Estado timorense “trai” Constituição e discrimina cidadãos que querem casar só no civil

Notariado apenas reconhece o registo civil de uniões civis realizadas no estrangeiro/Foto: Diligente

Os casais sentem-se injustiçados por terem os seus direitos violados, já que para ter o registo civil da união são obrigados a realizar o matrimónio na Igreja Católica ou através do barlaque. Caso contrário, devem casar civilmente no estrangeiro, a fim de obter o reconhecimento do Ministério da Justiça.

No edifício do Ministério da Justiça, em Díli, Marcelina Costa (nome fictício), 28 anos, contou ao Diligente que tinha ido ao notariado para procurar informação sobre o casamento civil. No entanto, os funcionários disseram-lhe que, apesar de a lei prever esse tipo de união, na prática, a mesma não se concretiza.

Uma funcionária acrescentou que, em Timor-Leste, os casais que querem casar apenas no civil têm de o fazer em outro país e, posteriormente, apresentar o registo no Ministério da Justiça timorense, que o reconhece. Ou a forma mais fácil e comum será casar na Igreja, uma vez que o casamento católico tem efeito civil. Mas e os cidadãos que não são católicos?

O Diligente foi ao notariado do Ministério da Justiça para tentar perceber o motivo para não existir o casamento civil. Uma das funcionárias, que não quis ser identificada, manteve a mesma resposta que deu a Marcelina: “Não temos condições para a celebração do casamento civil, se não quiser casar na Igreja. A única forma é casar civilmente no estrangeiro e fazer transcrição para a República Democrática de Timor-Leste. Até agora só fazemos a transcrição do casamento católico para o casamento civil”.

A posição do Ministério da Justiça é amparada pelo artigo 1475.º do Código Civil que, embora reconheça a existência do casamento nos tipos católico, barlaqueado monogâmico e civil, assegura os efeitos da lei civil apenas para os dois primeiros. Na referida legislação, que data de 2011, não há uma explicação sobre esta condição.

Marcelina lamenta que a lei marginalize uma parte da população, porque o Estado, na realidade, acaba por obrigar as pessoas a saírem do país para que consigam casar civilmente. “E aquelas, que como eu, não têm condições financeiras para viajar?”, questionou, revoltada.

O casamento é o ato ou efeito de casar ou união conjugal e matrimónio. Na natureza jurídica, segundo Soraia Marques, jurista e presidente do núcleo de Timor-Leste do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), organização dedicada ao estudo das relações familiares nos países de língua portuguesa, o casamento define-se como um contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir família mediante plena comunhão de vida, e baseia-se, sobretudo, na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.

Todos têm o mesmo direito perante a lei?

No país onde mais de 90% da população é católica, segundo Soraia Marques, a marginalização de uma parte da sociedade acontece porque existe uma maioria que conhece e aceita o conceito social da família dentro do casamento religioso.

Para a presidente do IBDFAM de Timor-Leste, é preciso que haja consciência de que o direito fundamental “não é sobre a aceitação de maioria”. “Têm de caber todos, ou seja, todos tem o mesmo direito perante a lei”, ressaltou. Para que isso aconteça, enfatizou a importância de haver um maior compromisso por parte dos órgãos de soberania.

O que é certo, para Soraia, é que a Constituição não limita a definição de família. O artigo 39.º da Constituição da República Democrática de Timor-Leste refere que a família é como a célula base da sociedade e o casamento assenta no livre consentimento das partes e na plena igualdade de direitos entre os cônjuges. Destaca ainda que são proibidas todas as formas de discriminação.

“Podemos falar de união de facto. O problema é a pressão social que provém de alguma influência cultural muito enraizada que tenta indicar que só existe uma forma de constituir família, que é efetivamente o casamento na Igreja”, lamentou a jurista.

Segundo a presidente do IBDFAM de Timor-Leste, na área da igualdade de género as políticas públicas têm de ser transversais, o que na realidade não está a acontecer. “No campo do planeamento familiar, nós conseguimos claramente perceber que a intenção é continuarmos a ter casamento homem e mulher e o objetivo é procriar”, afirmou.

