Proposta de inclusão de Religião e Moral, com tendência católica, no exame nacional gera polémica

Ministra da Educação quer apresentar proposta ao Conselho de Ministros/Foto: Ministério da Educação

Estudantes que se preparam para concorrer a vagas no ensino superior alegam discriminação e jurista diz que projeto viola o princípio constitucional do Estado laico. Ministra da Educação defende que medida promove a cultura de paz.

Quando os primeiros portugueses desceram dos seus navios e pisaram uma ilha no Sudeste Asiático, trouxeram consigo toda uma influência cultural e religiosa. Na terra do sândalo, batizada posteriormente como Timor-Leste, floresceram a língua portuguesa e o catolicismo, sendo a referida religião, mais de 400 anos depois, um dos pilares da sociedade que se formou no país.

Contudo, depois de restaurar a sua independência, há 21 anos, e promulgar a Constituição da República Democrática de Timor-Leste, a nação, inspirada pelos ventos democráticos que sopravam a seu favor, destacou que funcionaria sob a separação de poderes e isenção religiosa, e que nenhuma pessoa poderia ser discriminada com base nas suas crenças (artigos 16º e 45º).

Nos últimos dias, porém, cidadãos timorenses confidenciaram um incómodo, semelhante a um sentimento de exclusão, devido à intenção da ministra da Educação, Dulce de Jesus Soares, de apresentar ao Conselho de Ministros uma proposta de incluir a disciplina de Religião e Moral, com tendência católica, no exame nacional, que permite o acesso ao ensino superior.

Ou seja, todos os estudantes, independentemente da sua fé, seriam obrigados a responder a questões relacionadas com o catolicismo no processo de seleção para entrada na universidade. Aqueles que porventura não tivessem um bom desempenho na disciplina, poderiam não atingir a pontuação necessária para serem admitidos em determinado curso.

A ministra, que falou do assunto com os jornalistas, no dia 1 de setembro, na sede do Ministério da Educação, destacou que a proposta visa realçar princípios saudáveis, que auxiliem os estudantes a desenvolver uma cultura de paz.

“É uma forma de aprofundar e de fortalecer o conhecimento, não só de religião católica, mas também de Ética e Moral e de Educação Cívica, para que os jovens não criem conflitos na comunidade”, argumentou Dulce Soares.

Entre os estudantes, contudo, a ideia da ministra gerou controvérsia, mesmo entre aqueles que se declaram católicos. A aluna do 12º ano da Escola 10 de Dezembro, Mónica Ximenes Correia, 18 anos, faz parte deste grupo. Para a jovem, se o plano avançar, representará “discriminação para os alunos de outras religiões”.

“Mesmo que as outras religiões sejam uma minoria, o Governo deve cumprir a Constituição e respeitá-las. Este país é democrático. Não pode instituir a disciplina no exame nacional e obrigar os alunos de outras religiões a aprender o catolicismo, apenas por esta ser a religião dominante no país”, opinou.

A muçulmana Zahra Kirana Muhammad Balafif, 17 anos, aluna do 12º ano da Escola An-Nur, considerou a proposta como “um desrespeito”. “A religião é algo privado, que praticamos no sítio adequado para tal, não na escola”, afirmou. Caso a ideia da ministra da Educação se concretize, a jovem teme ter avaliação negativa e, por isso, não descarta a possibilidade de não fazer o exame nacional, que normalmente acontece no mês de outubro.

Já para Adalzija Silveira, 18 anos, aluna do 12º ano da Escola 10 de Dezembro, a intenção demonstrada pela ministra não representa um problema para a maioria. “Aprendemos estes conteúdos também na Igreja e em atividades católicas. Portanto, o resultado deste exame não irá afetar a média de entrada no ensino superior”. A jovem, porém, mostrou-se preocupada com os estudantes não católicos. “E os discentes de outras religiões? Deverão ser prejudicados porque são uma minoria?”, questionou.

Estado laico

No artigo 45º (Liberdade de consciência, de religião e de culto) da Constituição, lê-se: “A toda a pessoa é assegurada a liberdade de consciência, de religião e de culto, encontrando-se as confissões religiosas separadas do Estado”.

Apesar de, constitucionalmente, a distinção entre Estado e religião estar definida, em Timor-Leste, não raras vezes, os assuntos da fé misturam-se com os da política. Em 2006, por exemplo, protestantes e católicos saíram às ruas de Díli para se manifestarem contra a proposta de tornar a disciplina de Religião e Moral facultativa, no currículo.

