Mulheres vítimas de violência doméstica e de um sistema que não as protege

Glória sofreu agressões do parceiro durante maior parte do relacionamento e acabou presa: matou o marido para se defender e ao bebé/Foto: Diligente

Em Timor-Leste, 59% das mulheres são vítimas de violência doméstica, 79% dos homens normalizam as agressões e a justiça falha.

Novembro de 2011, meia-noite, batem à porta. Glória (nome fictício), 24 anos, estava no quarto, com o filho bebé a arder em febre, ao colo, coloca-lhe um pano embebido em água fresca na testa para o arrefecer. Deixa o bebé na cama e vai abrir a porta. O marido entra a cambalear e a tresandar a álcool, senta-se no sofá e a mulher volta para o quarto para amamentar o filho de 10 meses.

Ao som de chuva torrencial, a mulher, agora com 35 anos, contou ao Diligente a história da noite que mudou a sua vida para sempre.

O homem chamou-a, mas ela ignorou-o. Depois de insistir em vão, dirigiu-se, furioso, para o quarto. Separou-a da criança e, com as botas militares calçadas, pontapeou-a, atingindo o bebé nas costelas. “Ficou preto como isto”, explicou a vítima de violência doméstica, enquanto apontava para o ecrã do telemóvel desligado.

Não tinha sido a primeira vez que lhe tinha batido. Meses antes, Glória já havia contado à família que sofria de violência doméstica, procurou as autoridades locais e a Polícia Nacional de Timor-Leste (PNTL). Porém, as queixas só intensificaram a violência do marido e nunca ninguém a protegeu, ao contrário do que esperava.

Depois de separar o bebé da mãe, o homem atingiu-a com pontapés no peito e na cabeça. Arrastou-a para cozinha e agarrando-a pelo cabelo, enfiou-lhe a cabeça num balde com água e pressionou-a.

“Fiz força para retirar a cabeça do balde e conseguir respirar, mas ele empurrou-me outra vez. Eu não queria morrer. Consegui estender o braço até a minha mão alcançar uma faca e esfaqueei-o, ele acabou por morrer”, contou ao Diligente, visivelmente perturbada, mas sem lágrimas, que diz terem secado durante anos a fio de luta e de sofrimento.

Glória contactou diretamente a Polícia e explicou a situação. “Eu sabia que era um caso de legítima defesa”. Infelizmente, aquela noite foi o fim da violência, mas também o princípio de um sofrimento maior.

A professora de Matemática foi encaminhada com o bebé para a esquadra da PNTL e, devido à ferida nas costelas, a criança foi levada para o Hospital Nacional Guido Valadares (HNGV). Em 2012, o caso foi levado a Tribunal e Glória acabou condenada a 15 anos de prisão por homicídio.

A situação chamou a atenção da imprensa e, através de notícias e dos apelos da mãe, a Organização Não-Governamental (ONG) Casa Vida soube do acontecimento e acolheu o bebé.

A ONG ALFELA (Asistensia Legal ba Feto no Labarik, em tétum), que defende os direitos de mulheres e crianças em situação de vulnerabilidade, considerou que a pena foi injusta e solicitou recurso. Além de ter um bebé recém-nascido, Glória era agredida muitas vezes pelo marido e já tinha apresentado queixa. No recurso, porém, o Tribunal considerou que não houve provas suficientes para justificar que a jovem tivesse atuado em legítima defesa.

A ALFELA, então, escreveu uma carta à Organização das Nações Unidas (ONU). Em 2002, Timor-Leste ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW) e, em 2003, homologou a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança.

Anteriormente, a ALFELA havia pedido indulto ao Presidente da República na época, Taur Matan Ruak, mas foi ignorada. Depois de a ONG enviar a carta para a ONU, o Presidente, enfim, concedeu indulto à Glória, que foi libertada depois de ter ficado três anos presa.

Imediatamente após ser solta, a professora de matemática foi ao encontro do filho, na Casa Vida. Durante os anos de reclusão, o menino visitava-a todos os meses para manter o vínculo. Questionada sobre o que sentia enquanto estava na prisão, Glória admitiu sentir ódio: “odeio todos os homens”.

Negligência das autoridades, da comunidade e dos familiares

Glória e o marido conheceram-se e namoraram quando ambos estudavam no ensino secundário. Depois de terminarem o 12º ano e com o sonho de formarem uma família, decidiram casar, em 2008. A jovem tirou o curso de matemática, em 2005, e o homem entrou para o exército. Depois do casamento, o sonho transformou-se num pesadelo. Quase todos os dias, o militar voltava para casa embriagado e batia-lhe.

Em 2010, grávida, o marido nunca se preocupou com ela, chegando mesmo a ameaçá-la com uma arma. Assustada, Glória pensou em separar-se, mas o homem garantiu-lhe que se o fizesse, o bebé ficaria com ele e ela nunca mais o veria. Decidiu, então, aguentar a violência constante do pai do seu filho.

