Estado aloca duas vezes mais recursos para a Igreja Católica do que para o Hospital Nacional: o que é que os cidadãos pensam?

Oratório na sala de emergência do HNGV: espaço atende, em média, 170 pacientes de todo o país diariamente/Foto: Diligente

Este ano, enquanto a Igreja tem à disposição 27 milhões de dólares americanos, ao HNGV foram atribuídos 13,5 milhões de dólares americanos.

A discrepância no financiamento público ao Hospital Nacional Guido Valadares (HNGV) e à Igreja Católica em Timor-Leste está a gerar controvérsia.

Em fevereiro deste ano, o Governo comprometeu-se a fornecer uma subvenção de 15 milhões de dólares americanos à Conferência Episcopal Timorense (CET), “para a realização de atividades nas áreas educativa, social e de governo eclesial” até ao fim de 2024.

A formalização do acordo aconteceu no dia 15 de fevereiro, numa cerimónia no Palácio do Governo, em Díli, contando com as assinaturas do vice-Primeiro-Ministro e Ministro Coordenador dos Assuntos Sociais, Mariano Assanami Sabino, e o Arcebispo da Arquidiocese Metropolitana de Díli, Dom Virgílio do Carmo da Silva.

Assinatura do acordo que garantiu 15 milhões de dólares americanos à Conferência Episcopal Timorense/Foto: Governo de Timor-Leste

Segundo o censo de 2022, o catolicismo é a religião de 97,5% da população de 1,3 milhões de habitantes em Timor-Leste. Desde 2015 o Estado repassa dinheiro público à CET, através de tratados que “preveem uma contribuição anual, conforme a disponibilidade financeira do Governo”, como consta numa notícia na página oficial do Executivo. No ano passado, a CET também recebeu 15 milhões de dólares americanos do Estado.

Além disso, devido à visita do Papa Francisco a Timor-Leste, de 9 a 11 de setembro deste ano, o Governo autorizou o empenho de mais 12 milhões de dólares americanos à Igreja Católica, para a preparação do grande evento. Esta medida foi deliberada em reunião do Conselho de Ministros, a 28 de fevereiro. Assim, em 2024, a referida instituição religiosa timorense tem à disposição 27 milhões de dólares americanos em recursos públicos.

O valor corresponde ao dobro do que o Executivo reservou para o HNGV este ano: 13,5 milhões de dólares americanos, de acordo com o Portal de Transparência. A quantia é dividida em: salários e vencimentos; bens e serviços correntes; capital menor e capital de desenvolvimento.

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Valor do OGE reservado ao HNGV em 2024/Fonte: Portal de Transparência do Orçamento

 

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Distribuição dos recursos ao HNGV/Fonte: Portal de Transparência do Orçamento

O Orçamento Geral do Estado (OGE) de 2024 é de 1,9 mil milhões de dólares americanos.

A situação no HNGV, sempre dramática, tem-se agravado desde o fim do ano passado, com a constatação de falta de medicamentos, profissionais, falhas de eletricidade e comprometimento das infraestruturas. O HNGV atende tanto cidadãos nacionais como internacionais, desempenhando um papel crucial no país. Em média, passam pelo hospital 170 pacientes todos os dias.

A Constituição da República Democrática de Timor-Leste, no artigo 57.º, destaca que “todos têm direito à saúde e à assistência médica e sanitária”. O mesmo artigo estipula que o Estado deve criar um serviço nacional de saúde universal, geral e, na medida das suas possibilidades, gratuito.

Para tentar perceber o que a população pensa sobre a diferença na atribuição de recursos públicos à Igreja Católica e ao HNGV, o Diligente saiu à rua.

“A atribuição do OGE para o HNGV demonstra que a saúde dos cidadãos comuns não é prioridade do poder. Pergunto-me, quem é que os governantes estão a representar?”

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Maria do Céu Jorge Oliveira Gusmão, 29 anos, empresária

“O HNGV enfrenta muitas dificuldades que têm prejudicado o atendimento, mas o Governo não se preocupa e prefere atribuir uma quantia mais avultada à Igreja Católica. A vida das pessoas deveria ser a prioridade do Governo.

