Setembro negro: o preço da independência e as vítimas “esquecidas”

População a celebrar o resultado da consulta popular, a 30 de agosto de 1999: euforia logo deu lugar ao desespero/Foto: Australian Associated Press

O período ficou marcado pelos episódios de violência que se espalharam em Timor-Leste após o referendo, em 1999, como o massacre na igreja Avé Maria, no Suai, em que 136 pessoas foram assassinadas. Associação das Vítimas exige que o Governo dê assistência aos sobreviventes e aos familiares daqueles que perderam a vida.

“(…) Resistir ou morrer é o meu viver, numa luta desigual eu quero vencer, não quero que um dia me venham dizer que Timor já não é meu Timor. Por mais corpos que eu veja pelo chão, por mais forte que seja o invasor, os meus gritos jamais se calarão. Até à morte lutarei por ti Timor (…)”, diz o trecho da canção “Por ti, Timor”, de Loriku.

O grito de “mate ka moris ukun rasik aan” (“morto ou vivo, a independência para sempre”, em português) ecoava forte em Timor-Leste em 1999, nas vésperas da realização da consulta popular – ocasião em que o povo decidiria, em votação, se o país continuaria sob o domínio indonésio (que já durava 24 anos).

No início de setembro daquele ano, com a confirmação de que 78% da população escolhera o “sim”, ou seja, a emancipação em relação à Indonésia, uma onda de violência espalhou-se por Timor-Leste. Grupos apoiados por militares indonésios, inconformados com o desfecho do referendo, desencadearam destruição, mortes e tumultos.

No Suai, em Covalima, a 6 de setembro, na igreja Avé Maria, 136 timorenses foram assassinados de forma cruel. O período sombrio ficou conhecido como setembro negro. Durante este mês, entidades da sociedade civil (como o Fórum da Justiça Popular e Força Humanista Covalima) realizaram, no país, atividades para homenagear aqueles que perderam a vida e para não deixar o grave ocorrido cair no esquecimento – de modo a que nunca mais se repita. A recordação serve também como um lembrete de que a luta pela liberdade e pelos direitos humanos é uma batalha constante.

Testemunhos de cidadãos que se esconderam nos lugares próximos da igreja contam como as milícias começaram o terror. Idosos, mulheres, crianças e todos aqueles que não conseguiram fugir para as montanhas não tiveram as vidas poupadas.

Aconteça o que acontecer

No início da manhã de domingo (5.09), um dia depois da divulgação do resultado do referendo, em Suai, o clima de ameaças começou a tomar conta da região. Assustadas, as pessoas organizavam-se para fugir. A igreja, por ser “a casa de Deus”, despontava como alternativa de refúgio. Para lá foi, então, muita gente.

Atanásio Martins, 38 anos, funcionário da proteção civil, foi uma das testemunhas da situação. “Eu tinha 12 anos, quando ocorreu a tragédia. Morava com o meu tio, o padre Hilário, já falecido, no Suai. Depois de o resultado do referendo sair, pela primeira vez na minha vida, vi as pessoas a gritarem de felicidade, mas depois os gritos transformaram-se num interminável ciclo de violência”, disse.

O trabalhador contou que, no dia 6 de setembro, por volta das 11h, as ruas do posto administrativo estavam vazias e reinava o silêncio, além do medo. De repente, ouviu disparos e gritos. “Corri logo para a residência dos padres. Lá, já estavam algumas pessoas escondidas debaixo da cama. Juntei-me a elas. Éramos cinco. Naquele instante, os tiros, as súplicas e o ladrar dos cães pareciam intermináveis”, recordou.

Assim que o relógio marcou 13h30, as milícias cercaram a igreja. Os que tentaram fugir, foram capturados e feitos prisioneiros. No local sagrado, imperou uma série de violação aos direitos humanos, seguida de mortes.

Passadas algumas horas de tortura, os milicianos começaram a incendiar a igreja com alguns cadáveres dentro. “O fogo, sem demorar, alastrou até ao local onde estávamos, porque a residência dos padres ficava a cerca de 15 metros da igreja. Mesmo assim, aguentámos o fumo até os grupos indonésios abandonarem o local”, lembrou.

Quando Atanásio Martins e os colegas viram que o fumo começou a encobrir a cidade, decidiram sair da residência. “Finalmente, estamos quase vivos”, disse um dos colegas. Apressados e com medo viram muita gente morta pelo chão, entre elas o seu tio, padre Hilário. Temendo que as milícias o apanhassem, Atanásio Martins teve de seguir em frente. “Precisamos de sair daqui”, disse um dos amigos. “Se todos morrermos, quem vai contar o que aconteceu aqui para as famílias dos que aqui morreram?”

“O meu irmão morreu por uma causa revolucionária”

Madre Palmira Babo da Cruz, 62 anos, irmã do falecido padre Hilário, estava em Portugal quando aconteceu o massacre. Tinha acompanhado os conflitos pela CNN e através de contacto com familiares. Conta que os relatos do primo lembravam um caos total: alguns padres já tinham sido mortos antes do episódio no Suai.

