Patriarcado: bênção ou maldição? A vida do meu supremo herói

Ângelo com o seu pai/Foto: Alau Deit

A publicação é sobre o meu pai, o meu herói supremo, e o que ele, enquanto homem, teve de suportar nesta sociedade patriarcal, e como as suas experiências de vida me influenciaram.

O patriarcado é um sistema social que promove ideias e práticas em que, na maioria dos casos, as pessoas veem os homens como fortes protetores e provedores, enquanto as mulheres são fracas e dependentes. Por isso, neste sistema, os homens têm um estatuto dominante relativamente às mulheres. Este sistema promove a ideia de que os homens devem ter o poder de decisão e o direito de controlo dos recursos na sociedade. Os homens que não se enquadrem nesta falsa narrativa ou estereótipos tendem a ser vistos como “não suficientemente homem”. Este é o meu entendimento pessoal do que é o patriarcado e, por isso, recorro a esta definição neste texto.

Admiro o meu pai até à exaustão. Ele mostrou-me o que é ser um homem a sério e o valor dos atos altruístas de um pai para o futuro brilhante dos seus filhos. Podem estar a perguntar-se: não é isto que todos os pais fazem pelos seus filhos? Acredito que todos os pais dão o seu melhor para a felicidade dos seus filhos. Mas o meu pai, Ernesto Menezes, era diferente. Era especial. Através dele, aprendi como é difícil ser um homem nesta sociedade patriarcal. Mostrou-me como a humildade pode levar-nos longe e como reconhecer a nossa fraqueza é, na verdade, uma verdadeira força, que contribui para criar harmonia e relações de amor na família.

“Não és um homem a sério, pois não?”

Sociedade dominada por homens versus família não dominada por homens

Quando cresci em casa da minha família, a rotina normal de todas as manhãs era a minha mãe preparar-se para o seu trabalho de professora primária, enquanto a minha irmã mais velha nos preparava o pequeno-almoço e o meu pai nos preparava a nós, crianças, para a escola. O meu pai ia para a quinta depois de a mãe sair para o trabalho. Como agricultor de subsistência, o meu pai não tinha um rendimento estável. Em média, o meu pai ganhava cerca de 400 dólares ou menos por ano (sim, é verdade – quatrocentos dólares americanos).

Quando eu era pequeno, o meu pai pedia-me muitas vezes (ou, por vezes, ao meu irmão mais novo) para ir com ele à nossa quinta ou a reuniões de família. A partir destas interações com outras pessoas, comecei a reparar que há muitas expetativas sobre o que os homens (e as mulheres) devem fazer nesta sociedade. Era evidente que os homens são normalmente os que tomam as decisões na família. São os homens que lideram as discussões e decidem o que fazer (para além de cozinhar) durante os eventos sociais e as cerimónias culturais. Espera-se que os homens sejam o único ganha-pão da família. Além disso, espera-se que o filho mais velho da família e a sua companheira, muito provavelmente, sejam também aqueles que tomam conta dos seus pais (dos homens) quando estes envelhecem. Tenho a certeza de que há muitas mais regras não escritas que cada um de vós também pode inventar e que reproduzem a desigualdade de género e as práticas patriarcais.

As pessoas da nossa aldeia conheciam a nossa dinâmica familiar e tendiam a questionar o meu pai sobre a razão pela qual ele “permitia” que a sua mulher trabalhasse enquanto ele “ficava em casa”. Ouvi comentários como “Como é que um homem pode ficar em casa enquanto a mulher trabalha?” ou “Então é a tua mulher que ganha dinheiro?”. Alguns dos piores comentários eram: “Não és um homem a sério, pois não?” ou “A tua mulher não te vai respeitar porque ganha mais dinheiro do que tu”. Mal sabiam estas pessoas que os meus pais se amavam e respeitavam tanto um ao outro. De facto, o meu pai respeitava o que a minha mãe fazia.

Não tinha vergonha de reconhecer que a sua companheira era mais inteligente e mais sábia do que ele. Por essa razão, pedia sempre a opinião da mãe antes de dizer ou fazer qualquer coisa em família.

Enquanto crescia, nunca ouvi os meus pais a discutir. De vez em quando, irritavam-se um ao outro, mas falavam sempre sem terem de levantar a voz (pelo menos quando estavam à nossa frente). Com as ações do meu pai, aprendi que não temos de sucumbir à pressão social para provar a nossa masculinidade. Aos meus olhos, ele era um verdadeiro homem nesta sociedade dominada por homens.

