A Bella e os “monstros”

Bella Galhos/Foto: DR

Os primeiros quatros anos de vida passaram sem que se conseguisse levantar do chão. Bella nasceu com uma assimetria na anca que a impedia de andar.

A possibilidade de a levar para Portugal para fazer tratamento esbarrou na oposição do pai, que não autorizou a deslocação que poderia pôr fim à limitação física. Sem mais opções, a mãe acabou por recorrer a uma curandeira que, através de tratamentos não convencionais, ajudou a filha a andar. A partir daí e, ao longo de toda a vida, Bella reergueu-se sempre sozinha.

Isabel Antónia da Costa Galhos, mais conhecida por Bella Galhos, hoje com 50 anos, nasce a 10 de novembro de 1972, filha de José António Galhos e Teresa da Costa Galhos. Ao todo, eram nove irmãos na família e Bella foi a primeira filha mulher.

Aos oito irmãos somam-se 25 meios-irmãos. José António Galhos teve 34 filhos com várias mulheres, incluindo a mãe da Bella.

Bella recorda que, no primeiro ano de escola, no Colégio de Ainaro, município a sul de Díli, ao contrário das outras crianças, não conseguia ainda escrever. Aprendera a redigir as primeiras palavras com a mão esquerda, mas as madres obrigaram-na a começar a escrever com a direita. Ainda hoje não entende porquê, mas sabe que isso dificultou a aprendizagem da escrita.

Primeira mulher entre nove irmãos, Bella sofreu desde cedo as consequências por nascer rapariga. O pai não queria filhas. Só filhos. Pelo contrário, a mãe ficou muito feliz com o nascimento da primeira menina. À medida que ia crescendo, a personalidade de Bella foi-se revelando mais masculina do que feminina, o que deixava o pai extremamente zangado.

Com uma família numerosa, Bella trabalhava no campo como um homem e cultivava fruta para depois vender.  Crescida numa família sem amor nem paz, sofreu todo o tipo de violência física e psicológica. O pai vendeu-a a militares indonésios, quando tinha apenas quatro anos.

Cinco dólares foi quanto recebeu José Galhos pela venda da própria filha. Arrependido, o pai viria mais tarde a pedir desculpa à filha que aceitou o pedido.

Foi vítima de abusos sexuais por parte desses militares. Bella conta que lhe injetaram à força uma droga contracetiva que, acredita, a deixou infértil.

Seguindo os costumes patriarcais da cultura timorense, Bella foi educada para servir o pai e os irmãos. Em Timor-Leste, demasiadas vezes, filhos homens são tratados como “reis” e, ao mesmo tempo, os únicos herdeiros dos bens da família. Já as filhas estão longe de ser tratadas como “rainhas” e mais perto de serem “escravas” da família. Enquanto os rapazes podem estudar, as raparigas são educadas para casar e ter filhos.

Bella não aceitou este destino. Uma recusa corajosa que a obrigou a lutar muito para continuar os estudos.

Mesmo tendo abandonado a família quando ela e os irmãos ainda eram crianças, o pai sentia que tinha o poder e legitimidade para dizer à mãe como educar os filhos e dar-lhe ordens sobre o que estes podiam ou não fazer. Bella, aos olhos do pai, não podia continuar a estudar.

“Ouvi isso e chorei em silêncio. Não respondi nada”. Com apenas 12 anos teve a coragem de enfrentar a mãe. Disse-lhe que, se deixasse de ir à escola, só lhe restariam duas opções: “preparar o caixão para me enterrarem ou preparar o caixão para vos enterrar.” Bella confessa, sem pudor, que chegou a pensar em envenenar a família, quando fosse a sua vez de cozinhar, ou então suicidar-se. A mãe, depois de ouvir isto, acabou por permitir à filha que continuasse a estudar e Bella pôde ingressar no pré-secundário. Foi em Becora, em Díli, sua cidade natal, que acabou por concluir o ensino secundário.

No tempo da ocupação indonésia, os professores tinham direito a receber grandes quantidades de arroz. Como a mãe era professora, todos os meses recebia 100 quilos de arroz e 30 eram vendidos por Bella no antigo mercado, hoje Centro de Convenções de Díli (CCD).

