(Sobre)viver com cancro em Timor-Leste

Em 2020, a OMS registou um total de 814 casos em Timor-Leste/ Foto:Vitanovski/Thinkstock.

Às 8h30 da manhã, vemos abrir-se a porta da casa que, impecavelmente pronta para receber as “visitas”, nos mostra que onde mora um timorense mora também a arte de “bem receber”. A organização contrasta com o caos que a visita mais inesperada e indesejada trouxe à vida de Abília (nome fictício). O diagnóstico de cancro da tiroide chegou sem aviso, e com ele vieram, progressivamente , as dores e as limitações que a obrigam hoje a receber-nos numa cadeira de rodas. Os olhos molhados evidenciam o rosto triste, num choro contido que não se vê, mas se sente: “estou doente, mas quero ter saúde”.

Abília Alves (nome fictício) nasceu há 62 anos no município de Viqueque. As dores que começaram por ser “ligeiras” eram também pontuais, iam e vinham, até que vieram para ficar.

O diagnóstico médico levaria que tivesse de vir a ser operada não uma, mas duas vezes. Ambas as cirurgias aconteceram no Hospital Nacional Guido Valadares (HNGV). A primeira operação foi bem-sucedida e trouxe até melhorias significativas ao estado de saúde de Abília. “Depois da primeira operação senti-me melhor, mas as dores voltaram, senti dores que nunca tinha sentido, doía-me o corpo todo o que me impossibilitava de andar. Sentia-me muito fraca e quando tentava estar de pé, desmaiava”. Debilitada ,viu-se obrigada a regressar ao hospital, e com a consulta veio a notícia que não queria receber: “o médico disse-me que teria de ser operada novamente”.

Durante todo o processo de consultas médicas e tratamentos, Abília sempre confiou na medicação que o seu médico lhe foi receitando. Viria algum tempo depois a descobrir que os fármacos prescritos não iam para além do paracetamol, para aliviar as dores, e da amoxicilina (antibiótico). O consumo excessivo destes medicamentos acabaria por vir a causar-lhe danos em outros órgãos. A família estava informada de que não havia, no país, os medicamentos mais indicados para a doença, mas optou sempre por não dar essa informação a Abília, porque tinha medo que isso pudesse “afetar o seu estado anímico e ela piorasse”.

Apesar disso, chegou o dia em que o irmão ganhou coragem para lhe contar e explicar tudo o que o médico lhe tinha dito a ele, mas não a ela. A informação não era animadora e as hipóteses de cura reduzidas . Abília chorou toda a noite a pensar no que o futuro lhe reservaria e em quanto tempo teria esse “futuro”, ao ver que a vida lhe escapava entre as mãos , sem nada poder fazer para contrariar a “sentença ” A paciente, claramente triste, com os olhos marejados , mas sem perder a esperança, confidenciou: “quero encontrar outro hospital, mas não posso, quero procurar outros médicos, mas não consigo, não sei o que vai acontecer. Quero procurar meios, mas agora não consigo andar, o que posso fazer?”.

Os médicos, conta, terão sugerido, por um lado, que procurasse outros medicamentos fora do país e, por outro, que não tomasse tantos medicamentos ao mesmo tempo, referindo-se a toda a medicação que estava a tomar na altura. Revela ainda que esses mesmos médicos tê-la-ão também aconselhado a recorrer à medicina tradicional, o que a “revoltou ”. Nervosa, desabafa que “quando sentimos dores temos de ir ao hospital, mas, no meu caso, fui e disseram-me que não havia medicamentos para a minha doença. Agora, o médico disse que já não me pode operar e eu tenho de procurar ajuda noutro lugar, mas onde?”.

A família de Abília, que estava há muito tempo consciente da falta de medicamentos, estava também certa de que dificilmente haveria cura para a doença, muito menos em Timor-Leste, onde as hipóteses de cura eram ainda mais reduzidas, tendo em conta o sistema de saúde frágil e ineficaz .

Perante este cenário , os familiares optaram por tentar os tratamentos tradicionais e fazer os respetivos rituais associados , muito presentes na cultura timorense.
Também Abília se convenceu de que ir ao hospital não a iria ajudar, porque “não iriam fazer mais do que dar-me medicamentos para as dores e já estava a tomar demasiados ”.