Inferiu-se então que é explícito que as políticas públicas que são desenvolvidas nesta área têm uma influência direta do preconceito que existe na constituição da família. “Há várias formas de constituir família, nem toda a gente quer casar e nem precisa de casar”, salientou.

Razões

A jovem Marcelina partilhou com o Diligente o motivo que a levou a querer casar no registo civil. Era uma menina cheia de sonhos, que se foram destruindo à medida que assistia a tratamentos desiguais e injustiças dentro da própria casa. Os problemas dos pais, casados na Igreja Católica, eram resolvidos através do direito costumeiro, resultando sempre na submissão das mulheres. O divórcio, na família de Marcelina, é algo impensável.

Marcelina foi ensinada que era suposto as mulheres serem sustentadas e controladas primeiro pelo pai e, futuramente, pelo marido. E também serem máquinas de produzir filhos, devendo seguir as condições impostas pelos homens, sem direito de tomar decisões, o que, muitas vezes, normaliza abusos físicos e psicológicos.

O Comité da Organização das Nações Unidas para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Cedaw, sigla em inglês), que está, este ano, a avaliar a situação do país, identificou o elevado índice de violência doméstica como um dos principais desafios de Timor-Leste. De acordo com esta comissão, mais da metade das mulheres timorenses, com idades entre os 15 e os 49 anos, já sofreram violência física ou sexual de um parceiro do sexo masculino.

A Constituição, porém, é clara no âmbito da igualdade e género. No artigo 17.º, consta: “a mulher e o homem têm os mesmos direitos e obrigações em todos os domínios da vida familiar, cultural, social, económica e política.” Os cônjuges também exercem os seus direitos e deveres de forma igual.

Num Estado laico como em Timor-Leste, onde a desigualdade de género ainda é uma realidade preocupante e que afeta sobretudo as mulheres. Marcelina é uma das muitas jovens que se vê “obrigada” a casar na Igreja ou a seguir a tradição, e sem poder recorrer à lei, que considera como “uma luz fraca ao fundo do túnel”. Apesar disso, a jovem não desiste: “serei a minha própria luz”, enfatizou.

Fazer valer a Constituição

A jurista Soraia Marques ressaltou que o direito ao casamento é constitucionalmente consagrado, a par, e sem prejuízo do reconhecimento de outras modalidades. “Timor-Leste é um Estado laico, que adota constitucionalmente a família como uma formulação aberta, pelo que não poderíamos nunca restringir este direito à família a determinada religião ou contexto costumeiro, sob pena até de violar a igualdade e diretamente estes princípios constitucionais”, observou.

Corroborando a presidente, Helena Dias Ximenes, assessora jurídica do Parlamento Nacional, lamentou que a legislação relativa ao casamento civil ainda não tenha sido revista até agora. Avançou ainda que, na prática “o casamento civil é apenas para enfeitar a lei, porque não há registo civil”.

Helena Ximenes argumenta que a Constituição prevê o reconhecimento e o respeito por todos os cidadãos independentemente da raça e religião, destacando o artigo 16º (princípios da universalidade e igualdade). Apesar disto, lamenta que o Estado só valide os casamentos católicos, desvalorizando, assim, as outras religiões – o que, a seu ver, demonstra “uma incoerência absurda entre a lei e a realidade”.

Neste sentido, classifica o problema como “inconstitucionalidade das normas” e, uma vez que Timor-Leste é um país democrático e tem várias religiões, solicita ao Parlamento Nacional que dê atenção a esta questão. “Cabe ao Estado criar medidas legislativas e regulamentos adequados ao cumprimento de normas jurídicas constitucionais que possam ‘dar à luz’ os direitos garantidos por lei”.

O sistema patriarcal ainda está muito presente no país. Ainda é muito forte, por exemplo, o entendimento de que as mulheres não podem morar sozinhas sem primeiro casar na Igreja ou ter o conhecimento dos pais. As ações políticas, por sua vez, ainda são muito pautadas pela figura do homem.

Perante estas situações contraditórias entre a realidade e a Constituição, colocam-se perguntas para as quais urgem respostas: será que, em Timor-Leste, todos se sentem efetivamente iguais perante a lei? Como pode um Estado laico não assegurar os efeitos de um casamento civil, sem que haja interferência religiosa?

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