Placentas, a esperança enterrada ou suspensa nas árvores de Timor-Leste

As placentas são enterradas ou penduradas juntamente com alguns objetos/Foto: Diligente

Famílias acreditam que o ato de enterrar ou pendurar este órgão após o nascimento do bebé pode fazer “milagres” pelas crianças.

Lavam-na para retirar o sangue. Enrolam-na em plástico e colocam-na numa cesta ou balde pequeno. A ela, juntam o alfabeto, algarismos e alguns desenhos num caderno, mas também lápis e canetas. É tudo depois pendurado na árvore, numa das várias de Díli que recebem placentas após o parto. A tradição é da família do agricultor Júlio Pinto Correia, mas também de muitas outras em Timor-Leste.

A placenta forma-se durante a gravidez e tem, entre outras funções, fornecer nutrientes e oxigénio ao bebé durante o desenvolvimento. Eliminada naturalmente após o parto, em muitos países transforma-se num resíduo hospitalar. Em Timor-Leste, contudo, as famílias consideram este órgão um “irmão” ou um dos “avós” do recém-nascido.

Para garantir o futuro e bem-estar da criança, é preciso, por isso, pendurar ou enterrar a placenta com alguns objetos. Se em algumas partes do país se opta por enterrar o órgão, em outras é mais comum que a placenta seja colocada no alto das árvores.

Natural de Lautem, Júlio, 60 anos, pai de três meninas e um menino, conta que pendura a placenta para “pedir vida, proteção, alegria e inteligência para as crianças”. A árvore onde coloca o “irmão do bebé” tem de ser forte e de grande porte para que os animais não destruam. São normalmente escolhidos os gondoeiros ou tamarindeiros.

Enterrar a placenta? Nem pensar, diz Júlio. É proibido, porque pode trazer malefícios à criança. Conta-nos que enterrou uma vez uma placenta e, durante três semanas, o bebé ficou doente. A família recorreu a um curandeiro, conhecido em Timor-Leste como “matan dook”, e descobriu que o bebé chorava por causa do enterro do “irmão”. “Desenterrei a placenta e fui pendurá-la na árvore. Até agora, está tudo bem com o meu filho”, afirma convicto.

Tradição que varia

Os gondoeiros ou tamarindeiros são, normalmente, as árvores escolhidas/Foto: Diligente

Porém, esta tradição já não é o que era. Não é o estômago que agora manda. Mais importante é a cabeça. “Antigamente, os avós costumavam colocar feijão verde, milho, batata-doce ou mandioca para que o bebé, quando crescesse, não rejeitasse estes alimentos. Agora, a tradição começa a mudar. Costumo juntar materiais escolares para ter vontade de estudar e ser inteligente”, revela Júlio. O agricultor e a família acreditam que estes objetos, colocados na placenta, vão motivar a criança para a aprendizagem.

Se para Júlio enterrar a placenta significa azar, para Ana Maria, de 59 anos, o ato é uma forma de atrair qualidades para o desenvolvimento da pessoa. Tem de ser enterrada perto de casa, junto a um tanque de água ou da casa de banho para que fique sempre “fresquinha”. Após o parto, este órgão é entregue ao pai ou ao tio do bebé e levado diretamente para casa.

O indivíduo responsável por esta tarefa deve sair de madrugada e nunca à tarde de modo a que as expectativas da família para o bebé não sejam defraudadas. “Enterramos ao amanhecer para garantir que a criança, quando crescer, é diligente, acorda muito cedo para fazer o trabalho doméstico, antes de ir para a escola. Se enterrada ao meio-dia, pode ficar preguiçosa”, justifica.

Para a mãe de sete crianças, enterrar a placenta é melhor, pois não se correm riscos com os animais e não há mau cheiro. As placentas dos seus filhos foram todas enterradas. E mais uma superstição: “Tenho medo de pendurar, porque as pessoas com outros interesses podem tirar a placenta e provocar desgraças para os nossos filhos”, argumenta.