Quando ouviu o seu médico dizer que já não havia medicamentos que a pudessem curar ficou confusa e decidiu que “não queria mais ser internada, porque se melhorasse voltava para casa, mas se não melhorasse ia morrer lá”, sem medicamentos ou tratamentos adequados, que a pudessem ajudar.

“Esperar pela morte e entregar tudo a Deus”

Na conversa com a equipa do Diligente, Abília pediu que a ajudássemos a encontrar uma forma de se curar, caso contrário só lhe restaria uma opção “esperar pela morte e entregar tudo a Deus”. Católica praticante, de fé convicta , chegou mesmo a ser chefe de um grupo na Igreja de Becora, onde passava horas a fio a trabalhar como voluntária. Tudo o que fazia considerava ser “um sacrifício a Deus”, e isso não a deixava entender “porque é que eu tive de passar por tanto sofrimento?”.

Apesar disso, a fé mantinha-se inabalável . Chegou um dia em que as dores eram tantas, “dores muito fortes em todo o corpo, que sentiu que tinha chegado a sua hora”. Pediu aos familiares que chamassem o padre, que chegou para que ela se pudesse confessar “uma última vez”. Adormeceu, sem saber se acordaria no dia seguinte. Acordou. Acordou sem dores e agradeceu: “Graças a Deus ainda estou viva”, pensou.

Abília não perdeu nunca a esperança de conseguir curar-se, numa fé que pode salvar, mas, na grande maioria das vezes, não tem poder para curar.

A esperança acabaria por morrer no mesmo dia que Abília, em dezembro, de 2022. Morreu sem chegar a receber a ajuda que tanto pediu, por tanto querer viver.

Marta e a família que decidiu não acreditar na ciência

Marta (nome fictício), 39 anos, de Liquiçá, sentiu um caroço no peito, mas desvalorizou , porque julgou “ser consequência do soutien que tinha comprado numa loja chinesa”.

Em 2020, a família percebeu que ela não estava bem e levou-a ao HNGV. Os médicos disseram que ela tinha cancro da mama e precisava de ser operada fora do país, já que o hospital não estava habilitado para prosseguir com a intervenção , mas a família achou que se fosse operada, ela não sobreviveria.

Os familiares decidiram voltar para casa e recorrer a remédios tradicionais. Os avós da paciente encontraram um curandeiro que dizia curar o cancro da mama, mas para isso ela tinha de viver na casa desse mesmo curandeiro durante um ano. Foi assim que aconteceu. Durante este tempo, a família de Marta comprou sacos de arroz, vegetais e outras necessidades básicas, chegando a gastar mais de mil dólares.

Depois de alguns meses em casa do curandeiro, a doença piorou, mas o curandeiro dizia sempre que Marta estava a melhorar e a família acreditou na sua palavra, mesmo que nunca tenham visto a paciente durante um período que esteve na casa dele. Em agosto de 2021, uma sobrinha da paciente foi a casa do curandeiro para ver a tia. Assustou-se com o cenário que encontrou, ao ver a tia com feridas que já se tinham alastrado e ao perceber que ela estava cega de uma vista. Chamou a família que a levaria de volta para casa, onde acabou mesmo por falecer.

A sobrinha acredita que foi uma sorte ter decidido visitar a tia e ter percebido que o seu estado tinha piorado, apesar de “ter sido tarde demais”. Confessa que percebeu que o curandeiro não era honesto: “Eu acho que o curandeiro não é uma boa pessoa, se sabia que não podia curar a minha tia, devia ter-nos dito para que pudéssemos procurar outros meios”, conta-nos quase a chorar.

Por último, confidenciou que a família se arrependeu de não ter enviado a tia para ser operada no estrangeiro: “Se soubéssemos de certeza que a operação era uma boa opção para ela, teríamos feito tudo para a mandar para o estrangeiro, mas o destino ninguém sabe”.

A verdade é que a própria Marta e a família do marido sempre quiseram que ela fosse operada, mas a opinião da sua família “falou mais alto ”, como tantas vezes acontece em Timor-Leste, que optou pelo tratamento tradicional que acabaria por ditar a sua morte.