Bella era a filha mais ativa, sempre pronta a ajudar a mãe. Subia às árvores para cortar a lenha que era depois usada para fazer o lume com que cozinhavam as refeições da família. Como viviam em Caicoli, uma zona com água abundante, aproveitava também para fazer canteiros onde cultivava “kankung” (uma espécie de espinafres timorenses), que depois também vendia nos mercados.

As fragilidades económicas da família eram diárias e Bella lutava para as contrariar de todas as formas que conseguia. Uma das mais inesperadas foi começar a participar em corridas, apesar de nunca ter querido ou sequer ter pensado ser atleta. A simples participação nesta atividade rendia-lhe o equivalente a quatro dólares e dava direito ainda a um pacote de leite, ovos, feijão verde e bananas.

Bella nunca se rendeu às dificuldades. Invariavelmente, sempre que chovia, a água entrava em casa, e era ela que subia à cobertura para tapar o zinco que não protegia a família da chuva. Já os irmãos rapazes não queriam saber. Ir buscar água também era tarefa sua, as ordens para os irmãos. “Pensavam que tinham autoridade para me mandar fazer tudo”, mandavam e desmandavam e ordenavam-lhe que lhes trouxesse água com apenas duas palavras secas: “Traz-me água”. Era também Bella que tinha de preparar as refeições dos irmãos e lavar os pratos que sujavam. “Normas com as quais crescemos. Odiava-as”, relembra Bella.

Uma vez, o irmão, para mostrar o poder que tinha, gritou o nome da irmã na rua, ordenando-lhe que lhe trouxesse um copo de água. Bella atravessou a rua com o copo de água, que o irmão bebeu devagar, em jeito de “troça”. E ela ali teve de ficar à espera que ele acabasse para depois levar o copo para casa. “Não gostei e fiquei muito zangada, mas não fiz nada”.

A relação com os irmãos, além de desrespeitosa, era também violenta. Um deles, pugilista, chegava a bater-lhe até ficar coberta de sangue. Bella cresceu a pensar que o conflito e a violência eram normais.

Mesmo assim, salvou muitas vezes os irmãos mais novos. Quando alguém lhes batia, defendia-os também com violência. Os primos diziam que era “preman”, expressão do indonésio que significa “bandida”. Bella nunca olhou para isso como uma ofensa, mas sim como a sua capacidade de se defender e de defender os outros.

Estes foram alguns dos episódios recorrentes em que Bella se sentiu humilhada pelos familiares. Não tinha liberdade para ser ela própria.

Recorda também que um dia encontrou uma viola estragada que decidiu levar para casa. Queria repará-la e aprender a tocar um instrumento musical. Quando a mãe viu a guitarra, partiu-a. “A minha mãe também era conservadora” explica, apesar de mostrar um carácter diferente, sobretudo na relação com o pai, de quem se decidiu divorciar, atitude que poucas mulheres tinham na altura, e ainda hoje, coragem de tomar. Mas nem sempre as atitudes com a filha mostravam esse espírito mais livre. “Sou uma filha revoltada”.

A luta por Timor-Leste no Canadá

Manifestações pró-independência no Canadá/Foto: DR

Com apenas 16 anos começou a envolver-se em atividades clandestinas pela libertação de Timor-Leste da ocupação indonésia e juntou-se à resistência timorense.

Nos três anos que se seguiram, o trabalho clandestino passou por conquistar a confiança do governo indonésio, o que lhe custou várias agressões físicas e psicológicas.

Aos 19 anos, surgiu a oportunidade de representar Timor-Leste no Canadá, como 27.ª província da Indonésia. Foi enviada pelo governo como representante pró-indonésia naquele país, apesar de apoiar, à distância, a resistência timorense. Acabou por pedir asilo político e por lá ficou oito anos.

Quando chegou não era fluente em inglês, por isso o dicionário era sempre uma fiel companhia. Assim que teve oportunidade, começou a frequentar aulas de inglês, língua que aprendeu muito depressa. Bella era a única timorense na cidade de Ottawa e tinha de saber comunicar para conseguir sobreviver. Hoje, confessa que foi muito difícil adaptar-se à cultura, à língua e ao clima muito frio, mas não teve outra opção. Além disso, ao contrário do que acontece na sociedade timorense, onde o ambiente é de muita proximidade, no Canadá, “as pessoas são individualistas”.

