VIH em Timor-Leste: quando o estigma é maior do que a doença

No primeiro trimestre de 2023 foram registados 76 novos casos de infeção por VIH/ Foto: Freepik

Pessoas infetadas pelo vírus da imunodeficiência adquirida (VIH) continuam a ser alvo de discriminação em Timor-Leste, estando em causa, muitas vezes, a confidencialidade dos serviços de saúde, bem como agressões verbais e físicas. O Diligente falou com algumas vítimas que sofreram na pele esta realidade e com as associações que se dedicam a ajudá-las.

Num país profundamente conservador como Timor-Leste, não é novidade que as pessoas procurem sigilo relativamente à sua saúde, principalmente à sua saúde sexual e reprodutiva. As duas fontes que aceitaram falar com o Diligente não quiseram ser identificadas por receio de perderem o emprego e por estarem conscientes de que a maior parte da sociedade ainda não tem conhecimento suficiente para lidar naturalmente com pessoas portadoras do vírus. Acreditam, porém, que vai chegar o momento em que vão “falar publicamente, talvez não seja agora, mas um dia será”.

Gonçalo, (nome fictício), 33 anos, vivia na Indonésia quando descobriu, em 2017, que estava infetado. Licenciado em construção civil, em Jacarta, trabalhava em projetos na sua área. A sua vida mudou quando decidiu fazer o teste. “Fui fazer o teste e deu positivo. A primeira pessoa a quem contei foi à minha namorada, depois ao meu irmão e, por último, aos meus pais.”

«O diagnóstico positivo foi como uma ‘sentença de morte’ para os seus familiares: “Os meus pais disseram-me que, se fosse para morrer, morreria no meu país”»

Relativamente ao motivo que o levou a fazer o teste, conta que alguns sintomas o fizeram desconfiar de que algo poderia não estar bem e, por isso, decidiu fazer um check-up completo para saber o que se passava. O teste de VIH foi um dos vários exames de diagnóstico a que se submeteu.

O diagnóstico positivo foi como uma “sentença de morte” para os seus familiares, que lhe propuseram que regressasse imediatamente a Timor-Leste. “Os meus pais disseram-me que, se fosse para morrer, morreria no meu país.”

No mesmo ano em que foi diagnosticado, Gonçalo acabou por ceder à pressão familiar e regressou à terra natal, onde fez um tratamento com um tio médico, no Suai, durante quatro anos. “Fui acompanhado pelo meu tio, mas quase perdi a esperança. Tomava medicação dia sim dia não. Emagreci muito. Sentia um desconforto inexplicável no meu corpo. Além do mal-estar físico, era discriminado no meu bairro. Se, por coincidência, uma ambulância passasse por minha casa no mesmo dia em que eu deveria ir para Díli para fazer tratamento, os meus vizinhos já pensavam que eu tinha morrido”.

Em 2021, depois de quatro anos de tratamento, o seu estado de saúde agravou-se e o tio teve de o transferir para a clínica Sentru ART Maloa, em Díli, “onde conheci o médico responsável pelo tratamento do VIH, Bonifácio de Jesus, que me fez ver uma luz ao fundo do túnel”.

Graças à medicação que tem recebido e à orientação do médico, “o vírus está agora em remissão, indetetável e intransmissível”.

Gonçalo confessa que não se importa que a sociedade o discrimine, mas preocupa-se com o sofrimento que isso traz para os pais. “Em nenhum momento me senti magoado, mesmo quando percebi que alguns familiares tinham nojo de mim. Sei como abstrair-me de pensamentos negativos, ia a festas e divertia-me. O que me trouxe muito sofrimento foi ver os meus pais a serem alvo de gozo e a ouvirem comentários negativos por causa da minha doença. Em vez de os ajudar, ainda lhes trouxe mais peso”, lamenta o construtor civil.

Mariana, (nome fictício) foi diagnosticada aos 22 anos, no Hospital Nacional Guido Valadares (HNGV), em Díli. Estava grávida de três meses. “Naquele momento, estava muito debilitada e vulnerável devido à infeção. Por causa disso, perdi muito peso. Nem conseguia andar. Fui acompanhada por médicos timorenses e cubanos, no hospital, durante seis meses sem saber o que tinha. Desde o início de 2006, ia e vinha todas as semanas para o hospital até dar à luz, em junho do mesmo ano”, conta.

Durante seis meses de tratamento no Hospital Nacional Guido Valadares, ao contrário de Gonçalo que recebeu o resultado no momento em que foi diagnosticado, a mulher, atualmente com dois filhos, não sabia que estava infetada com VIH. “Não sabia o que tinha. A primeira pessoa a ser informada sobre o meu diagnóstico foi o meu marido, depois a minha família e a família do meu marido, antes de eu própria saber”. Apenas sabia que precisava de acompanhamento médico, sem saber especificamente qual a condição de que padecia.