“Mas eu não esperava que o meu irmão fosse assassinado. No dia 6 de setembro, recebi a ligação da madre Leónia a dizer-me que o meu irmão tinha morrido”. Chocada, não acreditava. Voltou a ligar para o primo e confirmou a informação. “Entrei em depressão. Fiquei paralisada durante uma semana”.

A madre Palmira Babo regressou a Timor-Leste em 2002, ano em que o país restaurou a sua democracia. “Uma coisa que eu sei e que me deixa aceitar a realidade é que o meu irmão morreu por uma causa revolucionária. Hoje, estou aqui para contar a história e viver de forma a honrar os mártires”, conta com o olhar secretamente triste.

“Ela teve de se fingir de morta para não ser assassinada”

A farmacêutica Imelda Maria Borges, 30 anos, também perdeu os familiares na igreja. “À época, eu tinha 6 anos. Fugi com o meu pai para a montanha meses antes do referendo, pois muita gente já falava de que algo mau poderia vir a acontecer, a depender do resultado da votação. A minha mãe, o meu irmão de 1 ano e outros familiares foram para a igreja, porque acharam que estariam mais seguros. Depois de uns meses, quando a situação começou a acalmar, regressámos ao posto administrativo, mas, quando vimos que igreja tinha sido queimada, ficámos sem chão”, contou.

Quem testemunhou a morte da sua mãe e do seu irmão foi uma prima, que se fingiu de morta para não morrer, após ter levado um tiro. “Bateram com o meu irmão na parede até ele morrer. Quando a minha mãe viu que o meu irmão não tinha sobrevivido, implorou para que a matassem também. E assim foi”, lamentou Imelda Borges.

Reconciliação e injustiça

Após a consulta popular, em 1999, que abriu o caminho para a restauração da independência, à custa de milhares de vidas e da destruição total do país, instalou-se em Timor-Leste, a 25 de setembro, a Administração Transitória das Nações Unidas (UNTAET). Pouco a pouco, os timorenses começaram a levantar-se de novo, foram construídas infraestruturas, assim como um ambiente de paz – que culminou com o processo de 20 de maio de 2002.

Naquele mesmo ano, a então Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação (CAVR), passou a funcionar com o objetivo de promover a reconciliação interna e “apurar a verdade acerca das violações dos direitos humanos” durante a ocupação indonésia.

Em 2005, os Governos de Timor-Leste e da Indonésia estabeleceram a Comissão Verdade e Amizade (CVA), a fim de investigarem os atos contra os direitos humanos, nos meses antes e depois do referendo. As recomendações feitas no relatório da CVA para os Governos timorense e indonésio foram a reforma e responsabilização das instituições, o estabelecimento de uma comissão e resolução de conflitos, principalmente com apoio psicossocial para os sobreviventes e o reconhecimento e pedido de desculpas pela violência cometida.

A CVA foi alvo de críticas por parte da sociedade civil e entidades de apoio às vítimas. “As lideranças timorenses e indonésias não acolheram as recomendações da CAVR relativas à constituição de um Tribunal Internacional para julgar os crimes contra a humanidade e, por se esperar que esta comissão serviria o propósito de descredibilizar a própria CAVR”, pode ler-se no artigo O longo caminho da reconciliação em Timor-Leste – memórias, práticas e possibilidades de justiça, de Marisa Ramos Gonçalves.

A presidente da Associação das Vítimas do Município do Suai, Maria Carvalho Amaral, lamentou o facto de a justiça “ainda não ter sido feita” para as pessoas que perderam os familiares na igreja. A maioria, enfatizou, sente-se injustiçada com o projeto de reconciliação, criado entre os Governos timorense e indonésio.

“Muitas delas ainda não tiveram apoio do Governo timorense, nem um pedido de desculpa formal pelo Governo indonésio, e vivem em condições muito precárias, sem assistência médica. Algumas, contudo, receberam casas e outras um pagamento de 500 dólares”, explicou.

Os pais do padre Hilário receberam ajuda do Governo para a construção de uma casa em Ermera.

Maria Carvalho Amaral exige também um reconhecimento formal por parte do Governo timorense para com “as mulheres e crianças sobreviventes, que também lutaram indiretamente e pagaram com os seus próprios corpos para salvarem os maridos, pais ou alguns tios que fugiram para a montanha”. “O Estado deve reconhecer essa luta ‘esquecida’ como um direito fundamental, proporcionando-lhes uma vida digna e apoio psicossocial”, sublinhou.

Em 2016, o Governo timorense estabeleceu o Centro Nacional Chega! (CNC), um instituto que substituiu o CAVR, com o objetivo de “preservar a memória através da educação, formação e da solidariedade com os sobreviventes mais vulneráveis das violações de direitos humanos”.

O Diligente entrou em contacto com o CNC para saber mais informações a respeito desse atendimento, mas até à publicação deste artigo não obteve resposta.

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  1. E sempre assim queridos irmaos e irmas, quem se lixa e o mexilhao. E uma situacao muito ingrata para os VERDADEIROS HEROIS!
    Vos, assim como eu, nao nascesmos com a “estrelinha da sorte”. Que mal fizemos ao Maromak?

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