Ainda no Canadá recebeu José Ramos Horta, enquanto representante especial de Xanana Gusmão, e Abel Barreto, timorense também a viver no Canadá, mas na cidade de Toronto.

Estavam os dois no Canadá, Bella e Abel Barreto, como refugiados políticos a desenvolver tarefas pró-independência.

Ramos Horta destacou-a como adida política. Bella orgulha-se de, como líder feminina na luta pela independência, ter conseguido chamar a atenção para o que se passava em Timor-Leste.

Como porta-voz da causa timorense, percorreu 33 países para falar sobre a luta do seu país. “Todos reconheceram a minha luta, mas Ramos Horta foi quem mostrou o maior reconhecimento”, chegando a dizer a Bella que a considerava “um exemplo para outros timorenses na diáspora, porque, mesmo estando sozinha, conseguiu fazer a diferença, enquanto outros timorenses, muitas vezes até em grupo, não conseguiram”.

No Canadá, Bella organizou várias manifestações a destacar datas marcantes da luta pela independência, como o dia 12 de novembro (data do massacre no Cemitério de Santa Cruz) ou 7 de dezembro, ocupação do país pelas tropas indonésias. A comunidade local que sabia da sua luta apoiava Bella.

Numa deslocação ao Canadá, o embaixador indonésio no país, Benjamin Prawoto, descobriu que Bella organizava manifestações pró-independência. Assim que regressou do Canadá para Timor-Leste, tentou persuadir a mãe a ligar-lhe e convencê-la a parar com as suas ações no Canadá. Mas a mãe telefonou para lhe dar força: “Acredita em ti e segue em frente”.

Bella continuou a organizar manifestações e a chamar a atenção para a causa timorense até o país restaurar a independência a 20 de maio de 2002. A última chamada de atenção aconteceu em 1999, quando fez greve de fome durante dois dias. Quis mostrar, mesmo à distância, que assim como os timorenses estavam a morrer em Timor-Leste também ela iria morrer de fome no Canadá pela causa do seu país.

Foi só depois do referendo para a independência de Timor-Leste, realizado a 30 de agosto de 1999, que Bella regressou ao seu país, em dezembro do mesmo ano, com a sensação de missão cumprida.

A dedicação aos Direitos Humanos e à causa LGBT

Para Bella, a defesa dos direitos humanos é algo natural em si. Defender as suas causas implica sempre estudo e mais aprendizagem sobre cada assunto que aborda.

Ao longo da vida, Bella sempre deu palestras sobre direitos humanos, onde abordou as questões de género, da comunidade LGBT, do assédio e do empoderamento feminino, a nível nacional e internacional. Espalhou a sua mensagem não só na Ásia como na América do Norte e na Austrália. A todos quantos a quisessem ouvir.

Durante a administração transitória da UNTAET, entre 1999 e 2002, participou regularmente em emissões da Rádio UNTAET, onde continuou a passar a sua mensagem sobre os direitos LGBT e outras temáticas sempre ligadas às causas dos direitos humanos. A sua mensagem fez com que centenas de jovens que escondiam a sua identidade de género e orientação sexual viessem falar com ela para procurar ajuda. E foi assim que nasceu o movimento de defesa dos direitos LGBTQ em Timor-Leste, que se transformaria na organização ARCOIRIS Timor-Leste, da qual Bella é atualmente diretora.

Depois de assumir a orientação sexual, ela própria sentiu na pele várias formas de discriminação, muitas vezes dentro da própria família. Um dos seus irmãos agrediu-a e tentou matá-la duas vezes. Disse-lhe ainda que era “uma mulher anormal”. Também a sua roupa, forma de andar e voz foram sempre alvo de comentários silenciosos por grande parte dos que a rodeavam.

“Muitos timorenses pensam que ser LGBTQ é uma escolha e muitos pensavam que eu estava a fingir. Tenho agora 50 anos. Fingir durante 50 anos seria demasiado tempo”.

