Três anos após as cheias de 4 de abril, população continua a viver em áreas de risco e autoridades têm dificuldades em impedir construções

Pessoas continuam a residir nas áreas de risco, como na margem de ribeiras/Foto: Diligente

São visíveis casas construídas nas margens de ribeiras, nas montanhas e à beira-mar. A lei da Proteção Civil, que proíbe este tipo de habitação, ainda não está a ser implementada por alegadamente estar na etapa de sensibilização.

As inundações provocadas pelo ciclone Seroja em 2021, que provocou 44 mortes, deixou quatro pessoas desaparecidas e cerca de 10 mil desabrigadas, parece não ter sido uma lição tanto para as autoridades como para a população. Os cidadãos continuam a morar em zonas de risco (moradias construídas nas margens de ribeiras, nas montanhas e à beira-mar), que são lugares mais suscetíveis de desastres naturais. O argumento geral é de que não se consegue encontrar um terreno em locais mais seguros.

Por sua vez, o Governo, que proíbe este tipo de habitação, não consegue retirar as famílias que vivem nestas zonas. Para piorar, as autoridades não sabem, ao certo, quantos agrupamentos familiares se encontram nesta situação e a Política de Ordenamento Territorial, apresentada no Conselho de Ministros em fevereiro deste ano, continua sem previsão de implementação. O governo anterior pretende concluir a referida iniciativa, que visa regular o uso do espaço público e prevenir desastres naturais, apenas em 2026.

Entre os cidadãos que vivem em regiões consideradas como sendo de risco encontra-se Carlito Pacheco, 50 anos, funcionário no Ministério da Administração Estatal, na base de dados. O trabalhador, que tem consciência do perigo que corre, reside há 11 anos com a sua família na margem da ribeira de Comoro, na aldeia Moris Foun, zona periférica de Díli.

Em busca de melhores oportunidades, saiu de Ainaro e arranjou o terreno depois de os areeiros se terem instalado no local. Já quis ir para um lugar mais seguro, mas as condições financeiras impediram-no. Atualmente, mais conformado, faz o que pode para manter a família a salvo. Ao todo, 14 pessoas vivem na moradia.

“Se a ribeira encher e atingir a nossa casa, saímos para a estrada. Quando chove, especialmente à noite, ficamos acordados e preparados com as crianças e os documentos importantes para fugirmos a tempo”, partilhou.

Carlito Pacheco informou que, de acordo com o registo recente feito por líderes locais, existem cerca de 300 famílias a viver na margem da ribeira de Comoro. Segundo o morador, o Governo anterior pediu que saíssem, dando duas opções: voltar ao município de origem ou ir para um novo bairro.

“Escolhi voltar para Ainaro, porque não sabia se o bairro novo já estava pronto. Até agora, não houve avanços nesta questão”, disse. Enquanto nada acontece, pede que o Governo alargue a ribeira até 50 metros de largura e construa um muro de proteção.

Outra cidadã com noção dos perigos que corre, mas não se muda por supostamente não ter para onde ir é Marquita da Cruz Lopes, 70 anos. A mãe de cinco filhos vive com a família na aldeia Romit, suco Becora, posto administrativo de Cristo Rei, na capital. Já afetada, pelo menos três vezes, por inundações, revela sentir medo quando chove por mais de 30 minutos.

“Se chove de noite, não dormimos”, contou. Nas próximas duas semanas, a Autoridade de Proteção Civil (APC), tendo em consideração a intensidade da chuva nos últimos dias, alerta para um possível ciclone, que pode resultar num temporal em Timor-Leste.

Até ao momento, a direção da Proteção Civil e Desastres Naturais (PCDN) da Autoridade Municipal de Díli (AMD) não sabe ao certo quantas pessoas estão a viver em zonas de risco, sob a justificação de que o departamento foi criado há um mês. Adiantou, contudo, que pelo menos 22 famílias estão nesta situação.

“Ainda não temos dados cumulativos, porque ainda não fomos a alguns sítios, como Becora, Comoro e outras”, reconheceu o diretor da PCDN, Jacinto Freitas. As zonas de risco identificadas pela AMD são a aldeia Metin e Becoi em Lahane Oriental, a ribeira de Maloa no posto de Dom Aleixo, o suco Aikakeu em Cristo Rei, Hera Metinaro e Balibar-Dare.

O presidente da APC, Ismael da Costa Babo, informou que a Lei da Proteção Civil, criada em 2020, proíbe a construção de moradias em áreas suscetíveis de desastres naturais, com pena de prisão de até três anos em caso de descumprimento. No entanto, argumentou que a legislação ainda não está em prática, pois primeiro é necessário dá-la à população.

Durante a sensibilização, a APC solicita aos moradores que procurem outro lugar para viver, mas a resposta comum é de que não há, partilhou Ismael Babo. A autoridade não soube determinar até quando a socialização irá durar, mas destacou que, após esta etapa, as pessoas poderão ser expulsas, caso se recusem a sair.

“Porque é que devemos obrigar pessoas a salvar as suas vidas? Elas amam mais as suas casas do que as suas próprias vidas”, queixou-se.

Para o presidente da APC, os cidadãos fazem parte da proteção civil, porque, se evitarem viver em lugares de risco, poluir o ambiente ao deitar lixo aleatoriamente e escavar terrenos sem controlo, reduz-se os gastos do Governo para recuperar os estragos individuais e das infraestruturas públicas.

