Orçamento para os veteranos é superior ao da saúde. O que pensam os cidadãos?

Os “heróis da pátria” têm uma instituição própria para tratar dos seus interesses e gozam de privilégios/Foto: F-FDTL

A disparidade no tratamento dado aos ex-combatentes em relação ao resto da população divide opiniões.

Comemora-se hoje (03/03) o Dia Nacional dos Veteranos, as forças armadas que fizeram parte da resistência e lutaram nas áreas remotas de Timor-Leste, durante a ocupação indonésia, que durou 24 anos (1975-1999). Em Timor-Leste, os “heróis da pátria” têm uma instituição própria para tratar dos seus interesses e gozam de alguns privilégios, como acesso a cuidados de saúde no estrangeiro e, para os seus descendentes, regime diferenciado para admissão na Universidade Nacional Timor-Lorosa’e (UNTL) e exército.

Para este ano, o dinheiro público alocado para o Ministério dos Assuntos de Combatentes e Libertação Nacional (MACLN), de acordo com o Portal de Transparência do Orçamento de Timor-Leste, é de 113 milhões de dólares americanos. O montante é superior, por exemplo, à soma dos valores reservados a todas as entidades da área da saúde no país, no caso o Ministério da Saúde (67,6 milhões de dólares), Hospital Nacional Guido Valadares (13,5 milhões de dólares), Instituto Nacional de Farmácia e Produtos Médicos (8,2 milhões de dólares) e o Instituto Nacional de Combate ao HIV SIDA (798 mil dólares) – quantia que totaliza cerca de 92 milhões de dólares americanos.

O setor da saúde em Timor-Leste acumula graves problemas, como a falta de recursos humanos, de medicamentos e equipamentos, além de infraestruturas precárias.

A disparidade no tratamento dado aos veteranos em relação ao resto da população divide opiniões. Algumas pessoas acreditam que, no país, a população é separada em três classes: políticos e veteranos – os privilegiados – e o povo – os que vivem com pouco.

O Diligente foi à rua para tentar saber o que os cidadãos pensam sobre o assunto.

“O Estado, que gere o nosso dinheiro, deveria melhorar este cenário, investindo nos setores produtivos e essenciais. Chega de veteranos. Agora é tempo de libertar o povo. Já ganhámos a pátria”

Joanito Maia da Cruz, 21 anos, estudante de Direito da Universidade Oriental Timor Lorosa’e (UNITAL)/Foto: Diligente

“O dia dos veteranos é uma data dedicada aos heróis que lutaram pela independência. É um dia para recordar a situação angustiante vivida pelo povo durante a ocupação. No entanto, muitos timorenses continuam a não gozar de liberdade.

Para mim, todos são veteranos, porque todos lutaram. Cada um contribuía com a sua própria luta. Por exemplo, as mulheres cozinhavam para os veteranos e as crianças ajudavam a trocar cartas e informações. A 30 de agosto, não foram apenas os veteranos que votaram. Se fossem só eles, não seríamos independentes.

O Governo está a valorizar demasiado os veteranos através de alocação de uma grande quantia de dinheiro público para o Ministério para os Assuntos dos Combatentes da Libertação Nacional, que, na verdade, não beneficia todos os veteranos, o que é injusto. Os veteranos já têm muitos privilégios, por exemplo, quando estão doentes, recebem tratamento especial e os seus filhos têm acesso gratuito à universidade pública, privatizando o acesso dos outros.

É lamentável que o setor da saúde, que assegura a vida dos cidadãos, receba uma fatia muito menor. Sabemos que ainda há falta de medicamentos, facilidades médicas e os edifícios hospitalares estão em más condições, o que põe em causa a vida dos cidadãos e o Estado, que gere o nosso dinheiro, deveria melhorar este cenário, investindo nos setores produtivos e essenciais. Chega de veteranos. Agora é tempo de libertar o povo. Já ganhámos a pátria.”

“Usam o dinheiro do povo e já não pensam na necessidade de melhorar as condições básicas de todos os cidadãos. Estão a ser louvados por terem lutado, mas o povo continua a sofrer”

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José Cardoso Morreira, 30 anos, pesquisador do meio ambiente/Foto: Diligente

“O Dia dos veteranos é de todos os que lutaram, por isso, como jovem, agradeço e dou os parabéns aos que lutaram pela independência. No entanto, este dia não tem sido comemorado como deveria ser, porque, em vez de partilharem a história da luta, os veteranos decidiram abrir jogos de bola-guling, gastando o dinheiro do povo. É lamentável. Além disso, não tem havido esforço para recolher e divulgar as histórias da luta no mato durante 24 anos.

O facto de os recursos financeiros alocados ao MACLN serem superiores do que os do setor de saúde, por exemplo, mostra que os veteranos se estão a esquecer-se o sentido principal da luta durante a ocupação indonésia, que era a ‘libertação do povo’.

