Timor-Leste pós-conflito: Feridas psicológicas por curar e o dilema da reconciliação

Tratamentos desumanos pelos militares indonésios afetaram a saúde mental de muitos timorenses/Foto: Timor-Leste em fotos

Depois de 21 anos de restauração de independência, o tratamento psicológico para os que sofrem de stress pós-traumático ainda é escasso. Já no plano da reconciliação, as autoridades timorenses estão divididas: levar os responsáveis a responder perante a justiça ou manter a relações diplomáticas com a nação vizinha. 

Passados 21 anos de restauração da independência, Timor-Leste ainda não tem recursos hospitalares e recursos humanos suficientes para dar resposta às pessoas que sofrem de stress pós-traumático causado pela ocupação indonésia, entre 1975 e 1999, revelaram o Diretor da Associação dos Profissionais de Psicologia de Timor-Leste (APPTL), Lauriano Fernandes, e o Diretor-Executivo da Comissão Nacional Chega (CNC), Hugo Fernandes, no âmbito do seminário subordinado ao tema “Guerra e traumas”, na passada sexta-feira (8.12), no Jardim de 5 de maio, em Díli.

De acordo com o Diretor da APPTL, instituição que trabalha em parceria com a CNC desde 2022, a falta de recursos financeiros e transportes dificultam o trabalho dos psicólogos. “Só conseguimos ir a casa dos pacientes nos municípios de Díli, Aileu, Liquiçá, Baucau e Viqueque, uma vez por mês. O tratamento não é regular, porque somos só sete. O Estado deve recrutar mais pessoas e criar centros de acolhimento e hospitais para dar apoio contínuo.”

Lauriano Fernandes destaca ainda que em dois anos conseguiram tratar apenas 16 pessoas. “No ano passado, começámos a fazer consultas de psicologia a dez pessoas, cinco das quais conseguiram recuperar e cinco continuam em tratamento. Este ano, atendemos 18 pessoas, conseguimos a recuperação de 11. Cinco mantêm-se em terapia e um cidadão sofre de deficiência intelectual”. A equipa, apesar de reduzida, tenta apoiar os doentes. “Usamos a técnica de aproximação, damos aconselhamento, ouvimos as histórias e fornecemos ferramentas para que possam ultrapassar o trauma”, explicou o diretor.

O Ministério da Saúde inclui a saúde mental no espaço do departamento de doenças não-transmissíveis, o que faz com que acabe por não ter a atenção adequada. Os pacientes que necessitam de estadias mais prolongadas são transferidos para o Centro de Apoio à Saúde S. João de Deus, em Laclubar, a 100 quilómetros da capital e com capacidade para apenas 13 doentes.

O paciente António Gusmão, solteiro, 46 anos, sofreu lesões psicológicas devido a agressões perpetradas pelos militares indonésios. “Em 1999, os militares prenderam-no e bateram-lhe muito na cabeça e agora tem problemas mentais. Fala sobre coisas que não entendemos. Passa muito tempo sentado sozinho, tentamos conversar com ele, mas ele não nos responde,” conta a irmã, Ana Joana Moniz.

Salestiano Martins, 48 anos, pai de três filho,  conta que os efeitos da ocupação o vão acompanhar a vida toda. “Nasci no período da guerra. Quando ouvia o som dos tiros, ficava com muito medo. Em 1999, em Díli, quando as milícias atacaram o lugar onde estávamos refugiados, vi pessoas a serem baleadas e morrerem à minha frente”. Salestiano teve a sorte de não lhe ter acontecido nada fisicamente, mas psicologicamente ficou afetado até hoje. Muitas vezes, recorda as situações e sonha com tudo o que viu, o que o faz acordar sobressaltado e o impede de voltar a adormecer. Também tem dificuldades em controlar a raiva: “Muitas vezes, zango-me muito e grito com os meus filhos e esposa. Agora estou melhor, graças à ajuda dos psicólogos”, salientou.