Servir o país

No início da década de 1970, quando Timor-Leste ainda era uma colónia portuguesa, o meu pai alistou-se no exército português. Quando os portugueses se retiraram de Timor-Leste, em 1975, ele juntou-se às Falintil, o braço armado do partido Fretilin. No final de 1975, quando os militares indonésios invadiram Timor-Leste, o meu pai estava em Batugade, na fronteira com a Indonésia, em Timor Ocidental, a lutar ao lado dos seus camaradas da Fretilin. Foi nessa altura que o pai do meu pai, o meu avô, morreu devido a complicações de saúde, enquanto se abrigava numa das grutas da montanha Matebian.

O meu pai não esteve presente durante os últimos dias do avô na terra e, como filho mais velho de quatro irmãos, isso exerceu uma enorme pressão mental sobre ele e, como eu viria a descobrir, esta experiência afetou as decisões de vida dele até ao seu último dia na terra.

Um homem nobre (sem um rendimento estável)

O pai e a mãe começaram a conhecer-se, através de um casamento arranjado, em meados da década de 1970. No entanto, só começaram a viver juntos em 1978, depois de o meu pai se ter rendido aos militares indonésios na montanha Matebian, após ter lutado ao lado dos nossos combatentes pela liberdade, as Falintil, durante três anos na selva.

Depois de se estabelecerem em Baguia, o pai e a mãe foram viver juntos e constituíram a sua pequena família. Apesar de o pai e a mãe terem suportado anos de tortura e interrogatórios contínuos por parte dos militares indonésios, devido ao seu envolvimento no movimento independentista, mantiveram-se unidos e criaram a sua pequena família. Resumindo, juntos criaram seis filhos – três raparigas e três rapazes.

A mãe, que tinha sido professora desde a época da ocupação portuguesa, compreendia muito bem o que uma boa educação podia trazer à sua família. Lembrava sempre ao pai para poupar dinheiro e investir na nossa educação. O pai compreendia que não ganhava muito dinheiro e, por isso, já não se dedicava a beber e a fumar depois de se casar com a minha mãe, pois via como uma perda de tempo e de recursos. Muitas vezes, os meus pais abstinham-se de doar dinheiro (se o fizessem, doariam apenas uma pequena quantia) para cerimónias culturais organizadas pelos nossos familiares mais próximos, para garantirem que tivessem poupanças suficientes para a nossa educação.

Na aldeia onde cresci, muitas famílias não mandavam todos os seus filhos para a escola. Em vez de irem à escola, normalmente uma ou duas crianças de uma família (muitas vezes rapazes) ficavam em casa a trabalhar na casa e nos terrenos agrícolas. Por isso, houve alturas em que o meu pai caiu nas pressões sociais. Uma vez disse à minha mãe que “talvez um dos rapazes devesse ficar para trás, para termos alguém que nos ajude na casa quando formos velhos”.  A minha mãe ficou furiosa a ouvir dizer isso. Deixou-lhe claro que o investimento na nossa educação tinha de ser a prioridade deles. Era evidente que o principal objetivo do meu pai era também que os filhos pudessem ganhar a vida por si próprios. Felizmente, o meu pai nunca foi de agradar às pessoas. Com a mãe ao seu lado, não se importava com o que as pessoas pensavam dele como homem (nesta sociedade patriarcal). Para ele, o que mais importava era respeitar a mulher e dar prioridade à educação dos filhos e à felicidade da família.

Gestor dos rendimentos 

Uma vez que a mãe era, tecnicamente, o único sustento da família, o papel do pai era mais o de um gestor de rendimentos. Sendo um marido cujo rendimento dependia das colheitas sazonais da sua quinta, o pai sabia que a família teria de suportar limitações financeiras para poder mandar todos os filhos para a escola. Era uma cena bastante normal ver a mãe e o pai a discutirem como poderiam sobreviver com o dinheiro que tinham para mandar os filhos para a escola e para apoiar outras famílias que pudessem estar a precisar.

