A falta de emprego em Timor-Leste tem levado muitos jovens a decidirem abandonar o país em busca de trabalho e de uma vida melhor em outros países, entre eles a Coreia do Sul. O destino é-lhes “vendido” como uma oportunidade, mas para a conquistarem, são obrigados a superar um caminho longo, dispendioso e, muitas vezes, fraudulento, em que médicos e entidades competentes se aproveitam da vulnerabilidade dos candidatos em vez de os protegerem.
De acordo com dados do Banco Mundial, em 2021 e em 2022, a taxa de desemprego tem rondado os 5%, o valor mais alto registado no país, pelo menos desde 2014. Ainda assim, o número pode também não refletir a realidade e ser superior, se tivermos em conta apenas o registo de desempregados. Muitos não estão registados. O desemprego tem sido, nos últimos anos, um dos principais problemas que Timor-Leste enfrenta e o motor para que muitos jovens escolham deixar o país.
Desde 2009, Timor-Leste tem enviado trabalhadores para a Coreia do Sul. Segundo dados da Direção Nacional do Emprego Exterior, desde essa data, já foram enviados 5190 trabalhadores para o país, dos quais 960 já regressaram, entretanto, ao seu país. Só no último ano, 2022, foram enviados 1160 trabalhadores para a Coreia do Sul. Chegam ao país para trabalhar nos setores da indústria, das pescas e da agricultura.
Um dos requisitos para conseguir emprego num desses setores é dominar a língua coreana. Isso implica que os trabalhadores tenham de frequentar um curso com a duração mínima de seis meses. A formação é disponibilizada gratuitamente na Secretaria de Estado de Formação Profissional e Emprego (Sefope), entidade responsável por dar seguimento aos processos dos trabalhadores nacionais que querem trabalhar na Coreia do Sul. No final dos seis meses de aulas, os candidatos devem realizar um exame final e começa aí uma conta que não vai parar até chegar, pelo menos, aos 3 mil dólares. Para fazer a avaliação final, têm de pagar 24 dólares. Entre as diferentes turmas, chega a haver mais de 1000 timorenses a aprender, simultaneamente, a língua coreana, em Díli, muitos oriundos dos municípios.
Sem autonomia financeira para subsistir em Díli, por este período de seis meses, tendo em conta todas as despesas inevitavelmente associadas, são, muitas vezes, os pais destes jovens, também eles com dificuldades e, na maior parte das vezes endividando-se, que se assumem as despesas da estadia na capital para conseguirem que os filhos venham dos municípios para frequentar o curso e responder a todos os outros requisitos.
Depois de terem aproveitamento nesta primeira etapa (o exame linguístico), os trabalhadores devem realizar análises de sangue, no valor de 24 dólares. O resultado destes dois testes é depois enviado para os empregadores na Coreia do Sul para atestar que o candidato em causa está apto linguisticamente e não apresenta problemas de saúde, duas condições que o tornam elegível. O empregador faz, então, uma seleção dos que vão continuar no processo. Os escolhidos ainda terão pela frente um longo e dispendioso processo para conseguirem o atestado médico exigido pelo Governo da Coreia do Sul e para comprarem as passagens aéreas.
Desde o primeiro exame médico até à compra da viagem, o valor total que cada um destes trabalhadores acabará por pagar à Sefope é de 3000 dólares. Para o bilhete de avião, são precisos 2280 dólares americanos. Somam-se 150 dólares americanos para uma formação inicial a que estão obrigados, 40 dólares para um teste de PCR, 50 dólares para o pagamento da noite de véspera da viagem num hotel (segundo a Sefofe “em quarentena”), 475 dólares para seguro e mais cinco dólares para despesas administrativas. Todos estes valores estão discriminados no recibo que a Sefope entrega aos trabalhadores no final do processo. Os trabalhadores queixam-se, no entanto, de não terem nunca tido acesso aos recibos originais referentes aos gastos.
