“Para de ser criança e comporta-te como uma mulher!”

Segundo o relatório do Nabilan, de 1.426 mulheres timorenses, entre os 15 e os 49 anos, 90% relataram ter sofrido alguma forma de violência quando eram crianças, como: abuso físico, abuso sexual, abuso emocional e abandono/Foto: Unsplash

A violência verbal e física contra crianças reside em casa e à porta aberta. Os dados oficiais do Governo timorense sobre maus-tratos infantis no país continuam encobertos. O Coordenador dos Direitos das Crianças assegura que o Governo e as organizações competentes estão a trabalhar para combater o problema através de ações de sensibilização.

“Para de ser criança e comporta-te como uma mulher!” é a frase que muitas meninas ouvem todos os dias, num país onde o género de nascença pode fazer toda a diferença.  

A casa nem sempre é um lar seguro e acolhedor, sobretudo para as crianças timorenses.  Maria (nome fictício) tem 12 anos. Todos os dias é espancada e humilhada pelos pais ou avós por não fazer o serviço doméstico convenientemente. Os vizinhos são pessoas com cargos importantes: professores, polícias, funcionários e defensores públicos. Assistem às agressões verbais e físicas infligidas à criança, mas nada fazem. Talvez não considerem os atos como uma forma de violência, mas como algo normal, uma vez que, numa sociedade onde a cultura patriarcal está profundamente enraizada, é obrigação das meninas e mulheres assumirem as tarefas domésticas. Caso não o façam, merecem ser castigadas.

“Apesar do olhar da menina pedir socorro, não conseguia verbalizar, porque sabia que ninguém a ajudaria”

Maria trabalha de segunda a domingo. Anda na escola de manhã e aproveita o tempo durante este período para ser criança, porque sabe que, quando regressar a casa, tem de voltar a ser adulta. Imediatamente depois de acordar ajuda a tomar conta dos irmãos e faz a limpeza da moradia, além de ajudar os pais e avós a preparar o almoço para vender na rua. A menina vive cada dia conforme as tarefas lhe são demandadas.

Num domingo, depois de fazer o almoço e outros trabalhos domésticos, Maria foi brincar com as amigas, que são também vizinhas. A tia, furiosa, chamou-lhe “puta e vadia”, gritando: “Não és homem, és uma mulher. Então, comporta-te!”. A menina, sem perceber o que a tia disse, murmurou, lamentando-se: “Agora eu não posso brincar, só os meus irmãos é que podem? Não é justo.” Foi para casa e a mãe bateu-lhe, perante o testemunho negligente dos vizinhos. Apesar do olhar da menina pedir socorro, não conseguia verbalizar, porque sabia que ninguém a ajudaria.

A violência contra crianças no ambiente familiar é uma prática normalizada em Timor-Leste. Os menores não têm para onde ir ou a quem pedir ajuda e os dados oficiais sobre maus-tratos infantis continuam encobertos.

Em 2016, um inquérito realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF, em inglês) questionou os professores sobre o que fariam no caso de suspeitarem que uma criança estava a ser abusada em casa. Mais de metade da amostra (59% dos participantes) disse que não faria nada. Outros 32% afirmaram que chamariam os pais do(a) menor à escola e os aconselhariam. Já 6% relataram que comunicariam o caso a outro professor, 3% que acionariam um serviço de assistência social (como um oficial de proteção de menores) e apenas dois professores (1%) enfatizaram que iriam contactar a polícia.

Não obstante o resultado do inquérito, o artigo 18.º (Proteção da criança) da Constituição da República Democrática de Timor-Leste (CRDTL), no primeiro parágrafo, reconhece à criança, o “direito a proteção especial por parte da família, da comunidade e do Estado, particularmente contra todas as formas de abandono, discriminação, violência, opressão, abuso sexual e exploração”. Essas garantias também estão presentes na Convenção sobre os Direitos da Criança, que Timor-Leste ratificou a 17 de setembro de 2003.

“Para a comunidade, os cidadãos e para as instituições sociais, incluindo as escolas, os centros de saúde e as organizações religiosas, este dever de proteção implica não apenas o dever de se absterem de comportamentos que possam resultar no abandono, discriminação, violência, opressão, abuso sexual e exploração de crianças, mas também o dever de vigilância e de denúncia de agressões e abusos que cheguem ao seu conhecimento”, consta desta Convenção, contrariando a atitude dos vizinhos que assistem indiferentes às agressões cometidas contra Maria, quando deveriam denunciar a situação.

Sofrimento em silêncio

Numa cerimónia cultural, Maria observava os seus colegas a brincar, enquanto ela demonstrava dificuldade em interagir, escondendo-se atrás de sorrisos incertos. Uma parte dela queria gritar e chorar, outra queria brincar.

No momento de diversão, o barulho começou a tomar conta das brincadeiras. Maria sentia-se incomodada e espontaneamente gritou: “Parem de fazer barulho, vocês parecem crianças”, quando, na verdade, também ela é ou desejava ser.