Eles usam o dinheiro do povo e já não pensam na necessidade de melhorar as condições básicas de todos os cidadãos. Estão a ser louvados por terem lutado, mas o povo continua a sofrer.

Por outro lado, é triste haver tratamento desigual entre veteranos. Alguns não recebem apoio e vivem em condições preocupantes, principalmente os que estão nas áreas rurais. Muitos vivem em casas estragadas e dormem em camas de bambu.”

“O fundo dos veteranos beneficia, não só os próprios veteranos, mas também os familiares, que na maioria são necessitados”

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Salma da Silva Pacheco, 38 anos, vendedora ambulante em Kampung Alor/Foto: Diligente

“Os veteranos devem receber o dinheiro, porque eles sofreram no mato. Reconheço que outras pessoas também sofreram, porque enfrentaram os invasores, mas o fundo é para os veteranos.

A minha mãe é ex-combatente, mas ainda não recebeu nada por causa da burocracia. O meu tio, também veterano, recebeu uma vez o apoio, mas o montante não correspondeu ao seu período no mato. Então, começou um novo processo, que ainda não foi concluído.

Em relação ao orçamento para o MACLN ser maior do que o do setor da saúde, é mesmo necessário investir mais na saúde. Quando vamos ao HNGV, às vezes, não há médicos para nos atenderem ou temos de comprar medicamentos fora. A minha família é carenciada, não podemos ir a clínicas privadas nem comprar remédios.

No entanto, não concordo que o fundo dos veteranos seja eliminado, porque beneficia, não só os próprios veteranos, mas também os familiares, que na maioria são necessitados. Por exemplo, o meu tio, quando recebeu o dinheiro, deu-nos um pouco para conseguirmos comprar arroz para sobreviver mais um mês.”

“Defendo um investimento mais sério na saúde, mas também concordo que o fundo dos veteranos se mantenha.”

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Genoveva Ximenes Lopes Carvalho, 28 anos, desempregada/Foto: Diligente

“O meu pai é veterano, mas não quis receber o dinheiro, porque, mesmo sabendo que é o seu direito, estava a pensar nas outras pessoas que morreram por este país. Acredita que é ‘dinheiro de sangue’, mas acho que deve aceitar seja quanto for, porque esforçou-se muito. Eu até já lhe disse que, quando ele morrer, nós, os filhos, temos o direito de usufruir, por isso ele deve tratar dos documentos necessários para poder receber. Ele já começou a fazer isso.

Relativamente às outras pessoas que sofreram durante a ocupação, também ajudaram os que estavam no mato. Não sei se concordo ou discordo, porque, vendo o exemplo do meu pai, há pessoas que não querem receber o apoio, porque acreditam que é “dinheiro de sangue”. Já houve pessoas que um mês depois de receberem o apoio, sofreram acidente vascular cerebral e morreram e nunca usufruíram do dinheiro. Outros ainda não receberam devido a questões burocráticas.

Comparando o montante alocado para o MACLN com o das entidades de saúde, defendo um investimento mais sério na saúde, mas também concordo que o fundo dos veteranos se mantenha.”

“Os veteranos não fizeram tudo. O referendo definiu a independência e todos votaram, arriscando a sua vida, quando vieram dos municípios para Díli. Por isso, todos são veteranos. Ou valorizamos todos ou não valorizamos ninguém”

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Nelson Correia, assessor no Parlamento Nacional/Foto: Diligente

“O orçamento para os veteranos está sempre a aumentar, porque os veteranos são muitos e alguns processos ainda estão em verificação de dados. Este fundo começou na altura da Administração Transitória das Nações Unidas em Timor-Leste (UNTAET), com o intuito de reconhecer os cidadãos que resistiram no mato, as forças armadas.

Este assunto é problemático. Por um lado, é o direito deles, mas, por outro, todas as pessoas lutaram para a independência, não apenas os que pegaram nas armas. Os que fizeram trabalho clandestino também devem ser valorizados, as pessoas que ficaram em casa para cozinhar e alimentar os combatentes no mato, as crianças que levaram as cartas e os estudantes no estrangeiro também.

Os veteranos não fizeram tudo. O referendo definiu a independência e todos votaram, arriscando a sua vida, quando vieram dos municípios para Díli. Por isso, todos são veteranos. Ou valorizamos todos ou não valorizamos ninguém.”

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  1. Se nao fosse o POVO, nao havia veteranos, o POVO aos meus olhos e o verdadeiro HEROI VETERANO. O POVO e quem os manteve na luta, levava-lhes comida, medicamentos sempre com a vida em risco.
    E uma VERGONHA DE BRADAR AOS CEUS!

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