Bella e a sua família

blank
Bella com a companheira Iram e a filha Irabela/Foto: DR

Bella conheceu “a amiga”, como gosta de lhe chamar, e atual companheira, Iram Saeed, no Havai. Estava no país para estudar e Iram participava num programa de liderança da Ásia Pacífico.

Quando Bella terminou os estudos, Iram, médica, regressara ao seu país, a Índia. Mantiveram uma relação à distância durante um ano, altura em que Iram veio viver com Bella em Timor-Leste.

A família de Iram sabe da relação e respeita a sua decisão. Quando lhe pedem para falar de Bella, diz gostar da companheira pela “simplicidade, gentileza, por procurar sempre soluções para tudo, por cuidar da sua família e apoiar a educação dos seus familiares”. Iram acredita que ela e Bella são muito parecidas. Palavras que comoveram Bella, que ouviu a companheira falar dela pela primeira vez.

Bella e Iram têm uma filha com 6 anos, Irabela Teresa Galhos Júnior, que estuda na Escola Internacional em Díli. Sobre a filha, conta que não é adotada e que nunca foi vítima de bullying por ter “duas mães.”

Acredita que Irabela está preparada para enfrentar uma situação dessas, caso aconteça, porque a educa para ser uma “cidadã internacional que respeita a decisão dos outros e que se sabe defender”.

Bela e Iram têm dois grandes compromissos: não dizer palavrões e não usar violência física. Juntas há 13 anos, nunca quebraram nenhum dos dois.

O irmão mais novo de Bella é padre, mas não a vê como diferente. Pelo contrário. Vê na irmã alguém especial, que sempre procurou fazer o bem aos outros.

Apesar de alguns padres a terem criticado por ser lésbica, Bella salienta que não têm moral para criticar a sua orientação sexual, porque a relação que tem com Iram é consensual e acontece entre duas mulheres adultas.

Bella conta que uma madre muito respeitada em Timor-Leste tentou falar com ela sobre a sua relação. Bella não permitiu que a religiosa falasse sobre quem ama ou sobre o que faz na cama: “Acredito que Deus não dá como tarefa às madres e aos padres fazerem um relatório para um dia, quando morrermos, Deus os chamar e pedir esses relatórios”.

Com Iram fundou a Leublora Green Village, em Maubisse, centro de educação ambiental e desenvolvimento social, criado com o objetivo de gerar oportunidades económicas e melhorar a qualidade de vida das comunidades timorenses.

blank
Leublora Green Village, em Maubisse/Foto: DR

Atualmente, Bella Galhos é assessora do Presidente da República, José Ramos Horta, na área do empoderamento económico para as mulheres e continua o trabalho enquanto ativista pelos direitos humanos.

Lançou no final do ano passado o seu primeiro livro. A ideia de escrever o livro intitulado “I was once worth five dollars” – “Eu já vali 5 dólares”, surgiu depois de ter lido o livro de Michelle Obama “Become Michelle Obama”, mas a grande inspiração continua a ser a mãe.

blank
O livro autobiográfico “Eu já vali 5 dólares” foi lançado no final de 2022/Foto: DR

Define-se como uma mulher em paz, “rica de amor e de pessoas”. Antes sonhava ter um quarto tão grande onde coubessem três carros. Esse e muitos outros sonhos já se realizaram, desde aquele dia em que, aos quatro anos, conseguiu andar e começar a trilhar o seu caminho.

Desde esse dia, e apesar de todos os desafios que a vida lhe colocou, Bella Galhos reergue-se a cada dia.

Ver os comentários para o artigo

  1. História de factos inaceitáveis, mas aconteceram!
    Inacreditáveis mesmo, contudo foram vividos.
    Para quando esse livro em língua portuguesa?
    A minha vénia a Bella Galhos.
    Francisco de Pina Queiroz

  2. Os montros por la continuam e abundam, simplesmente muitos trocaram de pele como os lagartos, triste mas e a realidade da malvadez dos seres humanos!
    A Bella tem uma enorme coragem e continua cada vez mais Bella.
    Haksolok

Comente ou sugira uma correção

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Open chat
Precisa de ajuda?
Olá 👋
Podemos ajudar?