Sérgio Raúl Piera: “Muitos pacientes que precisam de ser enviados para outros países poderiam ser tratados aqui, se houvesse especialistas e tecnologia”

Sérgio Raúl Piera, chefe da Brigada Médica Cubana em Timor-Leste/Foto: Diligente

Em entrevista ao Diligente, o chefe da Brigada Médica Cubana em Timor-Leste fala sobre os desafios no sistema de saúde do país e faz um balanço da parceria entre os países, que já dura há 20 anos

No âmbito do Dia Mundial da Saúde, celebrado este domingo (7.04), destaca-se o papel vital desempenhado pela Missão Cubana em Timor-Leste na promoção do bem-estar e no fortalecimento do sistema de saúde no país.

Com uma presença contínua desde 2004, a Missão Cubana trouxe consigo médicos altamente qualificados, com uma abordagem única, em que os aspetos humanitários e holísticos se destacam. Se no início eram apenas 15, hoje são 160 profissionais cubanos que atuam em todo o território timorense, dos quais mais de 60 estão em Díli, 15 em Covalima, 13 em Oecusse e os restantes em outros municípios. Em resumo, há pelo menos dois médicos cubanos, entre cirurgiões, anestesistas, pediatras e clínicos gerais, por município.

Além disso, são responsáveis por assegurar a formação no curso de Medicina na Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL). “Quando terminam o curso, para além de serem médicos, são falantes de espanhol”, observou o chefe da Brigada médica Cubana em Timor-Leste, Sérgio Raúl Piera.

Em entrevista ao Diligente, o especialista em medicina legal fala sobre os desafios no sistema de saúde do país e faz um balanço da parceria entre as nações, que já dura há 20 anos.

Quando é que se estabeleceu a parceria entre Cuba e Timor-Leste na área da medicina?

Em 2003, realizou-se a cimeira de Kuala Lumpur, onde se reuniram os dois grandes líderes históricos, Fidel Castro e Xanana Gusmão. O atual presidente, Ramos-Horta, também esteve presente. E chegaram a um acordo para desenvolver o sistema de saúde timorense, que, aquando da independência, contava com apenas 20 médicos. Em 2004, chegaram cá os primeiros 15 médicos cubanos enviados por Fidel no âmbito desse acordo. Depois, vieram 45 e hoje são 160. No ano seguinte, foram enviados os primeiros timorenses para estudar medicina em Cuba, cerca de 55.

No mesmo ano, foi inaugurada a Faculdade de Medicina na Universidade Nacional de Timor Lorosae (UNTL). Tem sido um processo gradual. Foi assim que tudo começou e agora temos mais de 30 médicos especialistas cubanas a trabalhar aqui com os médicos timorenses. Neste momento, estão a ser formados especialistas timorenses em epidemiologia, medicina legal e angiologia. Timor já tem um conjunto de médicos, formados por nós, de excelentes profissionais.

Qual é o papel da cooperação médica cubana em Timor-Leste e o seu impacto no sistema de saúde local?

Os estudantes timorenses de medicina que foram para Cuba não eram malaes . Nós recebemo-los como se fossem nossos. E nós, cubanos, não somos malaes aqui. Também fazemos parte do povo timorense. Portanto, encontrámos uma química perfeita. O povo timorense e os médicos timorenses acolhem-nos, nós respeitamo-los. A medicina tradicional, para nós, não é um problema. Se um país, que tem tanta tradição e tanta história, decide optar pelo tradicional, não nos podemos zangar. O que temos é de estar preparados. Se a medicina tradicional não conseguir resolver o problema, nós resolvemos.

Como foi o seu percurso para se tornar médico e o que o motivou a escolher trabalhar em Timor-Leste?

Eu tornei-me médico, porque os meus pais são médicos. Nasci num sítio onde só havia livros de medicina. Ia brincar para o hospital, em vez de brincar, tinha doentes. Por isso, tornei-me médico. Não só por vocação, mas por sentir que é uma profissão muito humana. Apesar de já terem muitos médicos, temos de produzir especialistas. Os médicos timorenses e os estudantes de medicina são muito inteligentes e aprendem muito depressa. Quando terminam o curso, para além de serem médicos, são falantes de espanhol. Por isso, quando cheguei cá, senti-me muito confortável. Este é um país muito pacífico. Não há guerra, não há violência. As pessoas são muito educadas. Fala-se suavemente. Estão sempre a rir e felizes. São muito simpáticos e é isso que o povo de Cuba, representado pelos meus médicos, sente em relação ao povo timorense. É por isso que vos respeitamos tanto.

