“Chega! Que não aconteça a mais ninguém!”

O Centro de Treinamento da Casa Vida dá formação às vítimas em diferentes ofícios/Foto: Diligente

Vítimas timorenses de abusos sexuais contam como fizeram para se libertar e falam do recomeço oferecido pela Casa Vida, que acolhe casos de todo o país.

“Eu não sabia nada, mas percebi que era o comportamento de um casal. Ele é meu pai, por que me fez isto? Não pude contar nada a ninguém, porque o meu pai é violento e tinha muito poder no nosso suco, era chefe da aldeia e uma pessoa importante”, afirma Martalena Pinto, a Marta.

“Eu não sabia o que sentir naquela noite. Só senti dor e medo. Não soube como reagir, porque ele era um bom irmão. Comprava-me as coisas que eu queria, tratava-me bem e nunca me tinha magoado”, revela Juliana França Ribeiro.

A falta de conhecimento das meninas fechou-lhes a porta da liberdade e não lhes permitiu perceber que estavam a ser abusadas. Achavam que era inútil falar, porque ninguém as iria ajudar. Infelizmente, tinham razão. Foram os próprios familiares, os vizinhos e a sociedade que lhes viraram as costas, que as insultaram, que lhes bateram quando contaram o que lhes tinha acontecido. Tinham 15 anos quando foram violadas pelos seus familiares.

Marta foi violada pelo próprio progenitor, de quem engravidou duas vezes. Juliana foi abusada pelo cunhado e teve um filho dele. São histórias dolorosas que ninguém quer lembrar, mas que precisam de ser contadas para que não se repitam.

“Falar sobre um trauma traz muita dor. É reviver o abuso”

Medo e falta de atitude favorecem agressores

Os olhos cheios de lágrimas revelam o trauma que não passa. Marta confidenciou-nos que escrever a sua história é reviver o passado e a dor de 10 anos de abusos. Ainda tenta sobreviver às memórias de uma infância marcada pela violência.

“À meia-noite, entrava no meu quarto e violava-me. Se recusasse, no dia seguinte, ele encontrava razões para me bater e ameaçava-me. Era tão violento que a minha mãe tinha medo e manteve-se sempre em silêncio até nos livrarmos dele”, conta com uma voz aterradora. A mãe e as duas irmãs também eram vítimas de violência doméstica por parte do agressor.

Os vizinhos da Marta testemunharam anos de violência doméstica contra a mãe e as filhas, mas não fizeram nada por medo. Marta pensava que ninguém ia acreditar nela quando falou, porque toda a gente confiava no chefe de aldeia. Foi violada durante 10 anos e engravidou em 2012 e 2017.

Na primeira vez, a família chegou a pensar em pressionar o namorado da menina na época, que a abandonou tão logo soube da gestação. Contudo, o violador disse que poderia “cuidar da criança” e nada aconteceu. Na segunda vez, Marta casou-se com o então namorado e deu à luz quatro meses depois.

O rapaz, que só teve relações com a menina após o casamento, questionou a gravidez e soube do ocorrido. Com medo do sogro, abandonou Marta, que voltou a morar com a mãe, as irmãs e o pai.

Certo dia, quando estava a alimentar os porcos, notou que as portas e janelas estavam fechadas e uma das irmãs estava dentro de casa com o pai, tal como ele costumava fazer antes de a violar. Despachou-se e entrou apressada em casa. Não encontrou a irmã no quarto e a porta do quarto do pai estava fechada. Foi à sala de visitas para espreitar pela janela. Não estava ninguém lá fora.

“Fingi chamar a minha irmã e ouvi a porta do quarto do meu pai a abrir e a fechar. Regressei para o quarto da minha irmã. Lá estava ela”. Ficou furiosa com o pai. “O que estás a fazer?! Que pai és tu?”, gritou para que os vizinhos a ouvissem.

Passado um tempo, o ex-marido da Marta contou o que aconteceu a alguns familiares da menina e eles apoiaram-na. Um tio fez queixa do pai à polícia. O homem foi preso e condenado a 30 anos de prisão, em 2018.

