VIH/SIDA: “Opiniões sobre a doença baseadas em princípios religiosos e culturais trazem sempre prejuízos”

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), estima-se que 39 milhões de pessoas mundialmente vivam com VIH: Foto/ Diligente

Declarações recentes como as da deputada Maria Angelina Sarmento sobre a pornografia como causa para o aumento do número de casos de VIH/SIDA ou a posição do principal responsável pelo combate à doença no país, Daniel Marçal, lançam, segundo organizações e especialistas, mais desinformação e estigma em relação aos seropositivos timorenses

“O acesso livre aos sites pornográficos contribui para o aumento do VIH/SIDA em Timor-Leste”, disse a deputada Maria Angelina Sarmento, do Partido Libertação Popular (PLP), em declarações ao Timor Post, numa notícia de 06/12. Um ponto de vista corroborado pelo presidente do Instituto Nacional de Combate ao HIV-SIDA (INSIDA), Daniel Marçal, ao Diligente: “Os vídeos pornográficos incentivam os jovens a praticar o ato sexual com namorados ou com qualquer pessoa”.

Apesar de as evidências científicas mostrarem que o vírus só se transmite através da prática sexual com uma pessoa seropositiva, de sangue contaminado ou de leito materno, para Daniel Marçal, o ato sexual em si é sinónimo de risco de doença: “Mesmo que praticado por pessoas seronegativas,  implica o risco de contração do vírus”.

O responsável pelo combate ao VIH no país vai mais longe e aponta o dedo às mulheres pelo  aumento do número de casos do vírus: “A forma provocante como algumas mulheres se vestem contribui para o aumento do sexo livre”.

O pastor protestante aconselha, então, três métodos de prevenção: “abstinência, fidelidade e, em último caso, usar preservativo, se os dois primeiros métodos não funcionarem e apenas depois de contraírem matrimónio”.

Daniel Marçal defende, no entanto, a inclusão da disciplina de Educação Sexual, desde que “direcionada para ensinar valores morais às crianças e jovens, especificamente que só devem ter relações sexuais depois de casados”.

Ignorando evidências científicas, estas e outras declarações anteriores de figuras políticas e de responsáveis pelo combate à doença ilustram que o VIH/SIDA tem sido mais tratado como um problema moral do que como uma questão de saúde, o que contribui para mais preconceito e estigma em relação às pessoas infetadas.

“Temos tido muitas dificuldades em disseminar informações de prevenção [do VIH através do preservativo], porque a maioria pensa que ensinamos os jovens a fazer sexo, quando, na verdade, só queremos difundir conteúdos educativos para se protegerem de doenças sexualmente transmissíveis e evitar a gravidez precoce.”

A Estrela+, associação nacional independente e sem fins lucrativos de pessoas a viver com VIH no país, que combate o estigma e discriminação sofridos pelos seropositivos timorenses, manifesta repúdio pelas declarações da deputada, segundo as quais “a tecnologia, hoje em dia, facilita o acesso das pessoas, especialmente jovens e adultos, a sites pornográficos, o que contribui para o aumento do número de casos de VIH-SIDA em Timor-Leste”.

Para a diretora da Estrela+, Inês Lopes, as declarações da deputada “não fazem sentido por intimidarem as pessoas e, sobretudo, confundi-las”. E sublinha: “Opiniões baseadas em princípios religiosos e culturais trazem sempre prejuízo, criando preconceitos e prejudicando negativamente a vida dos seropositivos”.

Inês Lopes considera que comentários como o da deputada do PLP contribuem para o aumento do sentimento de culpa, tão comum entre os infetados. “O sentimento de culpa por ter contraído VIH é frequente”, revela a primeira pesquisa da Estrela+, realizada em 2017, que contou com a participação de 81 seropositivos, dos quais 62% confessaram sentir-se culpados. A última investigação sobre o índice de estigma, que será lançada no início do ano de 2024, mostrou um resultado semelhante ao da primeira.

Relativamente às afirmações de Daniel Marçal sobre a forma de como as mulheres se vestem contribuírem para o sexo live, a diretora da Estrela+ questiona: “O que significa sexo livre? Livre de doenças? Infelizmente, sexo livre, para alguns líderes, significa fazer sexo com qualquer pessoa. Para nós, sexo livre é fazer sexo seguro”.

