Timor-Leste: Entraves à liberdade de imprensa no país que o jornalismo libertou

Timor-Leste ocupa o 17º lugar no ranking da Liberdade de Imprensa: realidade é diferente/Foto: DR

A profissão de jornalista ainda não é devidamente valorizada e respeitada pelos líderes e diferentes hierarquias do país. Este sentimento é transversal à maior parte dos profissionais da comunicação social e representa um dos muitos obstáculos ao jornalismo em Timor-Leste.

20 de outubro de 2022, Tribunal Distrital de Díli. Carta entregue e carimbada pelos serviços administrativos e promessa de contacto, sem data definida. 25 de outubro, contacto e deslocação a este órgão para o encontro com o juiz, que afinal não estava disponível. 26 de outubro, o magistrado continua indisponível. 27 de outubro, nova deslocação. Por aconselhamento de um colega, ida, sem autorização, à sala do juiz, onde se o encontro, sete dias depois da entrega da carta.

Não é só no Tribunal. São cartas e mais cartas. Cartas sem resposta, cartas que se perdem nas instituições ou cartas que vêm para trás por faltar apenas o título de “doutor” da pessoa a quem se dirigem, num país onde o correio eletrónico de nada serve e os sítios de internet das instituições estão, muitas vezes, desatualizados.

É esta a realidade dos jornalistas timorenses, classe profissional de “magros, pretos, baixinhos”, nas palavras do Chefe do Estado-Maior-General das FALINTIL-Forças de Defesa Nacional de Timor-Leste (F-FDTL), o Tenente-General Falur Rate Laek. O desrespeito pelo trabalho dos profissionais de comunicação social timorenses não se sente só nas dificuldades de acesso a informação. É também visível na relação com os líderes do país.

A falta de transparência no acesso às informações das instituições públicas e privadas aliada à desconfiança sobre a capacidade e responsabilidade dos jornalistas, quer das fontes quer da sociedade timorense em geral, prejudicam a atividade jornalística em Timor-Leste.

Falamos do país que ocupa o 17.º lugar, num total de 180, do ranking mundial da liberdade de imprensa divulgado em 2022 pela organização Repórteres sem Fronteiras (RSF), mas onde os jornalistas não têm condições para fazer um jornalismo mais crítico e caem, muitas vezes, na autocensura. Um jornalismo acrítico que não incomoda, não levanta problemas e não compromete a posição do país no ranking dos RSF.

“As instituições do Estado não disponibilizarem informações de forma transparente cria obstáculos ao trabalho jornalístico”

As dificuldades no acesso à informação

Provedoria dos Direitos Humanos e Justiça (PDHJ), Polícia Nacional de Timor-Leste (PNTL), Direção-Geral de Estatística, representação da UNICEF em Timor-Leste ou Fórum de Comunicação para as Mulheres de Timor-Leste (Fokupers) são algumas das entidades onde os jornalistas precisam de despachos e autorizações para aceder a dados que, muitas vezes, deviam ser públicos.

Os jornalistas que procuram informação ficam indefinidamente à espera de uma resposta. Insistem: telefonam, enviam e-mails, vão pessoalmente aos sítios. Quase sempre em vão. As respostas ou não chegam ou chegam tão tarde que prejudicam a publicação dos trabalhos jornalísticos. Muitas vezes, chegam depois da notícia ter sido publicada.

O dia a dia dos jornalistas timorenses que querem fazer um trabalho mais detalhado é, assim, preenchido com voltas e mais voltas para entregar cartas, com dias perdidos a aguardar despachos, a mendigar dados que deveriam ser públicos e estar disponíveis à distância de um clique.

Para Mário da Costa, editor do Timor Post, esta situação é familiar: “Além de termos de entregar cartas, às vezes, não respondem e, muitas vezes, até as perdem”.

Uma jornalista que prefere não ser identificada passou por esta situação em outubro do ano passado. Foi confirmar se podia entrevistar uma provedora da PDHJ, porque entregara já a carta, mas a rececionista disse-lhe que a perdera. “Teria de entregar um novo pedido e ficar à espera de um despacho”, revelou-nos a jornalista, visivelmente frustrada por não conseguir avançar com a reportagem em que trabalhava já há algum tempo.

Acesso à informação em Timor-Leste é dificultada pela burocracia/Foto: DR

António Sampaio, jornalista português da Lusa em Timor-Leste, também se queixa da falta de acesso a informação pública: “O facto de as instituições do Estado não disponibilizarem informações de forma transparente, nem nos seus sites, cria obstáculos ao trabalho jornalístico”. Aponta também a dificuldade da imparcialidade. “Em Timor, é muito difícil encontrar analistas independentes. Às vezes, alguém diz que é independente, mas não é. São sempre afiliados de um partido”, explica.

