Presépios modernos: como vivem as famílias timorenses?

Presépio com duas mulheres feito pelo padre italiano Vitaliano Della Sala causou polémica /Foto: REUTERS/CIRO DE LUCA

Famílias numerosas e convencionais, famílias só com o pai ou mãe, famílias com duas mães ou dois pais, famílias sem filhos, todas elas supostamente unidas pelo mesmo laço de amor, mas nem sempre tratadas da mesma forma pela sociedade.

O natal é a época da família, sendo que a festa da Sagrada Família é celebrada no domingo seguinte ao Natal, que este ano será amanhã, dia 31 de dezembro. Na religião católica, aquela da maioria da população timorense, a Sagrada Família é constituída por pai, mãe e filhos.

No entanto, num mundo cada vez mais secular e multicultural, a família considerada “tradicional” já começa a ser rara. Hoje em dia, há famílias monoparentais, famílias com duas mães ou dois pais e famílias sem filhos.

No entanto, esta variedade, num país católico, patriarcal e conservador como Timor-Leste, muitas vezes, é olhada de lado pela maioria. As famílias sem descendentes também sofrem, uma vez que, de acordo com a cultura do país, ter muitas filhas é uma bênção, pois através do barlaque, no futuro, podem ser “trocadas” por dinheiro e animais.

Ainda que de acordo com notícias recentes, a Igreja Católica já demonstre maior abertura relativamente à união entre casais LGBTQIA+, parece que essa ainda é uma realidade longínqua para Timor-Leste.

Note-se que, na semana passada, o Papa Francisco, numa decisão histórica, permitiu que padres abençoassem casais do mesmo sexo. No passado dia 26, o padre italiano Vitaliano Della Sala causou polémica ao fazer um presépio com duas mulheres, argumentando que o presépio representa o nascimento de Jesus e os novos tipos de família que frequentam a missa da paróquia. O sacerdote quis mostrar que as famílias não são apenas as tradicionais e há cada vez mais filhos de pessoas separadas e divorciadas, de casais homossexuais, pessoas solteiras e mães jovens.

As famílias homossexuais são as que causam mais celeuma, sendo que muitos timorenses as rejeitam e questionam: “o que elas ou eles vão fazer? Como funcionam as coisas? Homem tem de casar com uma mulher para procriar”. Estas são algumas das questões e comentários “preconceituosos” que alguns cidadãos fazem, mas não são o mais grave.

Há jovens agredidos pelos próprios familiares, discriminados pela família e pela sociedade, vendo os seus direitos violados e entre as mulheres chega mesmo a haver relatos devastadores de episódios de violação por parte dos familiares ‘para as corrigir’.

Preconceitos e crimes à parte, segundo a infopédia, família é “o conjunto de pessoas com relação de parentesco que vivem juntas; agregado familiar”.

O número 2 do artigo 39º da CRDTL prevê o direito de constituir e viver em família, mas não impõe uma forma ou modelo único familiar, portanto o direito refere-se a constituir relações familiares.

Neste sentido, o Diligente foi conhecer algumas famílias timorenses e perceber como (sobre)vivem.

“Não tenho de pedir licença a ninguém!”

Bella Galhos, 51 anos, diretora da Organização Não Governamental Arcoiris, que defende a população LGBTQIA+, e assessora do presidente da República, José Ramos-Horta, na área do empoderamento económico para as mulheres, vive há quase 15 anos com a companheira, Iram Saeed. O casal tem uma filha, Irabela Teresa Galhos Júnior, de 6 anos.

Bella está consciente de que uma família homossexual é algo novo para muitos timorenses, que apesar de viverem num mundo moderno, “ainda são preconceituosos e vivem presos a pensamentos antigos”, lamentou a assessora.

Segundo a ativista, no contexto timorense, quando se fala sobre casamento, pensa-se imediatamente num homem e numa mulher, influência da religião católica. Contudo, “em todo o mundo, vemos famílias constituídas por duas mulheres ou dois homens. Em Timor, as pessoas dizem que contrariamos a crença tradicional ou a doutrina da Igreja Católica, mas a meu ver, duas pessoas estão juntas, porque se amam. Não tem nada a ver com a cultura ou religião”, realçou.