Também Sérgio Esperança, especialista em Programas de Saúde e Direitos Sexuais, Reprodutivos e VIH (SDSR-VIH) do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA), defende que a falta de informação correta e baseada em evidências científicas sobre as vias de transmissão e prevenção do VIH está intimamente ligada às muito altas taxas de atitudes estigmatizantes e discriminatórias para com as pessoas que vivem com o VIH em Timor-Leste, onde 76.4% das mulheres e 55% dos homens têm comportamentos discriminatórios para com os seropositivos.

Dados de 2016 davam conta que apenas 10% das mulheres e 16% dos homens em Timor-Leste tinham conhecimento sobre o VIH

Mas qual a ligação entre a pornografia e o VIH/SIDA? De acordo com o psicólogo Alessandro Boarccaech, não há uma relação direta entre assistir a vídeos pornográficos e a transmissão do vírus. O que pode ocorrer é que as pessoas podem ter relações sexuais sem proteção adequada. Neste sentido, considera que é necessário cuidado ao falar sobre estes assuntos, “pois informações incompletas ou equivocadas podem causar desinformação, confusão, estimular o preconceito, colocar as pessoas em risco e camuflar as origens dos problemas”.

Para Alessandro, “o vício em pornografia não é a mesma coisa que assistir, de vez em quando, a filmes pornográficos. O vício é um problema de saúde mental que envolve aspetos sociais, culturais e históricos. Precisam ser tratados por profissionais especializados e sem moralismo ou punições”.

Desinformação e estigma contagiosos

Mantendo a sua posição, em entrevista ao Diligente, a deputada Maria Sarmento, à semelhança do presidente da INSIDA, culpabiliza as mulheres pelo aumento do número de casos da doença. “Muitas vezes, as mulheres têm relações sexuais sem conhecimento dos pais e depois, quando os homens não querem ficar com elas, ficam frustradas e acabam por ter sexo com outros homens, contraindo, assim, o vírus”.

Maria Sarmento sustenta ainda que o preservativo só deve ser usado “por pessoas casadas, com mais de 25 anos, que já tenham terminado o ensino superior e com emprego”. E termina: “Sem estas condições, não recomendo o uso do preservativo e muito menos fazer sexo”.

Não é o que dizem as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS), segundo  a quais a utilização do preservativo é fundamental para combater a pandemia mundial do VIH/SIDA e gravidezes indesejadas. “As simulações de modelos indicam que o aumento da utilização desde 1990 evitou cerca de 117 milhões de novas infeções pelo VIH”.

A trabalhar desde 2012 na defesa dos direitos e bem-estar dos seropositivos, Inês Lopes lamenta que ainda haja muita desinformação relativamente à doença por causa da influência da Igreja Católica e da cultura. “Quando falamos da prevenção do VIH, é inevitável incluir o uso de preservativo, mas temos tido muitas dificuldades em disseminar formas de prevenção, porque a maioria pensa que estamos a ensinar os jovens a fazer sexo, quando, na verdade, só queremos difundir conteúdos educativos para se protegerem de doenças sexualmente transmissíveis e evitar a gravidez precoce”.

A diretora da Estrela+ pede ainda ao Governo que tome medidas urgentes para controlar informações incorretas, principalmente vindas de figuras de poder, evitando divulgar conteúdos com caráter discriminatório e prejudiciais, sobretudo para os portadores do vírus, mas também para a sociedade.

“O que significa sexo livre? Livre de doenças? Infelizmente, sexo livre, para alguns líderes, significa fazer sexo com qualquer pessoa. Para nós, sexo livre é fazer sexo seguro”

A discriminação sente-se em várias esferas, nomeadamente nas unidades de saúde. Segundo a diretora da Estrela+, a abordagem de alguns destes profissionais de saúde faz com que muitos pacientes desistam do tratamento. “Divulgam o resultado das pessoas positivas sem o consentimento das próprias, gerando situações preconceituosas”, acusa.

“Em muitos casos, a sociedade e a família acabam por desprezar os seropositivos, chegando a mesmo a tentar matá-los. Trata-se de uma violação dos direitos humanos”, acrescenta.