Para fazerem face ao avultado valor das despesas, os próprios trabalhadores pedem dinheiro emprestado a familiares, conhecidos ou vizinhos, que lhes cobram depois juros de 10% a 25%. A dificultar ainda mais o processo estarão, ao que o Diligente apurou, alegados subornos e fraudes a que estes trabalhadores estão sujeitos, num processo pouco transparente.
Para obterem o atestado médico que as autoridades coreanas exigem, começam por ter de realizar mais exames médicos, nomeadamente, outro exame de sangue e um raio-X. Juntos perfazerem o valor de 100 dólares. Terão depois de apresentar o resultado destes exames a médicos do Hospital Nacional Guido Valadares (HNGV), que, de acordo com testemunhos de alguns destes trabalhadores, lhes prescrevem receitas de medicamentos para supostos problemas de saúde que não especificam, sem sequer consultarem os resultados clínicos dos exames que lhes são apresentados. Contam ainda que, quando, a pedido dos mesmos médicos, regressam à consulta, uma semana depois, estes lhes pedem mais 100 dólares para que enviem o atestado médico para a Sefope, que encaminhará depois o documento com a restante documentação do processo para as entidades empregadoras.
O caso foi denunciado publicamente quando, a 9 de fevereiro de 2023, Cornélio Moniz Xavier, um dos professores de língua coreana destes trabalhadores, publicou, na sua página do Facebook, capturas de ecrã de mensagens que foi recebendo, desde 2019, em que ex-alunos lhe faziam queixas e denúncias relativamente aos processos de candidatura pelos quais tiveram de passar até conseguirem os seus trabalhos na Coreia do Sul.
Nessas mensagens, os jovens queixam-se de nunca terem recebido os recibos originais de todas as despesas que tiveram, nomeadamente da compra do bilhete de avião, do pagamento para obter o atestado médico no Hospital Nacional Guido Valadares (HNGV) negativo para sífilis, HIV/SIDA, hepatite, bronquite e tuberculose, do valor da noite que têm de passar no hotel na véspera da viagem (numa suposta quarentena), e do valor do teste PCR. Acresce que, tanto a quarentena como o teste de PCR já foram abolidos pela Coreia do Sul, deste outubro de 2022. Os testemunhos referem ainda que os atestados médicos nunca lhes foram entregues em mãos.
Em declarações ao Diligente, o professor Cornélio lamentou “que estes jovens, oriundos de famílias carenciadas e que estão à procura de melhores condições de vida, sejam vítimas de esquemas fraudulentos, por parte das entidades competentes.”
Suspeitas de diagnósticos falsos e atestados médicos pagos
Um destes cidadãos timorenses, já a trabalhar na Coreia do Sul, contou ao Diligente como decorreu o seu processo, sob a condição de não ser identificado, por receio de represálias. O primeiro sinal de alerta surgiu quando, segundo a sua versão dos factos, terá depois sido informado, por um médico do HNGV, cujo nome não se recorda, de que tinha um problema nos pulmões e que teria, por isso, de tomar medicação durante uma semana.
“Quando fui mostrar o resultado das análises de sangue e do raio-X, o médico disse-me que tinha uma doença pulmonar, consequência de ser fumador e de consumir álcool, mas eu nunca fumei nem bebi. Fiquei confuso, porque, para além disso, antes de entregar o exame ao médico, apesar de nos dizerem que é proibido abrir os resultados, eu abri e vi que eram negativos para os testes pedidos pelo Governo sul-coreano”, conta o trabalhador.
Na mesma consulta, o médico ter-lhe-á entregado uma receita que já estaria prescrita em cima de uma estante, sem que, em momento algum, especificasse qual era a doença em causa e para que serviam os medicamentos que lhe disse para tomar.