Bella Galhos e a sua família na cerimónia de condecoração com a Medalha da Ordem de Timor-Leste, Grau Colar/Foto: Arquivo Privado

Neste sentido, Bella explicou que é independente, por isso não quer saber da opinião de ninguém. “Não tenho de pedir licença a ninguém!”

Quanto à Igreja Católica, acredita que os juramentos feitos pelos casais nem sempre correspondem à realidade. “A música timorense ‘ohin hau jura iha Na’i nia oin, hadomi respeita la lakon ba o, hau sei kaer metin promesa nee, hau nia doben’ numa tradução literal para português ‘hoje juro à frente do Senhor, amo e respeito, não te perco, vou agarrar esta promessa, meu amor’ pretende educar os casais para o amor e o respeito, mas isso não se verifica”, frisou.

Bella lamenta que muitos casamentos ditos convencionais e sagrados acabem, muitas vezes, em violência doméstica. “Temos de ter consciência de que formar uma família é uma decisão para a vida.” Salientou que casar na igreja não é uma garantia de felicidade ou união, sobretudo porque ainda “há muitos casamentos arranjados pelos familiares sem o consentimento do casal”.

Neste contexto, explicou que nem todos os casais querem ter filhos e outros só se casam porque engravidaram, “e todas estas circunstâncias não asseguram a felicidade da família”. Bella acrescentou que a sua família é como todas as outras, fazem atividades em conjunto, ajudam a filha nos estudos e dividem as tarefas domésticas.

“Batia-me todos os dias, dava-me bofetadas, pontapés no peito e nas costas e uma vez, deu-me um murro tão forte, que comecei a sangrar do nariz e partes da minha cara ficaram azuis”

Já Lourdes Soares, 37 anos, professora do ensino básico, mãe de três filhos de dois pais diferentes, contou ao Diligente que conheceu o primeiro marido em 2003 e depois de dois anos de relacionamento, decidiram formar uma família. “Conhecemo-nos quando vim para Díli estudar no ensino secundário. Depois de terminar os estudos, juntámo-nos e tivemos a primeira filha e quando ela tinha dois anos, tivemos o segundo filho”, contou.

A mãe de três filhos decidiu deixar o primeiro marido, porque foi vítima de violência doméstica por parte dele, que também a traía, e dos seus familiares. “Batia-me todos os dias, dava-me bofetadas, pontapés no peito e nas costas e uma vez, deu-me um murro tão forte, que comecei a sangrar do nariz e partes da minha cara ficaram azuis”, confessou entre lágrimas.

Lourdes, com uma filha de dois anos e um bebé de dois meses, conseguiu o apoio dos seus familiares. A irmã e o pai vieram a Díli para a ajudar a resolver a situação. “A minha irmã ficou preocupada com tudo o que viu e decidiu levar a minha filha mais velha para o município.”

Após oito anos de se ter separado, em 2015, conheceu o segundo companheiro, com quem teve a terceira filha. No entanto, por motivos financeiros, acabaram por se separar. Atualmente, Lourdes vive sozinha com os três filhos.

“As complicações da gravidez e do parto são a principal causa de morte em mulheres jovens com idades compreendidas entre os 15 e os 19 anos”

A história é diferente para Eugénio Sarmento, 62 anos, Diretor Nacional da Comissão da Arte e Cultura da Secretaria de Estado de Arte e Cultura (SEAC), que está com a sua parceira há 38 anos.

Contou ao Diligente que conheceu a mulher, Antónia Vila Nova da Silva Sarmento, em 1982, num casamento. “Ela tinha apenas 7 anos, cabelo liso, está vestida de branco. Vi-a e chamou-me a atenção, mas ela ainda era uma criança”. Eugénio e Antónia contraíram matrimónio em 1985, quando ele tinha 24 e ela 12 anos.

Segundo Eugénio, a família da esposa permitiu que ele se casasse com ela mesmo sendo uma criança, porque “mostrei que as minhas intenções eram sérias e já tinha casa”.

Hoje, a sua esposa tem 50 anos e é mãe de 16 filhos, tendo dado à luz o primeiro filho com apenas 14 anos. Apesar da tenra idade, “não houve nenhum problema no parto”, afirmou agradecido.

