‘Sau Batar’, a tradição timorense de agradecimento pelas novas colheitas

A casa sagrada Uma Malae Biru em Tasi-Fatin/Foto: DR

Tradição ancestral da cultura timorense, o Sau Batar é uma forma de agradecimento pelas colheitas anuais de milho. Contempla vários rituais animistas que têm lugar dentro das quatro “paredes” de uma casa sagrada, espaço de culto em Timor-Leste, a que pertencem várias famílias. O Diligente acompanhou uma dessas cerimónias na casa Uma Malae Biru, que abriu as portas para oferecer (Sau) a nova colheita do milho (Batar) e, excecionalmente, nos deixou entrar.

O som é o do canto dos pássaros, das galinhas e da cigarra. A perder de vista, o verde das montanhas. O relógio marca oito da manhã e, no meio da floresta, no suco de Tasi-Fatin, em Manatuto, aguarda-se o início da cerimónia.

Os “tios”, como são chamados respeitosamente os chefes das famílias, começam a reunir-se à volta da casa sagrada (uma lulik) Uma Malae Biru, acompanhados das mulheres e das crianças.

O lia-nain (dono da palavra, em tétum), chefe que lidera rituais e fala em representação dos membros da casa sagrada, é o primeiro a entrar. O tio Tian, como é carinhosamente chamado Sebastião da Costa, sobe as escadas com o milho da colheita anterior na mão, sob o olhar atento dos presentes. Dentro da casa sagrada, o tio Tian debulha-o.

Da parte de fora, está o tio Peregrino com o milho da nova colheita. Debulha metade de uma maçaroca e mastiga alguns grãos que ali, na boca, devem permanecer. É a sua vez de subir as escadas da Uma Malae Biru. Ao mesmo tempo que pisa cada um dos degraus, vai atirando alguns grãos acabados de debulhar para dentro da casa. “Licença!” é a palavra que anuncia a sua chegada, enquanto entra na uma lulik.

O milho da nova colheita é lançado para dentro da casa sagrada, um dos vários rituais do Sau Batar/Foto: DR

É “recebido” pelos grãos da colheita antiga lançados pelo lia-nain, em forma de resposta aos grãos da colheita nova que lhe são também arremessados. Grãos da colheita antiga e grãos da colheita nova “voam” em direções opostas, enquanto da boca do lia-nain saem as palavras: ‘Receba o velho. Dê-nos o novo’, entre outras orações em idaté, o dialeto do suco de Tasi-Fatin.

O tio Peregrino aproxima-se do chefe da casa sagrada para lhe entregar as maçarocas do milho novo que traz consigo. É hora também de retirar da boca o milho mastigado que é usado para marcar os objetos sagrados (lulik), assim como a testa do chefe. É o ritual kuta, que autoriza o consumo do novo milho. A celebração estende-se agora aos outros anciãos, mulheres e crianças, que se juntam ao lia-nain e ao tio Peregrino dentro da uma lulik.

Começa assim o Sau Batar. A tradição é uma forma de agradecer e valorizar os alimentos que se conseguiram produzir no início do ano. Sau batar significa, então, oferecer a nova colheita do milho para substituir a antiga. O milho, alimento importante em Timor-Leste, representa metaforicamente todos os produtos agrícolas que o suco colheu.

Júlio da Costa, um dos elementos mais jovens do grupo, faz uma analogia do ritual com a forma como celebram a Páscoa: “Por essa altura, o nosso suco costuma oferecer à Igreja flor de trigo e arroz para agradecer a ressurreição de Jesus. Quando celebramos o Sau Batar, oferecemos milho aos antepassados como forma de pedir que as famílias continuem a crescer e a desenvolver-se, para que nos protejam dos desastres e da má sorte e tenhamos prosperidade”.

O ritual é uma “obrigação”, explicam-nos os outros elementos da família com semblante sério e tom de voz forte, que anunciam as consequências para quem não o faz ou fala mal do ritual: “maldições e sanções da natureza”. Os que não têm mesmo oportunidade de realizar o Sau Batar devem pelo menos receber o bétel e a areca (que, na tradição timorense, equivalem ao ar que respiramos), distribuídos no final da cerimónia por todos os familiares.

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O lia-nain distribui o bétel e a areca pelos membros da casa sagrada/Foto: Diligente

A tradição realiza-se em todo o território timorense. Acontece de diferentes formas, de acordo com cada casa sagrada. O próprio ritual tem sofrido várias mudanças ao longo do tempo. A dimensão da cerimónia, nomeadamente o número de participantes, depende do orçamento de cada uma das famílias que faz parte da casa sagrada que o realiza.

Em muitas destas casas, as mulheres não podem entrar. Não é o caso da Uma Malae Biru. Aqui só não podem entrar pessoas que não pertençam à família. O lia-nain abriu uma exceção para o Diligente, sob a condição de não serem fotografados os objetos sagrados.