A minha irmã mais velha, que já era adolescente quando eu nasci, começou desde muito cedo a apoiar os nossos pais. No início, ajudava a tomar conta de nós, os seus irmãos mais novos, enquanto ia à escola. Decidiu deixar a escola para poder estar em casa a tempo inteiro – decisão que enfureceu os nossos pais. No entanto, não a castigaram. Ela só queria ajudá-los a tomar conta de nós, para que ambos pudessem fazer o seu trabalho. Mais tarde, percebi que ela também estava cansada de ir à escola e de tomar conta dos irmãos ao mesmo tempo. Ter uma irmã mais velha a ajudar foi realmente um grande apoio (chamo-lhe a minha segunda mãe), embora os nossos pais continuassem a sentir pena por ela não ter continuado a estudar.

Enquanto crescia, eu e os meus irmãos frequentámos sobretudo escolas privadas, desde o ensino básico ao secundário, porque os meus pais acreditavam que as escolas privadas proporcionavam uma melhor qualidade de ensino. A escolha do ensino privado afetou a situação financeira da família. Quando chegámos ao ensino secundário, tivemos de deixar a aldeia onde crescemos porque não havia escola secundária. Vivemos com a família em Díli (ou Baucau, dependendo da escola que frequentámos) e o pai era quem nos visitava todos os meses para ver como estávamos e trazer algum dinheiro para as nossas necessidades. Quando viajava da nossa aldeia, Baguia, para Díli, o meu pai tentava poupar o máximo de dinheiro possível, não comprando comida pelo caminho e não se sentando no autocarro, para pagar só a metade do bilhete. Dizia sempre: “Estou a tentar poupar dinheiro para que vocês possam ter dinheiro suficiente para a escola”.

A situação financeira da nossa família tornou-se ainda mais difícil quando três dos meus irmãos mais velhos foram para a universidade. Toda a gente compreendia as dificuldades financeiras e que, por causa disso, muitas vezes não havia problema em comer apenas arroz ao jantar. Ninguém se queixava do que tínhamos na mesa. A realidade era dura, mas com o amor e a perseverança da mamã e do papá, conseguimos ultrapassar a situação. A vida começou a ficar um pouco mais fácil quando o meu irmão mais novo ganhou uma bolsa de estudo para fazer a licenciatura em Portugal, em 2009. E, em 2011, também embarquei, com uma bolsa de estudos, para fazer a minha licenciatura nos Estados Unidos. A nossa família começou a ver a luz ao fundo do túnel, uma vez que, nessa altura, três dos meus irmãos mais velhos já tinham terminado a universidade e encontrado emprego por conta própria. Os sacrifícios altruístas do pai e da mãe começaram a compensar quando viram cada um dos seus filhos a começar, gradualmente, a ganhar a vida por si próprios.

Regras e desigualdades sociais: o filho mais velho, as responsabilidades e os seus problemas de saúde

As pessoas são moldadas pelas suas crenças e práticas culturais. Numa sociedade como a timorense, existe uma grande expetativa em relação ao que os homens (e as mulheres) devem fazer para cumprir o seu papel de género. Se fores a filha ou o filho primogénito, as pessoas assumem que tens de desempenhar o papel de cuidador (se fores mulher) ou de provedor (se fores homem) à medida que cresces. O meu pai, como filho primogénito da família, exprimia frequentemente o seu sentimento de culpa e arrependimento por não ter estado presente quando o meu avô faleceu. Sentiu que estava a ser um filho irresponsável por não ter podido cuidar do seu pai quando ele estava doente. Quando éramos crianças, o meu pai lembrava-nos sempre que seria da sua responsabilidade cuidar da mãe quando ela envelhecesse. Ele expressava este sentido de responsabilidade especialmente quando lhe perguntavam porque é que tínhamos de viver na aldeia (não me interpretem mal – gostei de crescer na aldeia). Os meus pais escolheram viver perto da minha avó, enquanto todos os irmãos do meu pai se tinham mudado para uma cidade próxima.