O ex-presidente do Conselho de Imprensa (CI), Virgílio da Silva Guterres, destaca que os jornalistas são pontes de transmissão das informações públicas, portanto “em vez de dificultar o trabalho jornalístico com burocracia, é melhor garantir o acesso às informações, porque o trabalho burocrático não compete ao jornalista”.

Francisco Jerónimo, ministro dos Assuntos Parlamentares e da Comunicação Social (MAPCOMS), confirma a necessidade de os jornalistas entregarem cartas a pedir autorização para entrevistas ou acesso a dados, mas realça que já “deu indicações aos colegas no Conselho de Ministros para facilitarem o trabalho dos jornalistas”.

Já Virgílio Guterres aponta o dedo aos governantes: “Há ministros que têm dificuldades em orientar o pessoal das relações-públicas, o que dificulta o acesso às informações”.

Também o desconhecimento generalizado sobre o papel do jornalista na sociedade impede a obtenção de dados. Muitas fontes acreditam que os jornalistas não vão proteger a sua privacidade, por isso, evitam entrevistas e escondem as informações.

“Às vezes, as fontes pensam que os jornalistas só querem estragar o bom nome do entrevistado ou da instituição. Então, não revelam alguns dados”, comenta o editor do Timor Post. O acesso à informação depende, assim, muitas vezes, única e exclusivamente da boa relação que o jornalista tem com as fontes.

“Queremos saber que crime cometemos”

O medo de abordar temas sensíveis e as ofensas aos jornalistas

Num questionário feito pelo Diligente a 48 jornalistas timorenses, aproximadamente 44% confessaram sentir medo de abordar assuntos mais sensíveis, entre eles questões ligadas à Igreja.

Casos recentes ilustram esse receio. António Sampaio dá o exemplo do facto de a comunicação social timorense ter preferido ignorar o caso de Dom Ximenes Belo, suspeito de pedofilia. A Lusa acabou por ser o único órgão de comunicação social em Timor-Leste a noticiar a investigação da jornalista holandesa ao bispo.

No entanto, o ato teve custos. Sampaio conta que foi alvo de ataques racistas e xenófobos e intimidado. Eis alguns comentários publicados no Facebook: “Os católicos têm de ter cuidado com o jornalista da Lusa. Ele quer estragar o nome da Igreja com a notícia sobre D. Carlos. Tudo é inventado. Sai esquerdista!”; “Mandem a LUSA e o António Sampaio sair de Timor”; ou “Vem em busca de dólares no nosso país, que foi escravizado pelos seus ancestrais e ainda insulta o nosso Bispo que lutou pela nossa independência”.

Em Timor-Leste, os jornalistas não são livres, porque ainda há intimidações. Quem o diz é Jorgino dos Santos, chefe da redação do jornal Independente. “Nenhum órgão de comunicação social timorense faz, por exemplo, trabalhos de investigação sobre os veteranos”, afirma Jorgino. E prossegue: “A posição de Timor-Leste no ranking mundial da RSF não corresponde à realidade”.

Assuntos sensíveis: Igreja, veteranos e líderes políticos. Um estudo levado a cabo em Timor-Leste, sobre as principais dificuldades dos jornalistas no exercício da profissão – Estudo das Necessidades Formativas dos Jornalistas de Timor-Leste – destaca a falta de pensamento crítico dos profissionais no ativo e “a falta de consciência relativamente ao papel e à responsabilidade social do jornalismo”.

A relação com as fontes é “outro grande obstáculo e está intimamente ligada à forte politização das notícias”, o que condiciona a liberdade profissional destes jornalistas, que na maioria das vezes receiam questionar os dirigentes.

O ex-Presidente do CI destaca a autocensura dos jornalistas: “Por vezes, ainda há barreiras entre os jornalistas e os líderes. Devido à bagagem política pesada de muitos deles, os jornalistas perdem a coragem de levantar questões sérias e críticas”, afirma Virgílio.

Sobre os dirigentes políticos, o ministro não se quer pronunciar, mas fala do papel do Conselho de Imprensa. “Não faço comentários sobre a consciência dos líderes, porque cada um tem a sua própria opinião, mas temos de gerir essa situação de acordo com a lei. O Conselho de Imprensa tem de sensibilizar o público”, afirma.