Note-se que o artigo 7.º da Lei de Bases do Sistema de Saúde timorense refere que os utentes têm direito a ser tratados com “privacidade e respeito”, mais precisamente, à “confidencialidade sobre os seus dados pessoais” e a ser “devidamente informados sobre a sua situação, as alternativas possíveis de tratamento e a evolução provável do seu estado. O sigilo médico é um direito do doente e uma obrigação ética e deontológica do clínico”.

Como é que o vírus pode ser transmitido e prevenido?

O especialista Sérgio Esperança explica que só é possível contrair o vírus “através de relações sexuais (vaginais, anais e orais) sem uso de preservativo entre uma pessoa que já é portadora do vírus e outra que é seronegativa”.

O risco da transmissão do VIH através das relações sexuais pode ser drasticamente reduzido, quando a pessoa portadora do VIH já está em tratamento (e respeita o regime recomendado pelo médico) e a sua carga viral, ou seja, a quantidade de vírus que tem no sangue, já não é detetável e por isso, é muito difícil de transmitir para outras pessoas através das relações sexuais.

O VIH pode transmitir-se através do uso de instrumentos cortantes/injetáveis que são partilhados entre pessoas com e sem o VIH. O contágio pode também acontecer através da transfusão de sangue infetado com o vírus ou de mãe para filho durante a gravidez, o parto e a amamentação – neste caso, o risco de transmissão de mãe para filho é também drasticamente reduzido quando a mulher grávida portadora de VIH já está em tratamento (e respeita o regime recomendado pelo médico) e a sua carga viral, ou seja, a quantidade de vírus que tem no sangue, já não é detetável e por isso mais difícil de transmitir para o bebé.

Um dos objetivos do UNFPA e das autoridades competentes é garantir que os adolescentes e jovens fazem escolhas informadas sobre o seu futuro e a sua saúde. Para isso, destaca-se a importância de a educação sexual ser incluída no currículo e ensinada por professores treinados para garantir que as informações dadas sejam cientificamente corretas em como se pode transmitir e prevenir o VIH, e não outro tipo de informação que contribua para a desinformação do público e estigmatização dos seropositivos em Timor-Leste.

Os estudos da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) revelam que os programas de educação sexual contribuem para que as relações sexuais ocorram mais tarde e estimulam o uso de métodos contracetivos, reduzindo a possibilidade de gravidez indesejada e do contágio por doenças sexualmente transmissíveis (DST).

O especialista considera ainda fundamental encorajar a testagem voluntária do VIH junto das unidades de saúde para garantir que todos aqueles que são portadores do vírus possam iniciar o tratamento o mais cedo possível.

No entanto, “é preciso promover ações informativas e educativas junto dos serviços de saúde sexual e reprodutiva direcionado aos adolescentes e jovens, dentro e fora da escola”.

Dados da OMS, de 2023, estimam que 39 milhões de pessoas vivam com o VIH, a nível mundial. Em 2022, cerca de 1,3 milhões de pessoas contraíram o VIH e cerca de 630 mil pessoas morreram de causas relacionadas com SIDA.

Na região do Sudeste Asiático, estima-se que 3,9 milhões de pessoas estejam infetados com VIH. Em 2022, calcula-se que 110 mil pessoas tenham sido contagiadas e 85 mil doentes tenham morrido de causas relacionadas com a SIDA na região.

Até ao final do ano passado, 81% dos seropositivos da região conheciam o seu estado, 65% estavam a fazer terapia antirretroviral e 61% tinham a carga viral suprimida.

O último Inquérito Demográfico e de Saúde realizado em Timor-Leste (2016) dá conta que apenas 29% das mulheres e 52% dos homens em Timor-Leste sabiam que o uso do preservativo pode reduzir o risco contrair o VIH através das relações sexuais, informou Sérgio Esperança.

O relatório indica ainda que apenas 10% das mulheres e 16% dos homens em Timor-Leste têm conhecimento sobre o VIH, que inclui, por exemplo, saber que o uso correto e consistente do preservativo durante a relação sexual reduz o risco de contrair o VIH, que uma pessoa aparentemente saudável pode ser portadora do VIH ou que o VIH não pode ser transmitido através da picada de mosquitos.

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  1. Santa Ignorancia desta gente que devia saber mais e melhor. DEUS disse; ide e multiplicai e nao pos obstaculos. Quereis vos ser mais papista do que o Papa?

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