O meu pai começou a ter graves problemas de saúde no início de 2018. Tentámos convencê-lo a vir a Díli para consultar um médico, mas ele recusou muitas vezes. Não queria deixar a sua companheira e a sua mãe sozinhas na aldeia. Em meados de 2019, convencemo-lo, finalmente, a consultar um médico em Díli, desde que o levássemos de volta à aldeia (que fica a sete horas de carro) depois de cada visita ao médico. Após algumas consultas, descobriu-se que ele tinha graves complicações de saúde, incluindo insuficiência renal, problemas cardíacos e outros problemas graves no sistema digestivo. Por conseguinte, o meu pai tinha de consultar vários especialistas de 15 em 15 dias. Isto significava que tinha de ficar em Díli duas a três semanas antes de poder regressar à nossa aldeia e, depois, apenas duas semanas ou mais antes de voltar a Díli para as consultas. Esta situação afetou-o muito mentalmente. De vez em quando, ele dizia: “Não posso estar aqui em Díli a dormir num quarto com ar condicionado e a comer toda esta comida que me compraste, enquanto a minha mulher está na aldeia a cuidar da minha mãe”. E acrescentava: “Isto não me parece bem, porque prometemos estar presentes no pior e no melhor, mas, olhem para mim, sinto-me um falhado”. Era óbvio que se sentia angustiado e que tinha saudades da mulher e da mãe. Ele queria ter a certeza de que estava lá para a mãe. Depois de andar de um lado para o outro entre Baguia e Díli, a saúde do pai parecia estar a melhorar. No entanto, continuava a manifestar um sentimento de culpa por estar longe da companheira e da mãe. No final de 2020, o pai decidiu desistir do tratamento. Estava farto da ideia de ter de ir ao médico de duas em duas semanas e de ter de tomar medicamentos todos os dias. O meu pai queria estar com a minha mãe e ajudá-la a cuidar da minha avó, que já tinha quase 100 anos, na aldeia. O meu pai já tinha tomado a sua decisão e não havia maneira de o demovermos. Era realmente uma situação frustrante, mas não havia nada que eu pudesse fazer. Sentia-me tão impotente!

Estas chamadas regras sociais (e expectativas) fizeram com que o meu pai acreditasse que tinha a responsabilidade de cuidar dos irmãos, de cuidar dos pais, de sustentar a família e de salvaguardar os conhecimentos, a herança e os costumes da família, de modo a transmiti-los à geração seguinte. A minha irmã mais velha, por outro lado, também sentia que tinha a responsabilidade de cuidar dos seus irmãos mais novos, embora isso não fosse algo a que os meus pais a obrigassem. É importante notar que, muitas vezes, estes papéis e responsabilidades não podem ser cumpridos se não tivermos os meios para o fazer. No caso do meu pai, por exemplo, ele não foi capaz de cuidar e apoiar totalmente os seus entes queridos devido a todas as situações em que se encontrava. Será que ele escolheu estar nessas situações? Não. Se não fosse a invasão militar indonésia, ele teria estado lá para apoiar o pai. Não teria de se sentir embaraçado e culpado por não ser o único sustento da família se não fossem os estereótipos de género que este sistema patriarcal nos impõe. Por último, ele não teria de estar longe da sua companheira e da sua mãe durante o tempo em que estivesse doente, se tivéssemos infraestruturas de saúde adequadas e recursos adequadamente colocados – até ao nível da aldeia. Era evidente que os papéis de género, as expectativas sociais e as desigualdades económicas (onde o desenvolvimento parece estar concentrado apenas em Díli) afetaram muito a vida deste homem.

“Vou-me embora em breve. Por favor, tomem conta uns dos outros”

O pesadelo

Depois de o meu pai ter desistido do tratamento, eu e os meus irmãos íamos visitá-lo a Baguia, sempre que tínhamos dias de folga do nosso trabalho em Díli. Cada vez que o víamos, era óbvio que a sua saúde se estava a deteriorar. No entanto, ele deixou-nos claro que só viria a Díli se a sua mulher viesse connosco. Isso não era possível, porque a avó já estava acamada há meses, desde o início de 2021, e a minha mãe era a sua única cuidadora (p.s. desde que me lembro, a minha avó nunca quis mudar-se para Díli). O meu pai tentou consumir vários medicamentos tradicionais (juntamente com alguns medicamentos modernos, que lhe foram receitados por médicos que consultámos), mas não fez grande diferença. Ele tinha deixado de ir aos médicos na capital, pelo que era difícil para nós sabermos o estado da sua saúde.

A perda de entes queridos, mesmo quando é esperada, nunca é algo para que nos possamos preparar totalmente. No dia 15 de agosto de 2021, a minha avó deu o seu último suspiro. Foi triste vê-la partir, mas também era expetável, uma vez que ela já tinha quase 100 anos. Ela tinha vivido a sua vida. O falecimento da minha avó trouxe-nos também a esperança de que o meu pai pudesse vir a Díli para ver os médicos novamente.