Segundo o trabalhador, o médico tê-lo-á informado, em surdina, de que quando, ao final de uma semana, terminasse a medicação composta por Amoxiclav, Azitromicin, Dexametasona e Multivitaminas, tinha de voltar ao HNGV e pagar mais 100 dólares para que o médico enviasse o atestado médico para a Sefope.
Desconfiado relativamente a toda esta situação, consultou um outro médico, que trabalha em Baucau. O médico explicou-lhe se tratava de uma medicação muito forte. E, perante isso, resolveu não cumprir a prescrição na totalidade e tomar apenas alguns dos medicamentos.
Ainda não tinha passado uma semana, e os amigos, que o tinham acompanhado na consulta no Hospital Nacional, ligaram-lhe a dizer que quando foram fazer as consultas relativas aos seus processos, o mesmo médico terá perguntado por ele. Ficou preocupado e, nesse mesmo dia, dirigiu-se ao hospital o mais rapidamente possível, mas o médico já não estava lá. Contactou-o telefonicamente e o profissional de saúde sugeriu que se encontrassem num jardim, onde, segundo o jovem, lhe pediu que pagasse os 100 dólares que lhe disse na consulta que teria de pagar no final do “tratamento”, para que o atestado médico que o dava como apto chegasse à Sefope.
Outro trabalhador, que também quis manter o anonimato, revelou ao Diligente que passou por uma situação idêntica. “Eu, os meus amigos e familiares, todos pagámos 100 dólares pelo raio-X e pelas análises de sangue, entregues dentro de um envelope fechado, que devia ser aberto apenas pela médica”. Na consulta, depois de observar os resultados, a médica ter-lhe-á também comunicado que estava doente e que precisaria de esperar por um médico especialista para o observar, médico esse que acabaria por lhe receitar também uma série de medicamentos, sem explicar porquê nem para quê.
De acordo com este último testemunho, estes dois casos multiplicam-se por muitos outros trabalhadores a quem médicos do HNGV prescreveram receitas de medicamentos para condições clínicas não especificadas, medicamentos esses que muitos dos trabalhadores nunca tomaram e, apesar disso, depois de voltarem ao hospital, uma semana depois, para repetirem os exames, foi-lhes sempre comunicado por médicos, nas respetivas consultas, que já tinham recuperado. Para além disso, tiverem também de pagar os mesmos 100 dólares para que os médicos enviassem os atestados médicos à Sefope.
O primeiro nome de uma das médicas envolvidas no processo foi referido nos comentários às publicações do professor Cornélio Moniz Xavier, que denunciaram o caso. O Diligente investigou e apurou tratar-se de Zélia Orleans, médica do HNGV. Procuramos obter esclarecimentos por parte da médica que, apesar de ter aceitado, no dia 17 de fevereiro, responder às nossas questões, acabaria, ao final do dia, por informar, que seria a direção clínica do hospital a fazê-lo em sua representação, o que também nunca chegou a acontecer.
Até à data desta publicação, a equipa do Diligente ligou várias vezes para o HNGV para conseguir obter declarações da direção do hospital, onde também se deslocou várias vezes, mas foi-nos sempre dito que os diretores estavam ocupados, ou, se tinham sentido mal.
O Diligente voltou a tentar chegar à fala com Zélia Orleans, que através de uma mensagem de telemóvel no dia 8 de março, referiu não querer prestar declarações e que devíamos “deixar a justiça decidir”.
Sefope e DNEE contrariam versão dos trabalhadores
Questionados sobre os alegados casos de fraude e pedidos de suborno, tanto o diretor Geral da Secretaria de Estado de Formação Profissional e Emprego (Sefope), Paulo Alves, como o responsável pela Direção Nacional do Emprego Exterior (DNEE), Filomeno Soares, afirmaram desconhecer as queixas dos trabalhadores, apesar de se terem tornado virais nas redes sociais.