No artigo 7.º da Lei de Bases do Sistema de Saúde timorense pode ler-se que os utentes têm direito a ser tratados com “privacidade e respeito”, mais precisamente, à “confidencialidade sobre os seus dados pessoais” e a ser “devidamente informados sobre a sua situação, as alternativas possíveis de tratamento e a evolução provável do seu estado”.

“Viu o seu diagnóstico ser divulgado aos familiares sem o seu conhecimento nem consentimento, mais grave ainda, sem que ela própria tivesse sido informada que estava infetada”

O sigilo médico representa, pois, um importantíssimo direito do doente e uma obrigação ética e deontológica do médico. Nos termos do Código Deontológico da profissão, o segredo médico é condição essencial ao relacionamento médico-doente, assenta no interesse moral, social, profissional e ético, que pressupõe e permite uma base de verdade e confiança mútua”.

Ora, estes direitos não se cumpriram no caso de Mariana, que durante 6 meses, não soube o que se passava e, além disso, viu o seu diagnóstico ser divulgado aos familiares, sem o seu conhecimento nem consentimento e, mais grave ainda, sem que ela própria tivesse sido informada que estava infetada.

Fruto da crise política de 2006, conflito que gerou uma onda de violência em Díli, a família preferiu que ela voltasse para casa imediatamente após o parto, em vez de permanecer no HNGV. Continuava sem saber que era portadora do vírus. “Em casa, tive febre alta, borbulhas, feridas na boca e emagreci muito”. Foi então que a família decidiu levá-la para a Clínica do Bairro Pité”, também em Díli. Aí, acabaria por ser atendida por um médico norte-americano que a informou que estava infetada com VIH. Só mais tarde veio a saber que o marido e a família já tinham conhecimento da situação desde janeiro daquele ano. “Fiquei com os nervos em franja. Eu deveria ter sido a primeira a ser informada sobre o meu estado de saúde e eu é que deveria ter decidido se queria contar a alguém ou não”, lembra, visivelmente revoltada.

Apesar disso, compreendeu a justificação do marido quando este lhe disse que não quis contar para proteger a sua estabilidade física e emocional e evitar que entrasse em depressão. “Inicialmente, estava furiosa, mas depois percebi os seus motivos. Esteve sempre ao meu lado.” Mariana continua em tratamentos para diminuir o risco de transmissão do vírus. O marido e os filhos não estão infetados.

«Mariana não escapou ao preconceito da família do marido, que considera que ela “está amaldiçoada”»

Gonçalo foi vítima de preconceito de todas as pessoas mais próximas, à exceção dos pais. Mariana, por sua vez, foi vítima da falta de profissionalismo dos médicos e das decisões dos seus familiares, mas também não escapou ao preconceito da família do marido, que considera que ela “está amaldiçoada”. No entanto, Mariana desculpa-os: “Não têm conhecimento sobre a doença. É normal que reajam assim”.

Hoje, Gonçalo e Mariana vivem “apaziguados” com o diagnóstico. O círculo mais próximo de ambos, amigos e familiares, é fonte de apoio. Nos locais de trabalho de cada um, a realidade já é diferente e ninguém sabe que são VIH positivos por receio de perderem o emprego devido à falta de conhecimento sobre a doença.

“Há muita desinformação relativamente à doença e todos aqui têm histórias semelhantes às do Gonçalo e da Mariana”, explica Inês Lopes, diretora da Organização Não Governamental Estrela+, associação de pessoas que vivem com VIH e SIDA em Timor-Leste e que atua no combate ao estigma e discriminação sofridos pelos seropositivos timorenses.

A organização surgiu em 2012 “com o objetivo de ‘dar a mão’ àqueles que são alvo de discriminação por parte da família e da comunidade. Neste pequeno grupo, construímos um espaço seguro onde todos são aceites”, sublinha a diretora. A Estrela + trabalha para melhorar a qualidade de vida de todas as pessoas portadoras da doença em Timor-Leste, através da defesa, reconhecimento, respeito e promoção dos direitos das pessoas que vivem com VIH.

“Timor-Leste ainda está muito longe de eliminar a discriminação contra as pessoas com VIH, sobretudo porque a maioria das pessoas tem informação errada relativamente à doença”

Acolhemo-los e apoiamo-los de várias formas: tratamento, assistência à nutrição, apoio ao desenvolvimento pessoal e apoio legal. Trabalhamos em conjunto com a Provedoria dos Direitos Humanos e Justiça (PDHJ) para os reintegrar na sociedade sem medo e sem culpa.” Apesar dos esforços, Inês Lopes, admite que “Timor-Leste ainda está muito longe de eliminar a discriminação contra as pessoas com VIH, sobretudo porque a maioria das pessoas tem informação errada relativamente à doença”.

A diretora apela a todos quantos recebam um diagnóstico positivo para que não sintam medo. “Sentir-se culpado por estar com VIH é um sentimento frequente”, revela uma pesquisa levada a cabo pela própria Estrela +, que entrevistou 81 seropositivos. Desses, 62% (cerca de 50) confessaram sentir-se culpados por terem contrair o vírus. No entanto, “isso não pode ser impeditivo para fazer o tratamento”, alerta a diretora. Para além disso, “quanto mais cedo se iniciar a medicação, maior é a probabilidade de viver uma vida normal e saudável”.