Em novembro do mesmo ano, Marta, então com 25 anos, ganhou coragem, decidiu sair de casa e levou as irmãs. Foram acolhidas pela Casa Vida, organização não-governamental que recebe meninas vítimas de abusos sexuais. Lá, conheceu Juliana.

“Chamei a minha mãe e ela virou-me as costas”

Falta de apoio da própria família

Juliana hoje em dia consegue perceber que foi manipulada pelo seu agressor. Depois de a irmã sofrer um aborto espontâneo, o marido dela começou a aproximar-se da menina. Desde o primeiro dia em que o cunhado veio viver com a família da Juliana, já a olhava com interesse. A menina, naturalmente tímida, assustou-se quando percebeu a atenção de que estava a ser alvo.

O cunhado “seduziu-a” de maneira planeada e gradual, comprando-lhe telemóveis e outros presentes. Aos poucos, conquistou a sua confiança e dominava-a. Juliana achava, na altura, que as ofertas eram uma demonstração de carinho normal entre “irmãos”.

A relação tornou-se mais estável, nublando-lhe a consciência dos abusos sexuais que veio a sofrer. Em determinada ocasião, quando estava a ver vídeos no telemóvel, o cunhado tocou-lhe de forma inapropriada. “Eu respeito-te como irmão, mas isso não se faz”, disse-lhe a medo.

Não foi o suficiente para conter os assédios. A primeira violação aconteceu na casa de zinco onde Juliana dormia sozinha, enquanto outros familiares dormiam na cozinha, devido ao frio e à chuva. Incrédula, a menina não percebeu o que estava a acontecer, ficou calada. Não sabia o que pensar.

Tampouco teve coragem de contar a alguém sobre o ocorrido. Sentia que pudesse ser culpada pelo que lhe estava a acontecer. Passou os dias seguintes a chorar. A mãe perguntou o motivo e ela disse que queria fugir de casa. Fugiu, mas voltou por súplica da progenitora.

Sob o ambiente familiar, o cunhado violava Juliana com frequência. “Violava-me sempre quando ninguém estava em casa”, falou com os olhos lacrimejantes e cabisbaixa. Sempre que era abusada, isolava-se no quarto e chorava muito. A violência sexual durou pelo menos nove meses e causou-lhe stress e solidão.

Em dezembro de 2015, no primeiro semestre da gravidez, Juliana decidiu denunciar os abusos sexuais de que fora vítima. Pediu à segunda irmã, mulher do violador, que a levasse ao hospital para fazer tratamento. Contou tudo à irmã e a reação foi a pior: “Se não fosses minha irmã, matava-te!”, palavras que a magoaram quase tanto como os abusos.

Mesmo com a fuga do cunhado, a família da menina, após tomar conhecimento do caso, não a amparou. Juliana, em desespero, chegou a pensar em se suicidar.

Juliana Ribeiro/Foto: Diligente

Um tio e uma outra irmã, contudo, deram-lhe apoio e fizeram queixa ao chefe de suco, que levou o caso à polícia. O agressor chegou a ser detido, mas não foi condenado, pois o abuso foi entendido pela Justiça como “relação consentida”. Juliana, posteriormente, foi acolhida pela Casa Vida. Tinha 16 anos.

“Antes de sair, queria abraçar a minha mãe e irmãs, mas elas recusaram. Chamei a minha mãe e ela virou-me as costas”, contou, com o rosto em lágrimas.

Trauma e medo dificultam a denúncia

O psicólogo Elvis do Rosário referiu que as vítimas de abuso sexual, principalmente as crianças, não têm noção do que lhes aconteceu e, muitas vezes, são ameaçadas. Segundo o psicólogo, a maioria das vítimas conhece o seu agressor, que normalmente é alguém da sua confiança – o que dificulta o reconhecimento da violência. “As vítimas demoram anos a compreender e a superar traumas”, observa.