“A formação tem de andar de mãos dadas com a aquisição de recursos tecnológicos. Se o médico vai operar e não tem o bisturi ou outros materiais, não o pode fazer”

A medicina cubana é muito conhecida. O que a torna diferente das outras?

A medicina cubana não começa em 1959, quando a revolução triunfou. Existe desde 1700. Sempre houve bons médicos em Cuba. Carlos J. Finlay foi um dos médicos que descobriu que a malária e o paludismo são provocados pela picada de um mosquito. Quando a revolução venceu, Cuba, enviou médicos para estudarem noutros países e professores de outros países foram para Cuba. Devia acontecer o mesmo agora em Timor-Leste. Os médicos têm de se especializar para se tornarem professores e reforçarem a universidade médica timorense.

 Quais são os principais desafios que os médicos enfrentam em Timor-Leste?

Neste momento, a principal dificuldade dos médicos timorenses é terem um nível básico. São médicos de clínica geral, mas não têm formação nas especialidades necessárias. Por exemplo, há uma escola de parteiras, o que é muito bom, mas as profissionais não fazem cesarianas. Por isso, é preciso formar médicos especialistas. Não há médicos ortopedistas timorenses, não há neurocirurgiões. Já há mais de 60 pessoas a estudar em Cuba para fazer a especialidade e vamos tentar criar algumas especialidades aqui também. A formação tem de andar de mãos dadas com a aquisição de recursos tecnológicos. Se o médico vai operar e não tem o bisturi ou outros materiais, não o pode fazer. O país precisa de adquirir um conjunto de recursos que são indispensáveis para estas especialidades médicas. Muitos pacientes que precisam de ser enviados para outros países poderiam ser tratados aqui, se houvesse especialistas e tecnologia.

 “O lixo acumulado pela cidade gera mosquitos que transmitem doenças. Atrai ratos, que também geram doenças. Por isso, penso que uma política de melhoria da higiene pública é muito importante. Quando a higiene ambiental melhora, a higiene pessoal melhora”

 Como é que avalia o sistema de saúde em Timor-Leste e quais são as principais necessidades da população em termos de cuidados de saúde?

A população deste país, sem dúvida, melhorou nos últimos 20 e tal anos. Isso é indiscutível. A mortalidade infantil diminuiu. A mortalidade materna diminuiu. O tétano já não existe. A malária desapareceu.  Mas há coisas que podem ser melhoradas, por exemplo, a higiene, o lixo. O lixo acumulado pela cidade gera mosquitos que transmitem doenças. Atrai ratos, que também geram doenças. Por isso, penso que uma política de melhoria da higiene pública é muito importante. Quando a higiene ambiental melhora, a higiene pessoal melhora.

“Quer queiram quer não, não se pode proibi-los de ter relações sexuais, mas usem preservativo. Não só previne a gravidez como previne muitas doenças sexualmente transmissíveis”

No ano passado, registaram-se muitos casos de VIH-SIDA. Há quatro anos, o Ministério da Saúde timorense mandou retirar a recomendação de uso de preservativo em cartazes distribuídos pelo país para assinalar o Dia Mundial de Luta contra a SIDA, por oposição “moral” ao que considera ser “sexo livre” Como vê esta questão?

O VIH-SIDA é uma doença que só com preservativo se pode evitar. O preservativo também é utilizado como método contracetivo para evitar a conceção. Com os preservativos, livramo-nos de doenças sexualmente transmissíveis como a SIDA, sífilis, o condiloma, o papiloma. Ao usá-lo, os indivíduos estão a cuidar de si e dos parceiros. Portanto, é esse o caminho a seguir. É verdade que ainda há falta de educação neste país, especialmente para os jovens. E, às vezes, quer queiram quer não, não se pode proibi-los de ter relações sexuais, mas usem preservativo. Não só previne a gravidez como previne muitas doenças sexualmente transmissíveis.

Se uma grande publicidade for feita boca a boca, entre médicos e pacientes, não é preciso deixar de o dizer só porque não o colocam na televisão ou num cartaz. É verdade que aqui ainda não há uma perceção completa dessa questão. É considerado um tabu, mas é possível educar a população.

 Como é a relação entre os médicos cubanos e os profissionais de saúde timorenses?

Os profissionais cubanos e os profissionais timorenses dão-se perfeitamente bem, entendem-se e complementam-se. Não há rivalidade. Trabalham em conjunto e dão-se como irmãos.

O facto de o Ministério da Saúde não ter renovado o contrato dos médicos timorenses este ano teve impacto no seu trabalho?