Uma “sorte” que não é para todos

Questionado relativamente ao facto de os médicos mandarem pacientes para casa e sugerirem que recorram a tratamento de medicina tradicional, João Teodósio Amaral, médico oncologista , no HNGV, explica que só “mandam para casa pacientes já em estádio final, pois nesses casos, o tratamento disponibilizado pelo hospital é igual ao que o paciente pode fazer em casa”. Acrescenta ainda que, “muitas vezes, depois de ouvirem a explicação dos médicos relativamente à doença, são os próprios doentes que decidem ir para casa”.

O médico oncologista sublinha ainda que “a decisão de recorrer aos medicamentos tradicionais é tomada pela família, não pelos médicos”. Acrescentou que alguns doentes podem continuar os tratamentos no HNGV, mas, “às vezes, é a própria família que exige que eles vão para casa”.

Alguns doentes têm a sorte de poderem fazer tratamento em hospitais estrangeiros, uma vez que o HNGV tem protocolo com três hospitais internacionais, nomeadamente na Indonésia, em Singapura e na Malásia.

Para fazer a transferência, é preciso cumprir determinados requisitos : o paciente tem de ser atendido pelo médico especialista, fazer vários exames e depois o processo deve passar pelo grupo disciplinar, onde muitos especialistas de diferentes áreas analisam o caso. Finalmente, o caso é discutido por uma equipa conjunta que trata dos documentos administrativos para transferir o paciente.

O médico especialista admite que o HNGV “não tem nem medicamentos nem equipamentos próprios para os doentes oncológicos e que os médicos não podem fazer muito mais para além de receitar medicamentos para o alívio das dores”.

João Teodósio Amaral considera que é preciso que haja mais informação sobre a doença e a sociedade precisa estar mais alerta para a prevenção para que quem tenha sintomas ou desconfie de algum problema possa ir ao Centro da Saúde ou ao hospital procurar ajuda. Em parte, também a falta de conhecimento tem um peso grande nos diagnósticos tardios que, a par de crenças e falta de recursos médicos, resultam em vidas perdidas, como as da Marta e de Abília e de tantas outras Martas e Abílias, caso não se informe a população sobre este assunto. Quando falamos de doenças silenciosas como o cancro, prevenção é a palavra-chave .

O cancro da mama, por exemplo, ainda é um tema tabu para as mulheres timorenses. O médico explica que, por vezes, as doentes, devido à falta de conhecimento e até por vergonha, não querem fazer os exames ou os tratamentos, acabando por recorrer ao hospital já num estádio muito avançado doença.

Quanto ao cancro do colo do útero, o Ministério da Saúde (MS), através do Hospital Nacional Guido Valadares (HNGV), com a Organização Mundial da Saúde (OMS) em Timor-Leste, lançaram a Unidade de Colposcopia. A colposcopia é um exame ginecológico que serve para observar de forma ampliada e detalhada o colo do útero. Trata-se de uma ferramenta essencial na deteção do cancro e de outras lesões.

Sobre a falta de equipamentos no serviço de oncologia, o médico especialista avança que, “o Ministério da Saúde e o HNGV estão a trabalhar juntos para capacitar o serviço de oncologia num futuro próximo”. Este processo assenta em três pontos. Começará pela habilitação do hospital com infraestruturas e serviços: “Numa primeira fase, estamos a pensar em apostar na quimioterapia , o chamado One Day Care, em que o doente recebe o tratamento durante algumas horas e depois volta para casa”. O segundo ponto refere-se a dotar os serviços dos equipamentos adequados: os médicos e o Ministério da Saúde. Um último aspeto passa por apostar numa maior capacitação dos recursos humanos, através de formações que habilitem os profissionais de saúde que atuam nesta especialidade, “uma vez que o HNGV tem apenas três oncologistas”.

O HNGV registou, de 2018 a outubro de 2022, 977 casos de cancro. Os casos diagnosticados são, à partida, certamente menos do que o número de pessoas que sofre da doença, já que muitos são aqueles que optam por não recorrer aos serviços de saúde. Os tipos de cancro que mais afetam os homens são cancro da tiroide, cancro do cólon (sistema digestivo), pescoço e cabeça, enquanto na mulher, os mais frequentes são o cancro da mama, da tiroide e do colo do útero.

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), os cancros mais frequentes no mundo são o do pulmão, com 11,6% de casos, a par do cancro da mama, que apresenta a mesma prevalência, o do cólon com 10,2% e o da próstata com 7,1%.

Em 2020, a OMS registou um total de 814 casos em Timor-Leste, dos quais 371 são homens e 443 mulheres.

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