Ismael Babo partilhou ainda que, desde janeiro de 2024, se registaram doze mortos e oito feridos por desastres naturais e 1.569 famílias afetadas, sendo que 814 tiveram as suas habitações estragadas – mais da metade devido a inundações.

Cerca de 300 famílias residem na margem da ribeira de Comoro/Foto: Diligente

Relativamente à mitigação de desastres naturais causados pela chuva, o ministro das Obras Públicas, Samuel Marçal, informou que não se consegue construir na época da chuva e apenas estão a retirar a lama das ribeiras, situação provocada, em grande parte, por ação humana. Segundo o governante, os cidadãos escavam as zonas das colinas de montanhas, causando sedimentação nas ribeiras sempre que chove. “Apenas na ribeira de Maloa – situada entre a aldeia de Matadouro e a aldeia de Aitaraklaran –, já fizemos isto mais de dez vezes”, afirmou.

De acordo com o censo de 2022 (o mais atual), a população de Timor-Leste é de aproximadamente 1,3 milhões de habitantes, sendo que por volta de 324 mil pessoas vivem na capital, Díli.

A promessa de bairro novo

Uma parte das pessoas desabrigadas pelas cheias de 4 de abril de 2021 foi encaminhada para habitações temporárias. A última delas, uma casa arrendada pelo Governo, situada em Hera, teve o contrato expirado em novembro do ano passado, e cinco famílias, que alegam não ter para onde ir, ainda vivem na moradia.

A residência, composta por um rés-do-chão e um primeiro andar, pertence à Organização Não Governamental (ONG) Fundação Haburas. O diretor da ONG, Hortênsio Pedro Vieira, disse que enviou cartas à AMD para saber se ia prolongar o contrato, mas ainda não obteve resposta.

“Não podemos expulsar as pessoas, porque o nosso negócio é com o Governo, não com as vítimas. O Executivo deve resolver este problema, porque já há cinco meses que a renda não é paga”, sublinhou Hortênsio Vieira.

Quanto à questão, o atual presidente da AMD, Gregório Saldanha, reconheceu que ainda não tinha conhecimento, mas adiantou que “se o pedido de prolongamento chegou ao órgão, já deve estar a ser processado”.

Quando as vítimas das cheias de 4 de abril foram atendidas, tiveram duas opções: receber materiais de construção e voltar aos municípios ou permanecer nas habitações temporárias e esperar serem colocadas em novas moradias, a serem construídas em um novo bairro, em Hera – que, em teoria, deveria ser um lugar permanente para acomodar as pessoas afetadas por desastres naturais e moradores nas zonas de risco.

As famílias que continuam a residir na casa arrendada há mais de dois anos são aquelas que acreditaram na promessa de um novo bairro.

Porém, o atual ministro das Obras Públicas esquivou-se, afirmando que o referido projeto é da exclusiva responsabilidade do Banco Mundial. Contudo, o ministro das Obras Públicas do Governo anterior, Abel Pires da Silva, havia informado que a iniciativa do bairro novo se tratava de uma Parceria Público-Privada (PPP), entre o Estado, a Corporação Financeira Internacional (IFC, em inglês), um membro do Grupo Banco Mundial.

Samuel Marçal disse não ter conhecimento sobre a criação do bairro em Hera. Por outro lado, uma fonte do Banco Mundial informou apenas que a instituição tem um projeto de habitação em Hera, sem dar mais pormenores.

Carlito Pacheco partilhou que, pouco depois das cheias de 4 de abril, pessoal da Administração Estatal foi a Comoro oferecer duas opções: voltar ao município ou ir para o bairro novo. O funcionário escolheu a primeira opção, mas até agora não houve avanços.

Questionado sobre o bairro novo, o ministro da Administração Estatal (MAE), Tomás Cabral, sugeriu dirigir a pergunta à Autoridade Municipal de Díli. Questionada sobre o assunto, a ex-presidente da AMD, Guilhermina Ribeiro, exaltou-se e enfatizou que o órgão nunca se envolveu no assunto.

Por sua vez, o atual presidente da AMD, Gregório Saldanha, confidenciou que ouviu falar sobre o bairro novo antes de assumir o cargo. “Agora já sei que existe o plano de um lugar de acolhimento para vítimas de desastres naturais, mas ainda estou a procurar esclarecimentos”, partilhou.

Já o presidente da APC, Ismael Babo, acredita que o Governo não tem terreno para oferecer aos cidadãos, mas prepara apenas lugares de acolhimento provisórios para evacuar as vítimas de calamidades.

Entretanto, Carlota Freitas, moradora do prédio da Fundação Haburas, onde vive com os quatro filhos e o marido, é uma das pessoas que esperam pela promessa. A situação no local continua a ser igual: falta de acesso regular a água e pouco espaço.

“Peço aos governantes que venham aqui e vejam as nossas condições”, apelou. Apesar das dificuldades do local, Carlota Freitas e família continuarão lá, pois não têm um teto onde se abrigar.

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  1. Infelizmente nao sao necessarias cheias para que as nossas gentes vivam em precarias condicoes, mas as cheias vem tirar as provas dos noves da incapacidade dos politicos e governantes. No tempo da colonizacao esses senhores estavam mortinhos para mudar a situacao do Povo. Com tanto dinheiro esbanjado, a situacao de TL para alem de ter o quintuplo de veiculos que apenas engarrafam o trafico o Povo vive num OASIS, mas que miragem!

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