O Executivo tem de alocar mais recursos para o HNGV. Os problemas do setor da saúde estão à frente dos nossos olhos. Porque é que o Governo finge não ver?

O lema do bem comum é apenas propaganda dos governantes, porque, na verdade, as políticas públicas não têm em consideração as necessidades do povo, apenas se preocupam em garantir as regalias dos governantes e deputados. Ninguém se preocupa com a população.

Quando os deputados e governantes e os seus familiares adoecem, vão para o estrangeiro devido aos privilégios que o povo lhes oferece. No entanto, a alocação do OGE para o HNGV demonstra que a saúde dos cidadãos comuns não é prioridade do poder. Pergunto-me, quem é que os governantes estão a representar? É uma vergonha num estado de direito democrático.

O valor de 12 milhões de dólares americanos para a visita do Papa revela ignorância do Governo. É só para mostrar ao mundo que estamos bem, mas na realidade não, o povo está a sofrer muito. Jesus Cristo não viveu no luxo como vivem os padres hoje em dia, ele defendia os oprimidos, os vulneráveis e os pobres. Não tinha privilégios. Será que os padres timorenses atuais são representantes de Cristo?

Os governantes só precisam do povo durante a campanha, mas depois de conseguirem os votos, esquecem-se das promessas que fizeram e deixam a população em sofrimento. Recomendo que o Governo trabalhe para trazer prosperidade para o povo, porque é ele o verdadeiro governante de um estado de direito democrático”.

“Ter acesso a cuidados de saúde gratuitos é um direito básico, protegido pela Constituição, e o papel do Governo é assegurá-lo. No entanto, o Governo sacrifica o HNGV, que trata da vida das pessoas, e investe na Igreja que não traz nenhum retorno”

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Amandina da Silva, 28 anos, ativista dos Direitos Humanos da Asian Justice and Rights (AJAR)

“Esta alocação está enviesada, porque o nosso Governo falha ao não identificar os setores mais importantes do país. Normalmente, os assuntos sociais são a prioridade, porque estão diretamente ligados com os direitos humanos, como os setores da educação, saúde e infraestruturas.O HNGV é uma instituição que trata da saúde, que é um direito básico. O Governo deveria assegurar a saúde do seu povo, porque uma pessoa só pode contribuir para o país se estiver saudável.

Eu não sei o que a Igreja faz, porque ainda há muita pobreza. Não me parece que a Igreja Católica resolva os problemas do povo.  A realidade só muda se houver políticas públicas eficazes e não com orações.

A Igreja trata de questões morais e espirituais. Acho que para isso não há necessidade de alocar uma quantia tão elevada.

Ter acesso a cuidados de saúde gratuitos é um direito básico, protegido pela Constituição, e o papel do Governo é assegurá-lo. No entanto, o Governo sacrifica o HNGV, que trata da vida das pessoas, e investe na Igreja, que não traz nenhum retorno.

Considero que a situação atual do HNGV é muito grave e não podemos permitir que continue assim. O Governo deve investir mais na saúde e proceder a uma intervenção imediata.

A Igreja católica timorense ganha muito dinheiro. A paróquia de Aimutin, que recebeu o apoio do Governo para ser construída, ainda não está terminada e o Governo não fez uma auditoria.

Além da saúde, a educação é um setor muito importante. O governo também deve investir na educação, de forma a melhorar as condições das escolas públicas. Os que não têm capacidade de pagar uma escola privada, deveriam poder ter acesso a um ensino público de qualidade.”

“É normal que o governo aloque grandes fundos para a Igreja num país onde a maioria da população é católica. A Igreja conforta os cidadãos, quando estão a viver algum problema e garante a segurança, quando há algum conflito no país”

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Amaro Pereira, 26 anos estudante de Filosofia na UNTL e membro da associação Jovem ba Kristu

“Eu sei que o HNGV está a enfrentar muitos problemas. Há falta de medicamentos e é preciso mais apoio para melhorar o atendimento, mas não é razão para diminuir o orçamento para a Igreja. É normal que o governo aloque grandes fundos para a Igreja num país onde a maioria da população é católica. A Igreja conforta os cidadãos, quando estão a viver algum problema e garante a segurança, quando há algum conflito no país.