De acordo com Bonifácio de Jesus, médico da Clínica Sentru ART Maloa, no Bairro Pité, em Díli, “a discriminação vem sempre das pessoas que não têm conhecimento sobre a infeção e julgam que o VIH é sinónimo de contágio e de morte”.

O médico destaca a importância do acompanhamento psicológico: “Além da saúde física, as pessoas têm de tratar da sua saúde mental. Para além disso, muitas vezes, é difícil convencer os doentes a tratarem-se. O processo é longo. É preciso ganhar a sua confiança para que se sintam à vontade para iniciar o tratamento”, lamentou.

“Uma paciente perguntou-me se podia abraçar o filho, porque já não o abraçava há muito tempo por ter medo de o contagiar”

O médico lembra, emocionado, um episódio com uma paciente, que o deixou “sem chão” e que reflete a ignorância sobre o assunto. “Uma paciente perguntou-me se podia abraçar o filho, porque já não o abraçava há muito tempo por ter medo de o contagiar. Chorei e, ao mesmo tempo, abracei-a para lhe mostrar que a transmissão não acontece através de um simples abraço”.

“O aumento de casos não é preocupante. O mais alarmante são as pessoas que não querem ser tratadas, pondo em causa a saúde pública”, salienta o presidente do Instituto Nacional de Combate ao VIH-SIDA, Atanásio De Jesus.

Para o presidente, a informação é a chave para acabar com a discriminação e sobretudo para fazer com que as pessoas não tenham medo de fazer o tratamento. “A informação relativamente à prevenção já chegou aos 13 municípios, às escolas e até aos religiosos”, destaca.

“É melhor deitar o preservativo para o lixo depois de usar do que deitar um bebé no lixo ou contrair doenças sexualmente transmissíveis”

Embora haja reforços na recomendação de utilização dos preservativos e postos de distribuição gratuita no país, como acontece na clínica Marie Stopes e nos centros hospitalares públicos, a Igreja Católica em Timor-Leste manifesta-se contra o uso, alegando de que a proteção estimula o ato sexual antes e fora do casamento.

Por sua vez, o exemplo do Governo de um país em que mais de 90% da população é católica, também deixa a desejar. EM 2021, a atual Ministra da Saúde, Odete Freitas Belo, mandou riscar a expressão “uza preservativu” (escrito em tétum) de cartazes para a prevenção do VIH/SIDA.

“A Igreja pode manter os seus princípios relativamente à não contraceção, defender que só se faça sexo depois do casamento e com vista à procriação, mas não pode dificultar o trabalho dos profissionais de saúde, proibindo o uso de preservativo, porque isso pode colocar em risco a saúde pública”, defende o médico Bonifácio de Jesus.

“É melhor deitar o preservativo para o lixo depois de usar do que deitar um bebé no lixo ou contrair doenças sexualmente transmissíveis”. Casos de bebés recém-nascidos encontrados no lixo continuam a ser uma realidade em Timor-Leste.

“Foram registados 76 novos casos de infeção pelo VIH no primeiro trimestre de 2023 e estão registados, atualmente, 1609 casos ativos em Timor-Leste”

O médico avança ainda que, alguns grupos religiosos não têm reagido bem aos alertas médicos para a importância do uso do preservativo, evitando assim relações sexuais desprotegidas. “Isso não nos impede de informar de forma preventiva e esclarecer sobre os meios de transmissão”. O profissional de saúde refere ainda que, “quando as pessoas estão devidamente informadas sobre o VIH e os meios de transmissão, naturalmente, a discriminação não acontece”.

De acordo com o chefe do Programa da HIV-SIDA do Ministério da Saúde, Bernardino da Cruz, foram registados 76 novos casos de infeção por VIH no primeiro trimestre de 2023. Ainda segundo os mesmos dados, estão registados, atualmente, 1609 casos ativos em Timor-Leste, que tem ao todo 1,3 milhões de habitantes. No entanto, devido às limitações nos sistemas de vigilância disseminam rapidamente na população”, o número real de casos pode ser maior do que o que está registado oficialmente. Embora a epidemia de VIH em Timor-Leste ainda seja considerada de baixa prevalência, a taxa de novas infeções tem aumentado nos últimos anos.

Os desafios na resposta ao VIH em Timor-Leste continuam a precisar de uma resposta séria e eficaz das autoridades e da sociedade civil em geral. Além da falta de acesso a testes e tratamento antirretroviral, o estigma relativamente à doença e os episódios de discriminação não só afetam o dia a dia destes doentes como chegam mesmo a impedi-los de procurar serviços de saúde que os ajudem a viver uma vida normal, mesmo infetados pelo vírus. O primeiro passo nesse sentido pode passar por lembrar que o VIH não se transmite através de um aperto de mão, de um abraço ou de um beijo. A única coisa que esses gestos podem transmitir é respeito, compreensão e amor.

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