Dos objetos sagrados ao sacrifício de animais

Terminado o ritual kuta, que autoriza o consumo do novo milho, o lia-nain faz uma prece com os olhos postos nos objetos sagrados, herança dos antepassados, anteriormente colocados numa cesta tradicional, a lafatik. Em outra cesta, estão a areca e o bétel para distribuir por todos os familiares, no final da cerimónia.

As cestas estão no canto da casa, por baixo de dois ‘tais’ que se encontram pendurados na parede de bambu da uma-lulik, juntamente com a espada (surik) e as maçarocas de milho. No chão, misturam-se a tradição e o moderno: uma vela e uma garrafa de whisky Red Label com tua sabu (aguardente de palmeira).

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Surik, tais, milho e ainda os objetos sagrados escondidos por um pano vermelho/Foto: Diligente

No Sau Batar, os animais não são poupados. Podem ser sacrificados galos, porcos, cabras ou búfalos. Este ano, o animal escolhido para sacrifício e oferta às famílias foi um galo.

Durante o sacrifício, enquanto segura o pescoço do animal nas mãos e o estrangula, o lia-nain reza aos lulik e bei-ala (antepassados), pedindo-lhes um sinal que indique se, no futuro, as famílias da Uma Malae Biru vão ter sorte. A resposta chega através de um sinal que, acreditam, pode ser lido pela posição das patas do galo depois de morto.

Para indicar prosperidade, ainda com o galo pendurado, a pata direita do animal deve ficar em cima da esquerda. Se acontecer o contrário e a pata direita ficar por baixo da esquerda, significa que algo de mal está a acontecer ou acontecerá aos membros destas famílias. Neste caso, o tio Tian deve colocar o galo morto no chão sem deixar de o agarrar pelo pescoço e tentar adivinhar o que de mal está a acontecer ou pode vir a acontecer.

O obstáculo pode ir de um conflito entre famílias a um problema de saúde ou a um sinal de que este ou outros rituais foram mal realizados. O lia-nain levanta novamente o animal para ver em que posição ficam as patas. Este ritual é repetido as vezes necessárias até que a pata direita fique por cima da esquerda e, quando tal acontecer, significa, ao mesmo tempo, que não só descobriram o problema como agora já está resolvido.

Nesta cerimónia, a resposta dos antepassados foi positiva, com as patas do galo a assumirem a posição desejada logo na primeira tentativa. Mas o ritual de sacrifício não termina por aqui, já que as famílias acreditam que o animal ainda tem mais para revelar.

Milho e galo são postos ao lume, numa pequena fogueira na casa sagrada. Enquanto o milho cozinha, o galo não fica mais do que cinco minutos no fogo. É então retirado para que o lia-nain o abra e possa ver o coração do animal. O sangue, que ainda líquido, corre pelas mãos do tio Tian, cai no chão, ensanguentando também o tapete.

No coração do galo, o lia nain e todos os presentes acreditam ver sinais dos antepassados. Se o coração estiver no que consideram ser más condições, com manchas ou inchado, a família não terá sorte.

O coração do galo não mostra nenhum problema e a família da Uma Malae Biru recebe, assim, mais um sinal de bênção e prosperidade.

Primeira refeição com o novo milho “junta vivos e antepassados”

As mães preparam o pequeno-almoço (matabicho), enquanto os tios contam histórias engraçadas em ‘idaté’, cujo significado está apenas ao alcance de quem fala o dialeto e, por isso, não pudemos descortinar. As gargalhadas denunciam a boa disposição entre os elementos da família que aguardam a comida. Vão comer milho confecionado de duas formas: cozido com folhas de maracujá e assado. Espera-os também broto de bambu, galo cozido sem sal nem óleo, bolachas, café e licor típico timorense, colocados em cima do tapete, que serve de toalha para a refeição.

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A família só começa a refeição depois de o lia-nain comer o milho assado/Foto: Diligente

Uma vez que é lia-nain, o tio Tian é o primeiro a comer a metade do milho debulhado já assado, abrindo assim a época de consumo dos produtos da nova colheita para os familiares da Uma Malae Biru.

Ao mesmo tempo que comem e contam histórias, tentam falar em tétum-praça para que também possamos compreender. Mais uma gentileza a somar ao facto de terem permitido que entrássemos e assistíssemos à cerimónia, mesmo não fazendo parte da família.

Entre histórias e conversas sobre o futuro dos filhos, a hora de almoço chega sem demora. À semelhança da refeição anterior, as mulheres cozinham enquanto os ‘katuas’ (velhos) esperam dentro e fora da casa sagrada com os homens adultos e as crianças. Alguém chama todos os participantes: “O almoço está pronto”.

No canto direito, à frente dos lafatik, da vela, de uma bandeja azul com comida para os antepassados e de um copo de tua mutin, o tio Tian oferece o prato sagrado aos bei-ala e lulik (antepassados e objetos sagrados são encarados como um todo). Este ritual chama-se se’a (em idaté) ou seka (em tétum). Na oração em idaté, o lia-nain pede a bênção para todos os filhos da casa sagrada.