Entretanto, o estado do meu pai estava a piorar de dia para dia – ele parecia mais fraco e pálido de cada vez que o via. Todas as noites gritava de dor – queixava-se de dores no peito e no estômago. A maior parte do seu corpo estava inchada, desde meados de 2021. No dia 21 de agosto, às 10:00, o meu pai deu o seu último suspiro. O meu pai já sabia que ia “partir” em breve. Dois dias antes da sua morte, disse ao meu irmão mais novo e a mim, que ainda estávamos na casa da família depois do funeral da minha avó: “Vou-me embora em breve. Por favor, tomem conta uns dos outros”. As lágrimas caíram quando o ouvi pronunciar estas palavras – mal sabia eu que era a sua última mensagem. Podíamos sentir que o seu tempo na terra já não seria tão longo. Algumas horas antes de morrer, disse-nos: “Não se afastem muito de mim, porque estou prestes a partir.” O meu pai deu o último suspiro a meio de uma oração – o seu filho mais novo, o meu irmão mais novo, e a sua mulher, seguravam-lhe as mãos. Um dos seus irmãos e a sua cunhada também estavam lá, a rezar com ele. Vi toda a cena não muito longe do local onde ele estava deitado e não consegui conter-me ao ver a sua alma partir lentamente do seu corpo fraco.

Desatei a chorar e não sabia o que fazer, o que dizer, nem como reagir a tudo o que estava a acontecer. Por um momento, o meu mundo parou – senti-me entorpecido. A realidade mais dolorosa que alguma vez tive de testemunhar foi vê-lo ali deitado, imóvel. Não estava preparado para isto – nunca poderia estar. Era como se alguém tivesse disparado uma seta na minha alma. A agonia era surreal. Tive de me recompor para dar a notícia aos meus outros irmãos e familiares. Foi a chamada mais dolorosa que alguma vez fiz. Não sei como, mas consegui fazer vários telefonemas antes de ser novamente atingido pela realidade – o meu pai tinha partido.

O homem que abdicou da sua vida por mim e pelos meus irmãos, para que pudéssemos viver os nossos sonhos, tinha acabado de falecer. O homem que teve de suportar todas as pressões, emocionalmente, mas que mesmo assim escolheu perseverar e viver para a sua família nesta sociedade patriarcal já não estava cá. O homem que me mostrou o que é um verdadeiro homem, o que significa o amor puro e o que é o sacrifício altruísta tinha entrado no seu sono eterno. Este homem já não chamará pelo meu nome. Não se queixará dos alimentos que cozinho, dizendo: “esta sopa está demasiado salgada”, “este arroz não está bem cozido” ou “não sabes cozinhar bem, rapaz!”. Não poderei voltar a comprar-lhe comida quando visitar a minha aldeia. Apercebi-me agora que não vou poder voltar a provocar este homem. Não vou dizer: “Tiveste saudades da comida da mãe quando estiveste em Díli? Eu sei que sim, pai. Era-te difícil dormir quando estavas longe da mãe. Eu sabia que tinhas saudades dela, pai (piscar de olhos)”. Sempre que o fazia, ele ficava corado, mas sorria um pouco antes de me repreender para parar de o provocar. Não acredito que não vou poder voltar a ver aquele riso e aquele sorriso. Não vou poder falar com ele ao telefone nem voltar a receber uma chamada dele. Estou tão destroçado. Este homem, Ernesto Menezes, partilhou comigo sabedoria suficiente para me fazer continuar com a minha vida. Estou contente por ter sido criado por ele e por ter visto, em primeira mão, o que é ser um homem decente a navegar pela vida nesta sociedade estupidamente injusta e discriminatória.

Patriarcado: é uma bênção ou uma maldição?