Segundo a doutora em Psicologia Helena Manuel, na sua tese “Crenças, atitudes e práticas de saúde reprodutiva em Timor-Leste”, de 2012, foi sobretudo depois da ocupação indonésia que os timorenses começaram a enterrar as placentas por não encontrarem árvores grandes, como o gondoeiro, perto dos locais em que viviam.

As crianças timorenses não são as únicas com “irmãos” em forma de placenta.  Helena Manuel dá conta de que na vizinha Indonésia, em ilhas como Sumatra, Java e Lombok, o órgão é designado como “o irmão mais novo”. Diferentes rituais e crenças em torno da placenta estendem-se ainda a outros países – Nepal, Guatemala, Tailândia, Vietname, Filipinas, Mali ou Burkina Faso.

As tradições, porém, não servem de muito a Júlio da Costa Silva, médico de clínica geral do Centro Saúde de Comoro, em Díli. O profissional costuma explicar às parturientes que a placenta, “após o nascimento, não tem qualquer função para o crescimento e desenvolvimento das crianças”.

O médico conta que o órgão, geralmente, é motivo de preocupação de pais e familiares dos recém-nascidos. “A família tem o direito a levar a placenta. O hospital não a guarda. Depois do parto, a família preocupa-se mais com a placenta do que com o bebé”, critica.

O hospital recomenda também às famílias para enterrarem todas as placentas e garantirem a saúde pública, afastando o mau cheiro.

Da tradição à poluição

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Árvores tornam-se focos de lixo/Foto: Diligente

Quem circula pelas ruas da capital de Timor-Leste confronta-se com vários focos de lixo amontoados. Um dos que mais impressiona é o dos sacos de plástico, baldes e cestas com placentas penduradas em árvores de locais públicos.

Numa cidade com temperaturas tão elevadas como Díli, a sombra das árvores convida ao descanso, mas nem sempre é possível. Por vezes, a brisa lança um cheiro insuportável. A prática de pendurar as placentas é também frequente nos municípios timorenses, porém, na capital, a concentração populacional acaba por transformar a tradição em poluição.

Junto à estrada do Hospital Nacional Guido Valadares, em Díli, um gondoeiro carrega inúmeras placentas. Perto do local, a cerca de oito metros, um restaurante.

Debaixo da árvore, vendedores ambulantes de fruta aguardam clientes. Gabriel Joaquim Martins, um desses vendedores, não esconde a perplexidade. “Fico assustado com esta cena. Por que razão penduram os resíduos dessa forma em plena capital?”, pergunta indignado.

Em Tasi Tolu, o mesmo cenário desponta num local de atração turística, a estátua de João Paulo II, considerada sagrada depois da realização da missa, em 1989, deste Papa. Os moradores queixam-se. “Somos afetados pelo cheiro provocado pelas placentas penduradas”, lamenta Estevão de Jesus.

Também o Secretário de Estado do Ambiente, Demétrio do Amaral de Carvalho, já fez apelos de que não se pendurassem placentas de bebés em locais públicos. Além do mau cheiro, a prática atrai insetos.

“As famílias em Díli que praticam e mantêm as tradições devem respeitar a higiene pública. Têm de assegurar um ambiente limpo e sem mau cheiro. Todos têm de contribuir para a saúde pública”, defende o governante.

No entanto, muitas famílias continuam indiferentes às críticas e aos apelos. Perante tantas adversidades enfrentadas pelas crianças timorenses, é preciso acreditar que uma placenta pode mudar o rumo das suas vidas. É a esperança pendurada nos gondoeiros e tamarindeiros de Díli. Pouco interessa se essa esperança não cheira bem.

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  1. Gostei do artigo…bastante rico e uma descrição bem detalhada sobre o sentido positivo desta tradição vivida desde os nossos antepassados! É bom que cada um tenha conhecimento sobre esta tradição!

  2. Alguem pediu as arvores se nao se importavam
    que lhe mudassem a estetica?
    A meu ver e se fosse arvore nao gostaria de ter objectos estranhos pendurados.
    Talvez se criassem monumentos proprios em cimento para essa finalidade?
    Afinal as arvores nao tem liberdade?
    As arvores nao tem dizer?

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