O hospital receber pequenos fundos não é um grande problema, desde que os saiba gerir bem, pode tratar os pacientes.

Com a vinda do Papa, a Igreja deveria receber mais fundos para preparar tudo.

A visita do Papa é uma honra e um sinal de graça, e temos de nos preparar bem para o receber, bem como preparar locais adequados para receber os estrangeiros.”

“Eu aceito que a Igreja também deve receber dinheiro do Governo para que possa desenvolver-se, uma vez que vivemos num estado em que a maioria da população é católica. No entanto, o Governo precisa de avaliar as prioridades da população”

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Liliana Pinto Guterres, estudante da Faculdade de Medicina Geral na UNTL

Liliana Pinto Guterres, estudante da Faculdade de Medicina Geral na UNTL “Eu aceito que a Igreja também deve receber dinheiro do Governo para que possa desenvolver-se, uma vez que vivemos num estado em que a maioria da população é católica. No entanto, o Governo precisa de avaliar as prioridades da população. O setor da saúde precisa de mais investimento do que a Igreja, porque há falta de medicamentos e de recursos. Algumas pessoas morreram por falta de fármacos. Atualmente, a Igreja não tem necessidade de receber mais dinheiro do que o hospital. Os cidadãos com salários baixos não conseguem adquirir medicamentos.”

“A Igreja tem uma influência enorme no país, então o Governo aproveita-se disso, através da atribuição de grandes quantias de dinheiro, com o propósito de garantir o seu poder”

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Miguel Moniz Silva, 31 anos, ativista/Foto: Diligente

“Quando falamos sobre a alocação do orçamento e questões que têm relação com o poder, estamos a falar sobre as decisões políticas de um Governo, e a Igreja não recebeu dinheiro só este ano, mas já há muitos anos que recebe. Porque é que num país democrático é preciso de investir numa instituição que cuida da moral das pessoas? A Igreja deveria recusar o dinheiro do Governo para que não perca a sua liberdade de controlar as más ações no país, para falar sobre a humanidade e o bem comum.

As instituições que se “abraçam” são perigosas, porque pode haver uma tendência de se protegerem umas às outras. A Igreja tem uma influência enorme no país, então o Governo aproveita-se disso, através da alocação de grandes quantias de dinheiro, com o propósito de garantir o seu poder. A Igreja tem muitos rendimentos de várias fontes, como as escolas católicas, missas, administrações e outras, por isso, deveria rejeitar o dinheiro do Governo.

Para além disso, a população não tem acesso à forma como os recursos são usados, por isso é difícil dizer se o orçamento é corretamente usado e se tem retorno para a sociedade. De acordo com as reclamações públicas em redes sociais, as condições do hospital estão a deteriorar-se em termos de infraestruturas, medicamentos e outros recursos. No entanto, sabemos muito bem como são as condições da Igreja.

Não há ninguém que não precise de tratamento de saúde, todos nós precisamos, mas o Governo não se responsabiliza por garantir esse direito. Todos se queixam da falta de condições no HNGV, mas qual é a política imediata do Governo? Trata-se de uma necessidade de todos os cidadãos e o Governo tem de responder a estes problemas!

Para garantir a sustentabilidade do Estado é muito importante o investimento humano, claro que se deve investir na educação para formar recursos humanos qualificados. A geração atual não pode fazer muito por limitações intelectuais, e isso não pode continuar. A próxima geração tem de ser melhor do que a atual. A educação é, a par da saúde, um setor crucial para garantir a sobrevivência do Estado.”

 

 

Ver os comentários para o artigo

  1. E a maneira mais sagrada de desviar dinheiro do Estado! Uma vez no bolso dos padrecos, alguns destes milhoes serao encaminhados para o Banco Nilton Companhia limitada!

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