Não raro preferências amorosas pelo mesmo género ou a assunção de uma identidade sexual diferente da biológica (e o que é a identidade biológica?) são consideradas desvios à “normalidade”. As pessoas que optam por uma identidade sexual diferente daquela que a biologia ou a sociedade lhe parece ter imposto, quer por socialização primária (família nuclear ou agregado familiar em proximidade física), quer por socialização secundária (escola, grupos de pares, amigos e sociedade em geral) são discriminadas: mal vistas, ostracizadas, segregadas e acusadas de violar as “leis” de um Deus monoteísta cuja doutrina estaria, supostamente, propalada nos livros sagrados, quer nos cânones da Bíblia cristã, quer no Torah ou no Talmud judeus, quer no Corão islâmico.
Na verdade, nenhum destes três livros sagrados (o Antigo Testamento é parcialmente comum ao Cristianismo e Judaísmo) indicam explicitamente uma identidade sexual diferente como pecado ou desvio divinamente castigável. Quem o faz são as interpretações humanas ulteriores, por vezes centenas ou milhares de anos após a data original da bibliografia sagrada, isto é, são construtos humanos históricos e geograficamente localizados no tempo.
No Antigo Testamento, o livro Génese seria um dos recetáculos mais evidentes através do qual os apóstolos da exclusividade do amor e da sexualidade entre homem e mulher apregoam outras formas de sentimento como sendo desviantes e/ou pecaminosas. Falamos do castigo que Deus terá imposto às cidades de Sodoma e Gomorra. A interpretação humana é que Deus terá bombardeado as duas cidades com uma chuva de fogo, destruindo-as completamente, porque alguns dos seus residentes masculinos quereriam encetar relações homossexuais com homens que, na verdade, eram anjos enviados por Deus. Uma leitura atenta e desapaixonada da Génese nada disto indica. Na verdade, de uma análise objetiva apenas se deduz que a falta de hospitalidade por estranhos estaria na base do castigo divino. Tudo o que ultrapassa esta versão é abusiva e socio-historicamente conveniente.
Se, por um lado, pensarmos que o amor, na sua forma primitiva, é o corolário de um conjunto de reações químicas cerebralmente determinadas, como podem estas ser influenciadas por interpretações fruto de construtos histórico-sociológicos? Trata-se de substâncias químicas milenarmente produzidas pelo corpo humano que, nos seus interstícios mais ontogénicos, biológicos e genéticos, não são muito diferentes de espécies não humanas.
Se, por outro lado, admitirmos que o amor apenas serve a reprodução biológica, na senda das interpretações abusivas dos livros sagrados, como entendemos o amor filial, paternal, fraternal e outros senão como categorias artificiais histórica e socialmente determinadas? O amor de uma mãe por um filho é fundamentalmente diferente do amor de um pai pela filha, do amor entre irmãos, entre um homem e uma mulher, entre os mesmos géneros? Uma mãe que, por amor, dá a vida por um filho ou um pai que “dá o corpo às balas” por uma filha ou a mesma situação entre marido e mulher ou ainda entre irmãos são, na sua quintessência (essência), situações diferentes? Não. O que é diferente é o valor social resultante das conotações históricas e das interpretações dos livros sagrados que lhe atribuímos.
E esta lógica aplica-se, em grande parte, à sexualidade. Esta pode ser resultante do sentimento puro de amor ou apenas de um instinto animal que visa uma satisfação fisiológica. Em qualquer dos casos, envolve uma escolha: um género escolhe um género e não necessariamente o género oposto ainda que a voz popular diga que os opostos se atraem. Porque é admissível que alguém que tutela alguém (um pai ou mãe, um adulto sobre uma criança ou um adulto sobre outro adulto) lhe admita o livre-arbítrio na escolha dos alimentos do pequeno-almoço, da carreira profissional ou de outras opções de vida, mas lhe censure as opções de escolha sexual? Viola-se, de facto, o direito de ser enquanto pessoa, na sua liberdade de escolher, na sua individualidade, na sua singularidade.
O argumento fatalista de que a sexualidade e o sexo servem exclusivamente para a reprodução biológica não cai por terra apenas pelo facto de um dos futuros progenitores não reunir condições fisiológicas para a reprodução? Em última instância e nesta situação, os apóstolos da reprodução como utilidade exclusiva da sexualidade e do sexo condenam os sexuados à abstinência sexual.
Consideremos este exemplo. Se um homem e uma mulher se amam e todos veem nessa relação algo legítimo e conforme as leis de Deus, a circunstância de uma eventual descoberta ulterior de que os dois são primos torna a relação retrospetivamente pecaminosa e indigna? E se o casal tiver procriado? Lança-se a criança à pira expurgadora das chamas? Não foi o amor dos pais algo puro e o bebé um resultado dele?
Durante a recente realização da Jornada Mundial da Juventude, o Papa Francisco repetiu a mensagem de que a Igreja Católica Apostólica Romana não deve discriminar qualquer pessoa com base na orientação sexual (“O amor de Deus é para todos”) em contextos onde a pergunta incluía explicitamente a comunidade LGBTQUIA+. Acresce que foi perentoriamente desmentida pelo Vaticano a ideia de que Sua Santidade teria dito que “a homossexualidade não é um crime, mas um pecado”, erro pelo qual alguns órgãos de comunicação portugueses se retrataram em janeiro passado.
Na verdade, o Sumo Pontífice defendeu que todos os bispos que aceitavam ou defendiam, nos respetivos países, leis que criminalizavam a homossexualidade ou discriminavam a comunidade LGBTQUIA+ (leis tidas por “injustas” por Francisco) tinham de “ter um processo de reconversão”. Contudo, na assunção de que a identidade sexual pessoalmente escolhida pode ser divergente da “normal”, alguns crentes “são mais papistas que o papa”.
É consensual que o livre arbítrio deve ter limites, mas porque deve aquele esbarrar nas opções da identidade sexual alheia? Qual é a razoabilidade da prerrogativa de interferir nas decisões mais íntimas (amor e sexualidade) de uma pessoa na sua individualidade? Nenhuma. O direito à identidade sexual está constitucionalmente preservado e, na sexualidade, por via da opção de género, ninguém deve ser discriminado. Está em jogo o direito de ser ou… o amor não tem género.
Milena Malina é Armanda Miranda. Licenciada e mestre em Educação de Infância. Tem, há cerca de 15 anos, exercido funções em instituições de ensino pré-escolar públicas na zona da grande Lisboa.