A comida do almoço está disposta no meio do tapete. À volta, os familiares sentados, cabisbaixos, acompanham a súplica. Os pratos de plástico tapam o frango cozido, o frango frito, a massa, o feijão, o broto de bambu e o piripiri, mas não travam o vapor do arroz quente que escapa por uma brecha e se espalha pela casa sagrada. Para acompanhar, licor natural retirado dos coqueiros (tua mutin) e aguardente (tua sabu).

Depois da reza, um irmão do lia-nain, o tio Manuk, convida todos para comer, através de um diálogo que se chama ‘hola lia’. As frases proferidas pelo tio são para agradecer a colheita abundante aos antepassados, suplicar por bênçãos para os filhos da uma lulik, pedir que os presentes aceitem os alimentos tal como são servidos e, por fim, convidar para desfrutarem da refeição. “Hee…”, “aaa…” ou “eee…” são as respostas afirmativas dos familiares.

Enquanto colocam os alimentos nos pratos que circulam de mão em mão, surpreendem-se com o flash da câmara fotográfica. “Achámos que era um relâmpago”, diz Júlio, arrancando gargalhadas e sorrisos em todos. Terminada esta refeição, está na hora de partilhar por todos os membros da casa o prato com os órgãos do galo e arroz cozido, que o tio Tian ofereceu aos antepassados e aos objetos sagrados.

Depois do almoço, o lia-nain mostra finalmente os objetos sagrados que estiveram tapados por um pano vermelho durante todo o ritual do Sau Batar e que representam a herança das gerações passadas, que foram também “alimentadas” durante a cerimónia. Os objetos são escondidos de todos os que não pertencem à Uma Malae Biru e, por isso, não nos foi permitido fotografar.

O lia-nain distribui, finalmente, o bétel e areca para todos comerem. No fim da cerimónia, caso o ritual tenha sido acompanhado por muitas pessoas, vem o dahur, uma dança típica timorense, organizada em forma de círculo, com movimentos para a frente e para trás. Não foi o caso, pois, para economizar os gastos das famílias, a celebração realizou-se com poucas pessoas. No convívio e na partilha de histórias, nenhum dos presentes “poupou”.

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Familiares partilham histórias durante o almoço/Foto: Diligente

Uma Malae Biru sobrevive ao passar do tempo

Uma significa casa, local para onde as pessoas voltam para descansar e curar as doenças. Malae, em tétum, refere-se aos estrangeiros que vieram para Timor-Leste e o significado é ser governante como os portugueses foram no passado. Biru é o nome que se dá à força espiritual em Timor-Leste.

Antigamente, só os filhos desta casa sagrada podiam ser Liurais, o título mais alto do suco ou de um determinado lugar. Agora que Timor-Leste é uma democracia, todos podem ter oportunidade de ser Liurais, ou seja, de liderar o suco. Mas, ao contrário do que acontece em outros sucos timorenses, em Tasi-Fatin, o chefe tem sempre de mostrar reconhecimento pela casa sagrada, pedindo “permissão” para ser um bom líder. Este processo de agradecimento chama-se receber ‘matak malirin’, que, em tradução literal, significa “frescura”, mas, para este efeito, significa que a bênção foi dada pela casa sagrada.

A casa tem tido, ao longo do tempo, de se adaptar às circunstâncias, para não ser, economicamente, um fardo para os familiares. Para isso, antes de se realizarem os rituais, há sempre um encontro de preparação orçamental. Reúnem-se para decidir a contribuição de cada um de acordo com o seu poder económico. As famílias têm consciência de que não têm possibilidades económicas para realizar grandes festas todos os anos.

O valor do orçamento do ritual é estabelecido pelos filhos da casa sagrada, que são também quem disponibiliza o dinheiro para a cerimónia. A celebração a que o Diligente teve oportunidade de assistir foi simples. Estiveram presentes apenas três famílias da Uma Malae Biru, uma parcela muito reduzida relativamente ao total de famílias que fazem parte desta casa sagrada.

A última vez que realizaram um Sau Batar de grandes dimensões foi há cinco anos. “Fizemos uma grande festa, porque foi a inauguração da nova casa e mudámos os objetos sagrados da casa antiga para esta”, lembra um dos filhos da uma lulik. “Naquela altura, dentro e fora da casa, estava muita gente, por isso teria sido impossível o Diligente participar nessa cerimónia e seriam precisos, pelo menos, dois lafatik de bétel e areca”, explica.

Com mais ou menos pessoas a participar, mais ou menos orçamento, mais ou menos adaptações, o Sau Batar é uma tradição que se mantém firme, geração após geração, na cultura timorense. Um povo que deposita, tão cegamente, na realização da cerimónia, a certeza de um futuro próspero, deposita também a certeza das piores maldições e sanções da natureza para todos aqueles que não cumpram o ritual.

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  1. Muitos parabéns por esta reportagem. Fizeram-me regressar a Timor. Continuem com boa informação e a promover a aprendizagem do português (e do tétum para quem fala português).

  2. Excelente registo sobre esta tradição timorense.
    Obrigado Diligente!

    Obs. Seria importante publicarem, além do registo fotográfico, o som e/ou vídeo das partes importantes da cerimónia.

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