Os jornalistas devem ter a capacidade de questionar e não depender apenas das respostas das fontes. “Os jornalistas perguntam, mas não questionam”. O jornalismo é questionar, “perguntar é uma coisa que as crianças também fazem aos seus pais”, adverte Virgílio.

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Jornalistas muitas vezes são desrespeitados pelas autoridades/Foto: DR

Muitos timorenses ainda acreditam que os líderes históricos têm o direito de fazer e dizer o que quiserem, mesmo que isso implique desrespeitar as pessoas ou leis. O facto de terem lutado pela independência do país confere-lhes impunidade.

09 de setembro de 2022. Um grupo de jornalistas questiona o Tenente Falur Rate Laek sobre os confrontos violentos em Díli entre elementos de grupos de artes marciais. A resposta vem em forma de insultos: “Jornalistas magros, pretos, baixinhos, não podem inventar informações”. Uma plateia de membros das F-FDTL e da PNTL ri-se sem pudor do comentário, mesmo sabendo que estava a ser filmada.

“O público ainda não tem confiança nos jornalistas, incluindo o Presidente da República, Ramos Horta, que não confia nos jornalistas timorenses. O PR, quando fala com jornalistas estrangeiros, fala sobre tudo, mas com os nacionais não”, afirma o chefe de redação do Independente.

Sampaio defende, contudo, que há uma descredibilização do trabalho dos jornalistas timorenses devido à falta de rigor. “A confiança é uma relação que se constrói através de não se enganar os outros. Às vezes, os jornalistas não entendem o assunto devido à falta de formação adequada”, afirma. E as notícias saem com informações incorretas.

Mário da Costa não partilha da mesma ideia. “Os jornalistas são novos, então, às vezes, as fontes não acreditam neles, mesmo que já tenham capacidade suficiente para fazer cobertura”, argumenta.

Não é só de desconfiança e ofensas que vive a relação dos jornalistas timorenses com as autoridades. Jorgino chegou mesmo a ser notificado pelo Serviço de Investigação Criminal Nacional na sequência de uma notícia publicada, no ano passado, pelo jornal Independente, sobre suspeitas de que o Governo teria demitido Gastão Piedade, investigador do Serviço Nacional de Investigação (SNI), por alegadamente ter divulgado dados sobre um processo.

Jorgino, o chefe de redação, foi notificado pelo Serviço de Investigação Criminal Nacional (SICN) da Polícia Nacional de Timor-Leste (PNTL), com base no artigo 53.º do Código de Processo Penal de Timor-Leste, que prevê “a identificação de qualquer pessoa sobre quem haja suspeita de que se prepara para cometer, ou tenha cometido, ou participado na prática de um crime”. O que Jorgino desconhece é que crime ele e o jornalista cometeram. “Queremos saber que crime cometemos”, reivindica.

Para resolver os problemas dos profissionais de comunicação social timorenses, Sampaio deixa um conselho. As associações de jornalistas e o Conselho de Imprensa “deviam acompanhar o dia a dia do trabalho jornalístico para garantir que o Estado timorense lhes facilita a vida”. Jorgino também acredita no poder da união das associações para “informar os cidadãos e estes não terem medo de colaborar com a comunicação social e compreenderem melhor a atividade jornalística”.

O país que se libertou com a ajuda corajosa de jornalistas é agora o mesmo país que, com uma Constituição e legislação em defesa da liberdade de imprensa, não dignifica o papel dos profissionais de comunicação social. A luta de Timor-Leste passou da libertação para o desenvolvimento nacional. Em qualquer destes combates uma condição obrigatória: a presença de um jornalismo corajoso e forte.

*No último ranking da liberdade de imprensa divulgado pelo RSF, em maio deste ano, consta que Timor-Leste subiu sete posições, figurando agora no 10º lugar.

 

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  1. Saudacoes timorenses!
    Gostaria de congratular o Diligent e toda a “familia jornalistica” que o compoe.
    Nao e tarefa facil ser jornalista em nenhuma parte do mundo. Mas ainda mais dificil quando se pretende escrever honestamente e dizer as verdades. Os politicos nao gostam das verdades e os de Timor nao fogem a essa regra.
    Daqui a 2 geracoes espero que isso made. E preciso muita educacao e evolucao de todo o Povo. Nao se deixem intimidar por quem quer que seja. Se mais mundo houvera o Diligente la chegara, nem que seja de beiro ou de rastos.

  2. Entraves que a maioria dos jornalistas não quetiona. O pior é que, mesmo que saiba, cala-se.

    Dói-me o coração ao ler esta reportagem, assim como em relação às outras.

    Que Deus salve o futuro deste povo inocente!

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