Quem, no seu perfeito juízo, pensou que as pessoas estariam melhor numa sociedade dominada por homens? Não se pode negar que este sistema patriarcal dá mais vantagens aos homens do que às mulheres. No entanto, isso não significa que nós, homens, não sejamos afetados negativamente por este sistema injusto, com as suas regras não escritas sobre a forma como os homens e as mulheres se devem comportar ou o que devem fazer. Este sistema fez com que muitos homens acreditassem que tinham de ser o único protetor e provedor da família. Este sistema colocou muita pressão no meu pai, a nível emocional, porque ele não era o ganha-pão da família. Quando o meu pai não desempenhava as tarefas esperadas pela sociedade, era vítima de bullying, implicavam com ele e faziam-no acreditar que não era suficientemente homem. A prática patriarcal obrigou o meu pai a acreditar que ele, como filho mais velho, devia ser responsável por tomar conta dos pais. Devido a esta crença, teve de viver com culpa e dor por não ter estado presente no último dia de vida do seu pai. Estas pressões que sofreu como homem e como filho mais velho da família obrigaram-no a desistir do tratamento médico em Díli, pois acreditava que “tinha de estar lá para a minha mãe e para a minha mulher”, apesar de estar a lutar contra graves problemas de saúde.

Se o patriarcado fosse uma pessoa, eu queria dar-lhe um murro na cara. Queria gritar com ele e dizer “Tu causaste-me esta dor”, e queria dizer “Espero que te vás embora” porque este sistema patriarcal não nos está a ajudar. É, de facto, a fonte da discriminação, da divisão e da dor. Assumi o compromisso pessoal de falar contra a injustiça quando a vejo, e isso inclui opor-me ao patriarcado. É um desafio, mas farei a minha parte. O patriarcado nunca deixará de existir, a não ser que todos decidam levantar-se contra ele, coletivamente. Será que alguma vez vamos conseguir abolir este sistema? Esta é a questão que todos nós temos a responsabilidade de refletir. Se não fosse o patriarcado, o meu pai não teria tido de suportar tais pressões emocionais por ser parcialmente um pai que fica em casa. Se não fosse o patriarcado, o meu pai não teria sentido um sentimento de culpa, que carregou consigo durante anos, por não ter estado presente no último dia do avô na Terra. Se não fosse o patriarcado, talvez eu ainda tivesse o meu pai, pelo menos durante mais alguns anos. Estou de luto. Parte da minha vida deixou a terra quando o vi deitado na sua sepultura. Como é que perdi o homem que mais adoro na minha vida? Guardarei para sempre todas as recordações que tenho dele. Sei que ele está aqui, comigo, em espírito. Este vai ser o meu novo normal. Ainda estou a aprender a viver sem ele. Uma coisa é certa, apesar de todas as dificuldades deste mundo desafiante, ele fez bem o seu trabalho – foi um ótimo pai – foi um ser humano muito amoroso, solidário e responsável. Cumpriu todas as suas missões antes da sua partida. É o meu herói supremo.

Ângelo Alcino Menezes Guterres Aparício, natural de Baucau, licenciou-se em Psicologia e Sociologia na Universidade de Havai e fez o mestrado em Psicologia Clínica Forense na Universidade de Montclair State University, Nova Jersey, Estados Unidos da América. Atualmente, trabalha como consultor independente.

Ver os comentários para o artigo

  1. Gostei imenso desta prosa da tua vida.
    Eu sem te conhecer estou muito orgulhoso de ti e da tua familia. O teu pai foi um grande Homem, a tua mae uma Santa.
    Eu nessa altura 73/74 trabalhava na reparticao provincial dos servicos de educacao, ali ao lado do parlamento. Fazia os vencimentos do pessoal menor, professores de posto, monitores escolares e ate professores formados em Portugal nos magisterios primarios.
    Quando tive de fugir em 75, vim a conhecer a familia Aparicio Guterres, o padre, as irmas e irmaos dele. Eramos todos companheiros do desterro.
    Bem Hajas e Felicidades.
    Hakuak boot ida

  2. Deste lindo relato e, aproveitando a “mare” das “importancias” se pode concluir:
    A importancia de uma boa educacao;
    A importancia da unidade familiar;
    A importancia de valorizar a mulher;
    A importancia da gratidao e reconhecimento
    dos filhos;
    A importancia do planeamento familiar e de ter agregados familiares com numeros mais manejaveis em todos os sentidos;
    A importancia do sector privado e publico no ensino (maior escolha);
    A importancia do sacrificio em prol de uma nacao futura;
    A importancia da decisao do futuro dos filhos ser tomada por ambos pai e mae;
    A importancia de nunca por a carroca a frente dos burros;
    A importancia da HUMILDADE.

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