Riscos de gravidez precoce e filhos numerosos

No entanto, Herval de Jesus, médico da clínica Marie Stopes, alerta para os riscos da gravidez precoce para a saúde da mãe e do feto. Alguns desses riscos envolvem bebés prematuros e hemorragias, que podem ser fatais.

Um último estudo do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA, sigla em inglês), publicado em 2017, revelou que quase 25% das timorenses têm o primeiro filho antes de completar 20 anos de idade.

“As complicações da gravidez e do parto são a principal causa de morte em mulheres jovens com idades compreendidas entre os 15 e os 19 anos”, de acordo com o guião da Organização Mundial de Saúde (OMS) para a prevenção da gravidez precoce.

José António Gusmão Guterres, médico especialista em obstetrícia e ginecologia e formador do programa do Cuidados de Emergência Obstétrica e Neonatal Básico (CEmON-B) do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA, na sigla em inglês), explicou que a gravidez precoce pode resultar em parto obstruído, tensão alta, pré-eclâmpsia, o que pode causar danos renais e pulmonares, entre outros fatores pré-existentes como diabetes e doenças cardíacas.

Outros riscos são hemorragia, anemia, por falta de nutrição, e perturbação nos tratos urinários que pode causar parto prematuro, e a atonia uterina, em que o útero não consegue travar a saída espontânea de sangue.

O ginecologista considera que a dificuldade financeira e o pensamento primitivo das famílias contribuem para o casamento precoce. Salientou que os pais veem o casamento como uma “saída” para as filhas, para que alguém tome conta delas.

Quanto ao número de filhos, o formador informou que, de acordo com os dados do censo de 2022, as famílias têm em média 4 a 5 filhos, mas observa que há cada vez mais casais com muitos filhos. “As mães que ficam grávidas e dão à luz várias vezes estão sujeitas a ter anemia, incluindo o bebé, e à distocia de parto, em que o recém-nascido não pode sair por bloqueios, o que, consequentemente pode causar rotura uterina”, acrescentou o médico ginecologista.

O psicólogo Elvis do Rosário considera que a gestação na adolescência traz consequências não só físicas, mas sobretudo psicológicas: “A adolescente grávida já não vive esta fase como deveria, pois acaba por assumir responsabilidades que deveriam ser reservadas à vida adulta”.

O direito nas famílias “convencionais”

blank
“Depois de ter tido o filho mais novo, a minha mulher fez uma laqueação de trompas sem eu saber. Se soubesse, não teria permitido” salientou Eugénio/Foto: Arquivo Privado

Embora os profissionais de saúde e os próprios familiares o tenham advertido para não ter muitos filhos, o pai de 16 descendentes seguiu a palavra de Deus, argumentou citando o  evangelho (Lc.1:38) “Disse então Maria: Eu sou a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra.”

“A minha mulher tem de me obedecer, porque sou o chefe de família”

Desta forma, Eugénio assumiu-se como chefe de família, tendo impedido a esposa de tomar contracetivos, para que pudesse realizar o seu desejo de ter 20 filhos. No entanto, o diretor da SEAC contou que alguns dos seus familiares, por discordarem dele, depois de a esposa ter dado à luz o décimo sexto filho, e estando ainda inconsciente, pediram aos médicos do Hospital Nacional Guido Valadares (HNGV) que a submetessem à esterilização, impedindo-a de voltar a engravidar.

“A minha mulher tem de me obedecer, porque sou o chefe de família. Muitos dos meus irmãos e médicos sugeriram fazer planeamento familiar, mas eu rejeitei. Depois de ter tido o filho mais novo, a minha mulher fez uma laqueação de trompas sem eu saber”, salientou Eugénio Sarmento. Avançou ainda que assinou o consentimento sem saber o que estava a assinar. “Se soubesse, não teria permitido”, ressaltou.

Note-se que este tipo de comportamento é típico de uma sociedade conservadora e patriarcal, como a timorense. No entanto, em termos legais, o casamento é marcado pelo princípio da igualdade dos cônjuges, previsto no artigo 17º da Constituição da República Democrática de Timor-Leste (CRDTL), segundo o qual, “a mulher e o homem têm os mesmos direitos e obrigações em todos os domínios da vida familiar, cultural, social, económica e política”.