Depois do parto, o marido voltou para casa bêbado e quis bater-lhe na cabeça com um pau. Glória protegeu-se com as mãos, que acabaram por ficar inchadas devido à violência da pancada infligida pelo homem. Intimidada, a mulher decidiu apresentar queixa diretamente à Polícia Militar e o marido sofreu sanções disciplinares na corporação, o que só aumentou a sua raiva.

Os dados da Organização das Nações Unidas (ONU), de 2021, mostram que uma em cada três mulheres no mundo sofreu violência física ou sexual por parte do parceiro. Outro estudo realizado, em 2015, pelo Nabilan, programa da Asia Foundation, refere que 59% das mulheres timorenses são vítimas de violência doméstica por parte do marido, pelo menos uma vez na vida.

Este estudo abarcou mais de mil mulheres que foram escolhidas aleatoriamente e representam 80% da população timorense. A estatística, contudo, não conta com os casos que não chegam até às autoridades, porque muitas famílias escolhem resolver o problema entre elas ou porque as vítimas têm receio de falar.

A negligência das autoridades, muitas vezes, agrava as situações de violência. Fontes a que o Diligente teve acesso contam que os próprios agentes da polícia sugerem resolver o crime entre as famílias e não avançar com a queixa formal.

Não foram apenas os sistemas judicial e policial que traíram Glória. A comunidade e até os próprios familiares também a discriminaram. Durante anos de violência doméstica contra a mulher, parentes e as autoridades locais permitiram que o agressor continuasse a atacá-la, apesar dos pedidos de ajuda.

Glória lamentou nunca ter sido protegida e defende que a mudança de mentalidade deve começar em casa. A professora foi considerada culpada tanto pelos seus familiares como pelos do homem. “Os pais devem educar os filhos para respeitarem as mulheres”, afirmou a professora.

Mulheres e crianças timorenses são as que mais sofrem por viverem numa sociedade patriarcal e conservadora, vendo os seus direitos desrespeitados diariamente e as suas queixas desvalorizadas.
O estudo da Nabilan refere que 79% da população timorense consideram que o homem pode bater na sua mulher. Esta normalização resulta em pouca divulgação, menos denúncias e atendimento demorado dos casos deste tipo.

O barlaque (dote ou valor atribuído à mulher e que o homem deve pagar para poder casar com ela), contribui para a violência contra as mulheres, de acordo com os dados deste estudo, mas há outros fatores que incitam o homem a ser violento. Por exemplo, se uma mulher não cozinha ou não cumpre as tarefas domésticas, alguns homens sentem-se no direito de bater na esposa, como forma de a “educar”, revela a Nabilan.

Outras questões que contribuem para a prevalência da violência doméstica em Timor-Leste estão relacionadas com circunstâncias históricas e económicas, segundo o psicólogo da Casa Vida, Moisés Xavier de Abril.

Há uma grande probabilidade de um homem que tenha sido agredido ou que tenha assistido a episódios de violência doméstica quando era criança, ser violento no futuro. Problemas financeiros também podem motivar episódios de violência, porque a sociedade timorense, extremamente patriarcal e conservadora, tende a exigir que sejam os homens a sustentar a família.

O psicólogo reconhece que é necessário haver mais informação. “Há muitos homens que ainda não sabem que é crime bater na mulher, ainda acreditam que têm o direito de o fazer, por que as mulheres lhes pertencem, uma vez que pagaram o barlaque para se casarem com elas”, observou.

A “menina- fantasma

Maria Pereira, mais conhecida como Alita, tinha 7 anos e frequentava o 2º ano do ensino básico em Baucau quando os pais a mandaram viver com o tio, tornando-se na única filha de 11 irmãos a ser separada dos pais.

Depois de um ano e meio a viver com familiares e sem nunca ter recebido uma única visita dos pais, as saudades apertaram e a menina foi a casa para os ver. A residência, porém, estava vazia, porque todos tinham ido a Lafteri, suco do pai. Um irmão encontrou-a e levou-a até os pais. A menina voltou a viver com a família na montanha.

Em Lafteri, porque a escola ficava muito distante de casa, a menina não conseguia ir às aulas, mas queria estudar. Para os pais, era indiferente que fosse à escola ou que faltasse. Alita sentia que os progenitores não a amavam, por isso fugiu para Baucau em busca de ajuda. No caminho, porém, encontrou um autocarro para Díli e entrou. Sabia que a sua avó morava na capital e esperava que ela a ajudasse. Tinha 8 anos e fez o percurso aterrorizada com o desconhecido.

Alita chegou, à tarde, ao então terminal de Díli, em Bidau-Santa Ana. Ficou na berma da estrada, sem saber para onde ir. Apenas sabia que a avó vivia em Manleuana, mas deconhecida o trajeto para chegar até lá. Perdida, foi abordada por uma estranha.

“Uma senhora encontrou-me e prometeu levar-me até à minha avó, no entanto, levou-me para a sua casa, no Bairro-Pité”, contou, com lágrimas contidas no olhar. A senhora disse que já era tarde para a levar à avó, mas prometeu que, no dia seguinte, o faria. Na manhã seguinte, a senhora não cumpriu a promessa. Alita ficou naquela casa durante três meses, onde era bem tratada e brincava com o filho da mulher.