A Convenção sobre os Direitos da Criança define criança como sendo “todo o ser humano menor de 18 anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo”. Aplicado à realidade timorense, este princípio implica que sejam consideradas crianças e, por isso beneficiários do regime instituído pela Convenção, todos os cidadãos com idade inferior a 17 anos, uma vez que é esta a idade em que as pessoas atingem a maioridade em Timor-Leste.

Gabriela (nome fictício) tem 11 anos e, tal como Maria, sofre em silêncio todos os dias. Tem uma atitude mais descontraída para com a vida, mas a cultura timorense não é muito acolhedora para com a natureza infantil. A menina, apesar da pouca idade, carrega boa parte das responsabilidades da família.

Numa tarde de domingo, Gabriela varria a varanda de casa, enquanto via os primos e irmãos a brincarem. Entusiasmada, abandonou a vassoura e juntou-se a eles. Passados cinco minutos, a irmã mais velha, enfurecida, apedrejou-a e quase a atingiu. “Quem é que te ensinou a deixar as tarefas de casa a meio para ir brincar?”, questionou-a, irritada.

Apressada, voltou para terminar o serviço, confiante de que teria uma recompensa depois do trabalho, mas Gabriela não voltou a brincar naquele dia. Os irmãos e primos continuavam à espera.

Em Timor-Leste, uma das principais violações dos direitos humanos é o trabalho doméstico forçado e maus-tratos, segundo o relatório do Nabilan (2016). De acordo com o estudo, 90% das 1.426 mulheres timorenses entrevistadas, entre 15 e 49 anos, relataram ter sofrido diferentes formas de violências quando eram menores, como abuso físico, abuso sexual, abuso emocional e abandono.

O programa Nabilan é implementado pela Asia Foundation, em parceria com o Governo de Timor-Leste e organizações da sociedade civil, com o objetivo de melhorar a qualidade dos serviços prestados às vítimas de violência doméstica, focando-se, principalmente, em atender mulheres e crianças.

Violências que se repetem

Segundo Paula Shinta Dewi, chefe de equipa do programa Nabilan, a maioria das mulheres timorenses normaliza a violência, porque já foram vítimas de algum tipo de abuso na infância. Todas cresceram sem tratamento psicológico, “acabando por replicar o problema”.

“Eu falo isso por experiência própria. Quando eu era criança, os meus pais educaram-me com violência. Hoje, tenho filhos, e, às vezes, também lhes levanto a voz, inconscientemente. Isso, porque fui ensinada assim. O importante é reconhecermos as origens dos nossos problemas e melhorarmos com o tempo”, observou.

De acordo com a responsável do Nabilan, o ciclo de agressões mantém-se desde a ocupação indonésia e repete-se até aos dias de hoje. Sublinhou ainda que o que contribui para a prevalência de maus-tratos contra as crianças, sobretudo as meninas, é a tradição.  Na cultura timorense, os homens é que estão sempre à frente, por isso são os chefes da família e sentem-se donos das mulheres.

O relatório realizado pelo Nabilan, em 2016, indicou que 83% das timorenses concordam com a frase “o papel das mulheres é cuidar da casa e preparar refeições para a família”.

O psicólogo Alessandro Boarccaech realçou que os traumas da infância, quando não tratados, trazem consequências, sobretudo psíquicas. “Os problemas dos maus-tratos na infância podem ter uma série de consequências no desenvolvimento infantil como, por exemplo, lesões físicas permanentes, depressão, stress pós-traumático, ansiedade, transtorno do pânico, tentativas de suicídio. A criança pode não confiar em si mesma, pode pensar que não merece amor e respeito, pode ter dificuldade em relacionar-se com as outras pessoas, pode ter comportamentos agressivos, isolamento social, entre outros”, explicou.

Os problemas podem também, segundo o especialista, afetar o desenvolvimento da linguagem, traduzindo-se em dificuldades de aprendizagem na escola, falta de motivação e desistência dos estudos. Na fase adulta, a possibilidade de a vítima repetir o ciclo de maus-tratos contra os eventuais filhos que vier a ter é grande, alertou o psicólogo.

Maria e Gabriela, muitas das vezes, sentem que têm de esconder a sua raiva, como um segredo sussurrado no silêncio da noite. Foram ensinadas que não é educado dizer não. Muitas crianças em Timor-Leste, além destas duas meninas, seguram a fragilidade da vida, dia após dia, sem saberem para onde ir. Em casa, os problemas acontecem à porta aberta e o ambiente torna-se cada vez mais tóxico.

Bater em crianças é uma forma de educação?

Domingas Quintas, solteira, 38 anos, relatou ao Diligente as suas vivências traumáticas na infância. Foi sempre agredida e humilhada pelo pai. Hoje, leva os traumas consigo para onde for.

“Já não me lembro que idade tinha na altura. Deveria ter 13 anos. Só sei que naquela época a nossa casa era um inferno. Eu sofria muito, calada. Uma vez, estava a tomar conta da minha irmã mais nova, ela ainda era bebé, tinha 1 ano, fui à casa de banho enquanto ela dormia. De repente, ela caiu da cama no momento em que o meu pai chegou do trabalho. Ele viu e deu-me logo um pontapé no peito. Como castigo, punha-me pimentão na boca todos os dias”, desabafou.

