. No fim de contas, o importante é ensinar os seus filhos”, diz com voz trémula.
Olandina contou que a direção da Escola Central apresentou, como solução, a distribuição dos “seus” 89 alunos pelas escolas filiais reconhecidas em Maubisse. Porém, para chegar a esses estabelecimentos, os estudantes de Urahou teriam de andar vários quilómetros ou contar com o transporte dos pais – que não existe, em muitos dos casos.
Os Serviços de Educação do município de Ainaro chegaram a suspender durante três meses – março, abril e maio – o funcionamento da escola Kamlai. Ainda assim, alguns alunos acabaram por ir até ao armazém, na esperança de que a professora aparecesse.
“Nessa altura, muitos estudantes vinham até aqui. Então os pais ligavam-me a pedir que eu viesse até à escola, porque as crianças estavam à minha espera. Não podia recusar este pedido, mesmo sem aceitação das autoridades”, relatou com uma voz embargada.
O Diligente tentou entrar em contacto com o diretor dos Serviços de Educação de Ainaro, mas não conseguiu nenhuma declaração, uma vez que disse estar ocupado com outro trabalho.
Comunidade garante terreno para construir uma nova escola
O armazém que serve de sala de aula para as duas turmas da escola pertenceu à cooperativa de café da aldeia Urahou. Foi construído em 2003. Kamlai é o nome da área onde está situado. A cooperativa utilizou este barracão, parcialmente terminado, até 2010. Ficou, desde então, ao abandono. Em 2023, o grupo de plantação de café decidiu oferecer, informalmente, este armazém aos Serviços de Educação de Ainaro para ser utilizado como sala de aula.
João Lopes Rodrigues, 46 anos, dono do terreno e responsável pelo armazém, explica que o grupo disponibilizou o lugar, porque “alguns estudantes não iam à escola por viverem muito longe. Muitas crianças chegavam aos 13 anos sem saberem ler nem escrever. Algumas nem se matriculavam”. É na casa de João, localizada perto da escola Kamlai, que as crianças que lá estudam conseguem água para beber.
O agricultor reflete: “No tempo em que devia estudar, os meus pais não quiseram que eu fosse à escola. Muitos outros pais proibiam os filhos de irem à escola devido a ser muito longe e a necessitarem deles para o trabalho no campo. Agora, na era moderna, não queremos que os nossos filhos sejam analfabetos como nós. Eles têm de aprender para terem um futuro melhor”.
João disse estar disposto a disponibilizar o seu terreno de um hectare ao Ministério da Educação para que uma escola, com a devida estrutura, seja erguida no local.
A doméstica Elísia Barbosa, 27 anos, tem quatro filhos a estudar em Kamlai. Se a escola for fechada e as crianças tiverem de se deslocar para uma dos estabelecimentos de Maubisse, não sabe como vai fazer para que os filhos continuem a estudar. Segundo Elísia, Kamlai “permite minimizar a deslocação dos alunos e dá oportunidade aos pais para trabalharem, sabendo que os filhos estão na escola”.
A mulher mostra-se convicta de que a comunidade não vai permitir que o Governo encerre definitivamente a escola. “Estamos a criar condições para que as crianças desta zona possam gozar o seu direito de acesso à educação”.
Elísia, João, outros pais e membros da comunidade é que também garantem o lanche das crianças, todos os dias, em Kamlai.
Desencontro de informação
O Diretor-Adjunto Nacional de Inspeção (DNI) do Ministério da Educação, Jaime da Cruz, afirma que o Governo já tem toda a informação relativa às condições da Escola de Kamlai e garante que em breve vai enviar o relatório ao gabinete da ministra para que se tome uma decisão.
“Estamos a par da existência desta escola. Consideramo-la uma extensão da Escola Básica Central de Maubisse e não uma nova escola básica filial. Já pedimos às autoridades locais e à comunidade para identificarem um terreno que reúna as condições necessárias de modo a que, mais tarde, o Governo possa construir uma escola nova”, explica o adjunto Jaime da Cruz.
O representante da DNI afirma ainda que o Ministério da Educação tem como prioridade levar a educação até à comunidade por considerar que muitas crianças em Timor-Leste vivem em áreas rurais e têm dificuldades no acesso ao ensino. “Queremos aproximar o ensino da comunidade e motivar as crianças a aprender, porque o acesso à educação é um direito básico de todos os cidadãos”, disse.
Questionado sobre a falta de recursos humanos e materiais nas salas de Kamlai, como materiais didáticos e mobiliário, o adjunto aponta o dedo à direção da Escola Básica Central e diz que são eles que devem procurar soluções junto do Governo. “Sendo uma extensão da escola do Ensino Básico Central e não uma escola nova, a diretora pode enviar alguns professores do 1.º ano para ajudar a ensinar nesta escola de Kamlai”.
Em resposta a esta questão, a diretora da Escola Básica Central de Maubisse vila, Senhorina de Araújo, reitera que este estabelecimento não pode enviar material nem professores para Kamlai, pois a escola que dirige também enfrenta problemas, como a falta de recursos humanos.
“O Governo precisa de controlar a comunidade para que não abram escolas como se fossem quiosques. Temos de olhar primeiro para as condições das escolas oficiais. Não queremos que, no futuro, os estudantes sejam vítimas destas políticas de educação descontroladas”, destaca, num tom de indignação.
A Escola Básica Central de Maubisse Vila regista, atualmente, 875 alunos do 1.º e 2.º ciclos. O corpo docente é formado por 17 elementos – 15 professores efetivos e dois contratados. Destes 17 professores, sete estão a atingir a idade da reforma.
O baixo investimento do Governo na Educação reflete-se na realidade do ensino em Timor-Leste.
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A maioria das escolas públicas, sobretudo nas áreas rurais, não tem condições. A insuficiência de manuais e de material escolar é evidente e a falta de professores leva à busca de soluções, no mínimo, pouco pedagógicas, como o “milagre da multiplicação ou da omnipresença”.