Elvis explica que, mesmo quando a vítima compreende aquilo que sofreu como um abuso sexual, denunciar não é um caminho fácil. Além do medo de ser julgada, a vítima também se culpa por não ter reagido e envergonha-se do que aconteceu. “Falar sobre um trauma traz muita dor. É reviver o abuso”, salienta.

O psicólogo da Casa Vida, Moisés de Abril, explicou que, muitas vezes, o silêncio é a única forma de a vítima se proteger contra a rejeição da família perante o assunto.

“O isolamento pode levar a quadros depressivos e induzir ao suicídio”, conta. Em resumo, o abuso sexual facilita o aparecimento de doenças psicológicas graves, podendo ter repercussões cognitivas, emocionais, comportamentais, físicas e sociais.

Um estudo de 2015 do Nabilan, um projeto da Asia Foundation, constatou que 34% das 1.426 mulheres timorenses entrevistadas sofreram violência sexual. Entre essas vítimas, 43% conheciam o agressor.

De acordo com dados do Tribunal Distrital de Díli, apenas na capital do país registaram-se 19 casos de abuso sexual a menores em 2020. O número duplicou no ano seguinte e em 2022, até novembro, contabilizaram-se 17 casos.

Recomeço

Tanto para Marta como para Juliana, entrar na Casa Vida foi o início da cura de uma vida destruída pelo abuso, ódio, mágoa e rejeição. Receberam o apoio das outras meninas que estavam na instituição. Com a ajuda de psicólogos, conseguiram fazer terapia e encontrar objetivos de vida. Terminaram os estudos, fizeram formações e cuidaram dos filhos. Aprenderam a cozinhar, costurar, desenhar, artesanato e informática. A Casa Vida devolveu-lhes a dignidade perdida e tornou-se no lar que nunca tiveram.

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Juliana recebe formação de cabeleireira e esteticista/Foto: Diligente

Agora Juliana trabalha no salão de estética da Casa Vida e é secretária da instituição. Vive com o filho e duas primas numa casa arrendada. No futuro, quer ser médica. Marta licenciou-se em Agricultura e está a trabalhar para ajudar a sua igreja. Dedica a sua vida a Deus, porque acredita que foi Ele que a livrou e às irmãs da prisão dos abusos. As irmãs vivem com a mãe.

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Marta com a equipa do restaurante Aroma Café/Foto: Divulgação (Casa Vida)

Os abusos de que foram vítimas tornaram Marta e Juliana mais fortes e independentes e encorajaram outras meninas a denunciar os abusos físicos e psicológicos.

Ambas quiseram romper o ciclo de violência em que viviam e mostrar à sociedade que tem a obrigação de resgatar a dignidade das vítimas e possibilitar que cresçam de maneira mais saudável. Marta, que salvou as irmãs mais novas do pai violador, quer escrever o seu livro para gritar ao mundo: “Chega! Que não aconteça a mais ninguém!”.

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  1. Parabéns DILIgente. Lí na Agência de Notícias Lusa uma reportagem sobre o DÍLIgente. Fiquei feliz de saber que mais uma porta se abre para promoção da língua portuguesa e também para divulgar as boas iniciativas de cidadãos timorenses e de outros importantes trabalhos de agentes religiosos de outros países.
    O trabalho de missionários brasileiros em Timor-Leste tem se descado pela grande profundidade social. Além da Casa Vida, o Pro-ema, escola profissionalizante que oferece oportunidades aos jovens, além da Escola Shalom, que conta com quase mil alunos.
    Muitas outras iniciativas tem sido tocado por brasileiros que vão desde a construção de casas à promoção da agricultura familiar.
    Mais uma vez parabéns! Vamos falar português com toda a sua riqueza absorvida além-mar.

    Eduardo Queiroz Galvão
    Vice-Cônsul
    Chefe dos Setores Consular/Cooperação e Cultural
    Embaixada do Brasil em Díli

  2. Matan been ne monu wainhira lee reportagem nee.
    Obrigada partilha ona.
    espera feto oan sira hotu iha liur ne’ebá sei brani hatete sai violasaun ne’ebé sira hasoru.

    Sejam fortes a todas as mulheres timorenses!

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