Estes comportamentos e sintomas refletem um trauma coletivo de guerra, de acordo com o psicólogo Ângelo Aparício. “Não somos doentes, mas temos sintomas. Muitos estudos dizem que os timorenses são reativos, zangam-se facilmente. Temos muitas dificuldades em confiar em alguém. Quando outra pessoa tem ideias diferentes da nossa, preferimos defender-nos do que compreendermos a razão desta opinião”, sublinhou.

De acordo com o psicólogo, em países pós-conflito, devido a décadas de uma ocupação violenta, os níveis de stress pós-traumático, depressão e ansiedade são mais elevados do que em outros países.

Considera ainda que os impactos emocionais da guerra e da ocupação se refletem no comportamento de todos, inclusivamente de pessoas que estão em posições de poder.

Entre a recuperação de traumas e a reconciliação

Questionado sobre a reconciliação que gerou polémicas, Hugo Fernandes disse que cada caso é um caso. “O agressor tem de falar com a vítima e a vítima é que poderá decidir se aceita o pedido de desculpas. Isto é um processo. Depois disso, fazemos uma cerimónia cultural de nahe biti boot [forma tradicional de reconciliação], em que o autor se arrepende e pede desculpa”, explicou.

Quanto às penas aplicadas aos autores de crimes, o diretor afirmou que alguns atos, se não foram denunciados ao Tribunal e se já passaram mais de 20 anos, podem ser absolvidos, o que não descarta a possibilidade de haver uma indemnização civil.

Pode ler-se no Código Penal timorense, no artigo 110.º: “O procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos: a) 20 anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 12 anos”.

Quanto aos crimes que entram na categoria de crimes contra a humanidade, como homicídio, violação sexual e torturas, não prescrevem. “Para quem comete este tipo de crime, não há lugar para a reconciliação. Os criminosos que estão no país devem ser punidos. No caso dos que estão na Indonésia, embora não os possamos deter por estarem em outro país, se vieram cá, serão detidos”, explicou Hugo Fernandes.

Para José Pedro Macedo, estudante de direito na Universidade de Díli (UNDIL), presente no seminário, a reconciliação e a condecoração de autores de crimes durante a invasão só agravam os traumas dos sobreviventes. “A palavra desculpa vai engrandecer as feridas do passado. Devíamos resolver estas questões na justiça. Queremos que as pessoas que mataram o nosso povo e violaram as nossas irmãs sejam punidas por lei”, defendeu.

Quanto a garantir a justiça para todos, o Diretor da CNC disse que já se criaram muitos mecanismos, mas não funcionaram. “Criou-se o Tribunal “Ad hoc”, em Jacarta, capital da Indonésia, para investigar e punir os atentados contra os direitos humanos em Timor-Leste, mas não correu bem. Infelizmente, entre os criminosos que foram a julgamento, só Eurico Guterres [um dos principais dirigentes da milícia “Aitarak”] e Abílio Osório [governador timorense durante a ocupação indonésia] foram punidos. Os outros comandantes foram absolvidos”.

Hugo Fernandes considera ainda que o Tribunal Internacional deveria agir. “Os  Estados Unidos da América (EUA) apoiaram a invasão indonésia. A atuação do Tribunal Internacional é influenciada por interesses políticos. O nosso Estado está perante um dilema: prejudicar as relações bilaterais ou levar os casos à justiça. O Presidente da República, José Ramos-Horta, e o Primeiro-Ministro, Xanana Gusmão, querem garantir as boas relações entre as nações”, concluiu.

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  1. Os “maun boots” querem que se varra o lixo para debaixo da carpete. Todos querem paz e reconciliacao mas lixo ha que por ser tao grande nao cabe debaixo da carpete. Macaco escondido com o rabo de fora?

  2. A historia, ah a historia vai julgar-los. A justica e aquilo que prometemos ao Povo de Timor-Leste no tempo de eleicoes por mais de 20 anos, vaniu-se? Os homens nao se medem aos palmos. Somos humanos ou ratos? Nao queremos guerra, estamos fartos dela ate os olhos, mas JUSTICA tem de ser feita, por respeito a todos os TIMORENSES que sofreram as agruras dos 24 anos de ocupacao. Nada mais!

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