Domingas conta que o pai dizia que a amava e que bater era a sua maneira de educar. Portanto, ela e as cinco irmãs foram educadas assim até 2006, quando o pai faleceu. A figura paterna, porém, continua viva através dos traumas.

Em 2009, com a ajuda de uma amiga, decidiu arriscar e partiu para a Inglaterra, onde tem desconstruído todas as crenças que o pai lhe passou desde tenra idade: “Agredir uma criança não é educação, é crime”, enfatizou.

Os fatores que contribuem para um sistema baseado na violência, de acordo com a observação de Alessandro Boarccaech,  são a pobreza, a falta de informação, a falta de acesso aos tratamentos de saúde física e mental, o desemprego, um sistema hierárquico baseado na autoridade de quem tem mais força, a falta de perspetivas futuras, a desvalorização da educação formal e a normalização da agressividade como solução para resolver conflitos.

O psicólogo salientou ainda que, “num sistema como este, os grupos vulneráveis, como as crianças, as mulheres, os doentes mentais, os pobres e os homossexuais, são os que mais sofrem”.

Paula Shinta Dewi lamenta que “ao contrário de outros países, Timor-Leste ainda não tenha medidas de proteção suficientes”. Segundo a chefe da equipa do programa Nabilan, até agora, as instituições que abrigam e oferecem segurança a crianças e mulheres vítimas de violência doméstica são Fokupers, Uma Mahon Salele, Casa Vida “e alguns conventos de madres”.

Por sua vez, Izaias Carvalho Pereira, Coordenador da Unidade de Monotorização da Violação dos Direitos Humanos, assegurou que o Governo e as organizações em causa têm trabalhado muito para sensibilizar a comunidade para os direitos das crianças. “Agora, cabe a cada família fazer a sua parte”.

“A mudança tem de começar com a família e com a Igreja, isto é, a Igreja sensibiliza para os valores morais e éticos, de como ser bons cidadãos, e a família tem de começar a ter mais consciência do seu papel na educação das crianças e transmissão de valores”, afirmou Izaias Pereira, ao ser questionado sobre o que pode ser feito para melhorar o atendimento aos meninos e meninas vítimas de abuso.

Em março deste ano, o Parlamento Nacional aprovou a Lei nº 6/2023 para a proteção de crianças e jovens em Timor-Leste. O documento refere: “Uma lei específica, centrada na proteção de crianças e jovens em perigo e sensível às suas necessidades, contribui para o estabelecimento de um sistema de proteção integral, em linha, também, com os compromissos internacionais assumidos pelo país, em particular com a Convenção sobre os Direitos da Criança (…)”.

A referida legislação diz que o dever do Estado, da família e da sociedade é proteger os menores, mas, na verdade, muitas das vezes, a violência é praticada pelos próprios. Em termos práticos, as crianças timorenses continuam a ser tratadas como pequenos adultos perante o olhar descuidado de todos.

Qual será o futuro de um país que maltrata as suas crianças (ita hotu nia oan, em tétum), ou seja, “os filhos de todos”? Se as crianças são filhos de todos, então quem as protege quando a própria família as agride, a sociedade faz vista grossa” e o Governo, apesar de ter ratificado todas as convenções e leis de proteção, assobia para o lado?

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  1. Tenham fe, a resolucao de todos esses problemas esta para breve. O maromak de Maubisse ja encomendou 1000 prototipos de “inteligencia artificial”. Eles e elas sao fortes como o metal, maleaveis como a borracha, com poder de esticar como o elastico, dotados de uma inteligencia superior aos mais inteligentes humanos. Ninguem os pode corromper, subornar e trazem a solucao para tudo e todos.
    Alimentam-se a energia solar por isso a agricultura vai passar de moda, a famosa merenda nas escolas primarias vao ser ricas em ferro.
    Eles nao sao caixeiros viajantes, resolvem tudo pela internete e so ligar a ficha eletrica e dar-lhes carga. Sao munidos de visao x-ray, veem tudo a grandes distancias. Uma vez carregados andam a pe e em grandes distancias, 10000km sem parar, nao precisam de agua, nao fumam, nao bebem alcool, nao mascam, nao necessitam de calcado, roupa e o tais vai durar-lhes uma eternidade. Sao verdadeiros poliglotas, falam todas as linguas e dialetos deste mundo.
    O karreta kuda, karreta estado, aviao, gasolina, gasoleo nao vao ser precisos. Sao educadores excepcionais, formadores extraordinarios, jogam futebol melhor e metem mais golos do que o Ronaldo, Messi ou Neymar.
    Nao precisam da ONU para resolver problemas e tambem nao os vao criar. Eles vao resolver os problemas do planeta num piscar do olho.
    Eles nao tem religiao alguma, mas tambem nao sao ateus. Embora de certo peso, nao se afundam, eles andam na agua e em todo o tipo de terreno sem se enterrarem.
    Eles nao precisam do dolar nem do dolar rai.
    Eles sao “aquela maquina”!

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