Temos um acordo com o povo timorense assinado a nível governamental para manter uma colaboração enquanto o país quiser que estejamos aqui, nos atendimentos médicos e nas formações. Pensamos que este acordo deve ser mantido e ampliado. Não interferimos no sistema de trabalho timorense. Por exemplo, eu trago os médicos, mas é o Ministério da Saúde que os coloca. Não competimos, trabalhamos onde temos de estar, é essa a nossa política.

 Em Timor-Leste, os recursos públicos para o setor da saúde são muito reduzidos. Este ano, o governo atribuiu apenas 5,5% do Orçamento Geral do Estado (OGE) para a saúde. O que pensa sobre isto?

Não posso falar sobre o governo timorense. Posso falar do governo de Cuba. Em Cuba, a maior parte do OGE vai para a saúde e para a educação. Em Timor-Leste, os governantes têm o seu sistema, que nós respeitamos. Não sei o valor atribuído a estas áreas. Quando chegámos, estava a terminar um período de conflito e não havia dinheiro.

 “Fui à Amazónia e estive com o xamã, que tinha cancro. Disse que era feiticeiro para curar os outros, mas para curar a sua doença, preferia que fossem os médicos cubanos”

 Muitos timorenses não confiam na medicina convencional e recorrem à tradicional, aos curandeiros. Como avalia esta situação?

Isso não é um problema de Timor-Leste, é um problema de todo o mundo. Em Cuba, também há curandeiros. Ainda há pessoas em Cuba que vão primeiro aos curandeiros tradicionais. Fui à Amazónia e estive com o xamã, que tinha cancro. Disse que era feiticeiro para curar os outros, mas para curar a sua doença, preferia que fossem os médicos cubanos.

Aqui, por vezes o chefe de família ou o responsável é determina se o doente deve ir a um médico tradicional ou a outro médico. Eu não tenho nada contra o tradicional. Adoro o tradicional. Sou um feiticeiro no meu país, mas reconheço que a medicina baseada em provas, a medicina científica, é muito mais eficaz do que a tradicional.

Muitos medicamentos vêm de ervas, de plantas. A penicilina e as tetraciclinas são um fungo. É preciso dialogar com a medicina tradicional, como também é preciso reconhecer quando a ciência deve ser prioritária. Isso deve ser feito pouco a pouco, de maneira organizada.

Os médicos cubanos também trabalham na formação dos estudantes de medicina da UNTL. Quais são obstáculos e o que deveria ser feito para melhorar a formação académica na área de saúde?

A primeira coisa é ter professores timorenses, porque nós, médicos cubanos, damos assistência médica e também damos aulas.

Na UNTL, formamos profissionais que saem como licenciados. É uma queixa dos médicos timorenses: se se formarem em Cuba, saem como médicos, mas se se formarem aqui, saem como licenciados. Temos de nos certificar que saem da UNTL como médicos. Isso faz diferença no currículo.

Como vê o futuro da saúde em Timor-Leste? E quais são as áreas que precisam de mais investimento?

Eu vejo um futuro brilhante para a saúde em Timor-Leste. Fidel Castro disse que este país seria o farol de Alexandria no Sudeste Asiático, por outras palavras, seria aquele que iluminaria o resto dos países da região. Têm a possibilidade de, num curto espaço de tempo, desenvolver uma excelente medicina, que vos permitirá não só cuidar do povo timorense, mas também de pessoas de países vizinhos, por exemplo da Indonésia, que podem vir cá receber tratamento. Têm todas as condições para, num curto espaço de tempo, ter um excelente sistema de saúde. A certa altura, haverá uma escola médica timorense, onde os professores, esses mesmos professores que hoje são jovens, serão mais velhos, mas serão os grandes professores que fundarão outras coisas neste país.

No Dia Mundial da Saúde, que mensagem gostaria de transmitir ao governo e à população?

A capacidade de mostrar solidariedade, não é dar o que sobra, é partilhar o que temos. Atualmente, os médicos cubanos estão praticamente em mais de 60 países. Estamos a espalhar solidariedade.

Neste Dia Mundial da Saúde, lembro Fidel, que disse tantas vezes que, enquanto os ricos forem tão ricos e os pobres tão pobres, os ricos terão uma saúde excelente e os pobres terão pobreza. Isso tem de ser mudado, tem de ser evitado, para que toda a gente tenha direito a cuidados de saúde.

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  1. Os politicos “tratam-nos da saude”

    Nao pretendo ser rude
    Nao vejo que a situacao mude
    Tanta agua corre no acude
    Tanto dolar mal gasto do crude
    Tanto politico que nos ilude
    Fiz este poema como pude
    Precisa-se de politicos com “altitude”
    Nao politicos com “atitude”
    Para que se marche em frente na educacao e na saude

    Ze Cirurgiao
    Poeta de TL

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