Paulo Alves salientou que “todos os trabalhadores são informados que, para poderem assinar os contratos de trabalho, têm de cumprir requisitos dos quais também lhes é dado conhecimento e, caso não tenham condições financeiras, podem sempre cancelar o processo”. Garantiu também “que os trabalhadores receberam todos os recibos originais”, ao contrário do que estes e o professor Cornélio referiram.
Relativamente ao pagamento do atestado médico, que era inicialmente feito no banco, e passou a ser feito diretamente no HNGV, Filomeno Soares esclareceu que “o processo no banco era uma perda de tempo, porque, devido ao elevado número de jovens a quererem emigrar, as filas eram intermináveis”. Para além disso, “aprecio esta política, porque ao pagar diretamente ao hospital estão a contribuir para os cofres do Estado”, destacou.
Apesar de, desde 1 de outubro de 2022, o teste PCR ter deixado de ser requisito de entrada na Coreia do Sul, a Sefope continuou a exigir a apresentação do teste. Relativamente à quarentena de uma noite, a Sefope informou que, desde fevereiro já não é exigida. No entanto, o Diligente teve conhecimento de casos de trabalhadores que, no final de fevereiro, ainda tiveram de cumprir esta quarentena, num hotel em Díli.
Questionado relativamente aos trabalhadores que acusaram a Sefope de os ter obrigado a realizar os procedimentos médicos no HNGV, Paulo Alves desmente a informação: “Não indicamos médicos específicos e os trabalhadores podem fazer o check-up noutras clínicas”, enfatizou. “Inicialmente, o Governo sul-coreano só aceitava o atestado médico do HNGV, mas agora isso já não acontece, e quem quiser pode fazê-lo noutros locais como, por exemplo, na clínica Moris Foun”.
Ainda relativamente aos atestados médicos, por sua vez, o diretor da DNEE indicou que são entregues aos próprios que, por sua vez, os entregam na Sefope, contrariando a versão dos trabalhadores que dizem nunca terem recebido o documento médico.
Sobre o alegado pagamento de 100 dólares para a realização de exames médicos e de outros 100 para que o documento fosse enviado pelos profissionais de saúde à Sefope, Filomeno Soares afirmou, ao Diligente, não ter conhecimento de que os trabalhadores tenham tido de pagar nenhuma dessas quantias.
Ministra da Saúde normaliza o caso: “os médicos não são perfeitos”
“Este caso de suborno não é uma surpresa para mim. Por coincidência, apanharam em flagrante esta médica, e os outros médicos?”, questionou a Ministra da Saúde, Odete Belo, relativamente ao caso, referindo-se ao facto de ter, em sua posse, os dados completos dos profissionais de saúde que terão recebido subornos.
A ministra sublinhou ainda que “nas instituições, o trabalho não é sempre perfeito” e que é responsabilidade do Ministério da Saúde (MS), estar atento a estes casos e aplicar sanções através dos procedimentos para o efeito”. Realçou também que as leis da Comissão Anticorrupção (CAC) estabelecem que, em casos de suborno financeiro, estão sujeitos a sanções legais, tanto aqueles que recebem o dinheiro, como aqueles que pagam para obter algum tipo de favorecimento ou facilidade.
“Quero pedir à comunidade que pare de dar dinheiro aos médicos, porque eles não são perfeitos, não são anjos”. A ministra, também ela médica, normalizou o caso: “somos como vocês, também estamos sujeitos a cometer erros, o que nos diferencia é a capacidade para tratar dos doentes. Este caso não representa um problema para mim.”
Ressaltou ainda, relativamente à médica Zélia Orleans, atualmente sob investigação, que “se a investigação concluir que é culpada, o processo vai decorrer de acordo com a lei, mas nós (MS) temos também de procurar quem pagou estas quantias aos médicos.”
“Se tiverem muito dinheiro, por favor, fiquem com ele e trabalhem no vosso país. Não nos deem, porque nós médicos também precisamos de dinheiro como vocês e, por isso, vamos aceitar.”