É comum, em encontros que envolvam figuras de poder, as autoridades rezarem antes de começarem a discutir determinados assuntos. No país, líderes religiosos, principalmente padres e freiras, são vistos com grande reverência pela maioria dos cidadãos e participam ativamente em discussões sobre temas de interesse público.

De acordo com o relatório “Timor-Leste em Números”, de 2021, elaborado pelo Governo, mais de 90% dos habitantes do país são católicos, sendo que o restante se divide entre protestantes, budistas e hindus.

Na avaliação da jurista Soraia Marques, movimentos que vão contra a separação de poderes, expressa na Constituição de Timor-Leste, violam o que se entende por Estado laico e podem gerar desconforto a determinados grupos.

“Tão pouco o Estado poderá privilegiar ou discriminar uma confissão religiosa perante as demais. A inclusão da disciplina de Religião e Moral no exame nacional não só viola claramente a laicidade do Estado, como configura uma expressa violação do princípio da não discriminação”, observou a jurista.

O ativista dos direitos humanos, José Messias, mostrou-se “chocado” com a proposta da ministra da Educação. José Messias ressaltou que o país “é de todos os timorenses, católicos e não católicos”. Por isso, considera que o Governo, neste caso o Ministério da Educação, “deve focar-se nas políticas públicas que garantam a libertação total do povo através da produção de recursos humanos qualificados em áreas específicas, visando assegurar um Estado próspero, igualitário, justo e solidário”.

“O Estado timorense não é um Estado católico, mas sim um Estado de direito democrático. Isso significa que é um Estado de todos os cidadãos, mesmo que a maioria seja católica”, sublinhou.

Para José Messias, se o exame nacional avaliar conhecimentos sobre a religião católica, deve também exigir o mesmo em relação a outras religiões, “caso contrário é discriminação e vai contra o princípio do estado de direito democrático”.

No Parlamento Nacional, a declaração da ministra também gerou discussão. O deputado do CNRT, Luís Ximenes Caldeira, mostrou-se cético quanto à aprovação da proposta, porém, tem uma opinião semelhante à de José Messias. Para o representante do povo, se houver mudanças no exame nacional, com a inclusão da disciplina de Religião e Moral, devem ser contempladas também “todas as outras religiões praticadas em Timor-Leste”.

Por sua vez, o deputado da FRETILIN, Joaquim dos Santos “Boraluli”, considerou que a possibilidade de incluir a disciplina de Religião e Moral no exame nacional, independentemente de qualquer tipo de fé, viola a Constituição, porque o documento prevê a separação de poder entre o Estado e as crenças religiosas.

“A disciplina de Religião e Moral não é uma ciência, por isso sugerimos que seja facultativa e não obrigatória, bem como a sua inclusão no exame nacional”, disse ao Diligente.

O coordenador do Gabinete de Desenvolvimento Curricular do Ministério da Educação, João Mau Pelo, explicou que a disciplina de Religião e Moral é obrigatória para todos os estudantes, mas, “no que diz respeito à avaliação, os alunos que não são católicos podem ser avaliados de acordo com a sua religião, dependendo da política interna de cada escola”.

A respeito da inclusão da disciplina de Religião e Moral no exame nacional, o coordenador atenuou. “O plano curricular só inclui a religião católica, por isso, ainda não podemos introduzir esta disciplina no exame nacional. Se essa medida for aprovada, é uma decisão política”, afirmou.

O professor de Geologia e Desporto no ensino secundário da Escola An-Nur, Cesário Plácido Ximenes, sugeriu ao Ministério da Educação que, antes de tomar qualquer decisão, tenha em consideração a opinião de professores e alunos sobre o assunto. Pela sua experiência, o docente acredita que “alguns estudantes podem ser prejudicados com a medida”.

O Diligente tentou conversar com a ministra da Educação após a reunião do Conselho de Ministros, numa quarta-feira (13.09), mas Dulce Soares respondeu que estava “muito cansada” e não deu entrevista.

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  1. Já não sabem como resolver os conflitos no país. Em vez de tomar medidas que sejam valiosas, estão a fazer algo que vai contra a própria constituição.

    Vejo que a Ministra está a apontar dedos para os jovens de que não têm ética e moral, como tal quer testar a consciência moral dos jovens. Que vergonha.

    Os jovens timorenses precisam mais do que isso, senhora Ministra.

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