“Em Timor, as pessoas gostam muito de se meter na vida uns dos outros”

Dificuldades enfrentadas pelos diferentes tipos de famílias

No caso da família de Bella Galhos, a maior dificuldade tem a ver com a lei, dado que em Timor-Leste o casamento entre pessoas do mesmo sexo ainda não foi legalizado. Bella receia que isso possa gerar insegurança para o futuro da filha, uma vez que a sua companheira é estrangeira e a relação delas não é legítima no contexto timorense.

“Se me acontecer alguma coisa, o que será da minha filha que ainda é uma criança?”, questiona-se explicando que ela e a companheira investiram os seus bens juntas e Iram ainda não tem direito de propriedade”, acrescentou Bella.

Outro dos obstáculos tem a ver com o facto de alguns familiares se sentirem “alérgicos e desconfortáveis” com a sua família. Porém, é algo que sempre teve de enfrentar. “Em Timor, as pessoas gostam muito de se meter na vida uns dos outros”, explicando que quando estão em família, contêm mais as reações e emoções. Lamenta ainda que alguns colegas da filha lhe perguntem porque é que o pai dela é uma mulher, mas Bella não se preocupa com o facto de ser chamada de pai ou mãe, o que importa é a função em si e não a nomenclatura.

Nesta senda, Bella pediu a todos que “abram o pensamento através da leitura para poderem ver que um mundo colorido não vai estragar a realidade de cada um. A nossa família é uma realidade para os timorenses, por isso, esperamos que seja também uma inspiração para que o público perceba que formar uma família como a nossa não é um pecado, é normal”, concluiu.

Questionado sobre os problemas de ter uma família numerosa, sem hesitar, o pai de 16 filhos confidenciou de imediato que passou por inúmeras dificuldades, mas “continuei a viver com a cabeça erguida para manter a união da família”.

O principal obstáculo tem a ver com a questão financeira. No entanto, três já concluíram as suas licenciaturas e outros estão a estudar no ensino superior. “Outros apenas concluíram o ensino secundário, porque não temos dinheiro para financiar a universidade”, confessou Eugénio Sarmento.

Em 2008, por alguns filhos estarem desempregados e nenhum ir casar em breve, o chefe de família decidiu criar o grupo cultural “Loro Samoro”, constituído pelos seus familiares que fazem apresentações em cerimónias nacionais timorenses. “Tive de pensar em formas de eles contribuírem para a família”, afirmou.

Lourdes Soares também destacou as dificuldades económicas, uma vez que não recebe nenhum apoio dos ex-maridos e é apenas com o seu salário de professora e um pequeno negócio de venda de animais que sustenta os três filhos, todos menores de idade.

“É obvio que a falta de dinheiro é um dos principais problemas. Se um casal normal já tem dificuldades, quanto mais uma mãe sozinha”, afirmou.

Os novos tipos de agregados familiares, validados ou não pela maioria, são uma realidade indiscutível em todo o mundo e Timor-Leste não é exceção. No entanto, devido ao conservadorismo e patriarcalismo que perdura na sociedade, estas novas famílias ainda são discriminadas.

Cabe ao estado criar políticas públicas mais inclusivas e promover ações de sensibilização junto das comunidades. As crianças devem ser educadas para valorizarem a diversidade, aceitando que todos têm hábitos e costumes diferentes, mas todos são igualmente valiosos.

Array

Ver os comentários para o artigo

  1. Estou casado ha 49 anos. Homem, mulher, 2 filhos, 5 netos, 2 caes e 1 gato.
    Os caes e o gato estao pendurados na parede.
    (Nao fazem mossa). Todos os dias dou-lhes de comer e levo-os a passear, de manha e a tarde. Tudo em sonhos quando durmo!

  2. O meu presepio para 2024 em TL!

    O Ronaldo de Portugal depois de uma temporada no SCT, o Messi ao lado depois de uma temporada no SDB, o Fabio Carvalho na manjedoura, o Bernardo Silva a contemplar as estrelas no firmamento, o burro nada melhor que o Xanas e a vaquinha? a vaquinha a Emilia dos Prazeres Coitadinha.
    A espreita, no afuu deit, os orfaos de TL.

Comente ou sugira uma correção

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Open chat
Precisa de ajuda?
Olá 👋
Podemos ajudar?