Em novembro de 2010, a senhora levou-a para Ataúro, onde ficou em casa dos filhos dela. Alita acabou a tomar conta das crianças que viviam na mesma moradia e a fazer as tarefas domésticas. O sonho dela era ter um lar, uma família e amor, contudo, acabou por ser explorada.

Uma agente da PNTL, que morava em Ataúro, sobrinha da senhora que abandonou Alita, mais uma vez, à sua sorte, ao ver a menina a ser tratada como uma empregada, decidiu levá-la para sua casa. Ao ouvir que Alita vivia com a sobrinha, a senhora foi a Ataúro para a buscar.

Quando chegou a casa da sobrinha, gritou e zangou-se com a criança. A sobrinha protegeu Alita e pediu que a mulher se acalmasse e não batesse na menina. “Eu é que a encontrei. Tenho direito de lhe bater”, ripostou a senhora.

Acionados pela agente da PNTL, agentes da polícia foram até Ataúro buscar a menina. Ao ser resgatada, a criança foi encaminhada para a Casa Vida, com a promessa de ser levada para Baucau no dia seguinte. Outro “murro no estômago” para a criança assustada: os agentes da PNTL nunca mais voltaram para a buscar.

A Casa Vida, contudo, acolheu-a e ajudou-a a frequentar a escola. Lá, Alita foi vista, reconhecida e verdadeiramente aceite, deixando de ser uma “menina-fantasma”. Enquanto viveu na sede da ONG, terminou o ensino secundário, aprendeu a costurar, a pintar, a usar o computador, a fazer manicure e pedicure. Atualmente, com 21 anos, produz peças de artesanato (brinquedos, brincos e carteiras) para vender na loja da Casa Vida e mora numa casa arrendada.

Alita saiu de casa quando tinha 8 anos e deambulou até ser acolhida pela Casa Vida, que lhe deu a oportunidade de estudar e de aprender um ofício. Hoje, é artesã na loja da ONG e sonha ser dona do próprio negócio/Foto: Diligente

Outras batalhas

Glória e Alita ainda lutam contra a rejeição. A família do marido de Glória e ela, a pedido e sob a orientação da Casa Vida, têm trabalhado para manter uma boa relação, sobretudo pela necessidade de o filho não perder os laços com o lado paterno. Durante este processo, as famílias reconciliaram-se.

No entanto, Glória, certa de que ainda é odiada por alguns familiares do marido e por receio de represálias, prefere não revelar a sua identidade. A mulher também confidenciou à equipa do Diligente ter medo de sofrer retaliações com a divulgação desta reportagem, contudo, achou importante partilhar a sua história como um alerta “para que outras mulheres não passem pelo mesmo”.

Depois de ter perdido os três primeiros anos da vida do seu filho, Glória precisou de reconstruir a relação com ele. Contar o que aconteceu a uma criança de 5 anos, que perdeu o pai quando tinha apenas 10 meses, foi muito difícil, porém, sentiu necessidade de o fazer para evitar mal-entendidos e que a família do marido contasse uma versão deturpada à criança.

Para isso, Glória relatou a história como se não fosse verdade e com personagens diferentes. Inicialmente, o menino ficou zangado com o pai, noutros momentos, irritou-se com a mãe. Quando Glória resolveu confessar que esta era a sua história, pediu desculpa ao filho e pediu que ele não odiasse os pais.

Hoje em dia, Glória vive com o filho numa casa arrendada, continua a trabalhar na Casa Vida como funcionária e a ensinar matemática. No futuro, sonha ser advogada ou juíza e lutar pela justiça do país, que ainda considera estar aquém do que seria desejável.

Já Alita, quando reencontrou a família depois de sete anos de afastamento, os parentes surpreenderam-se, pois julgavam que ela estivesse morta. Enquanto esteve longe, nenhum dos familiares a procurou.

Segundo a cultura timorense, quando alguém desaparece ou quando faz algo que é contra os princípios da família, realizam o ritual “duku bikan” (em português, significa literalmente virar o prato), cerimónia que simboliza a “morte” dessa pessoa. Para os familiares, a pessoa cujo “prato foi virado” “morreu”, ou seja, deixou de pertencer à família ou foi rejeitada por esta.

Alita continua a viver em Díli e a trabalhar na Casa Vida, onde produz e vende artesanato. Terminou o ensino secundário e quer continuar a estudar para poder aprofundar o seu talento e abrir o seu próprio negócio. Luta diariamente para ser independente e ter uma carreira.

No futuro, gostaria de ter a sua própria família. Por agora, as pessoas da Casa Vida são a sua família, mas de coração, que, na realidade, é aquela que importa, perante a rejeição da família de sangue.

A Casa Vida é um lugar de acolhimento de mulheres e crianças vítimas de abuso sexual e violência com base no género. Fundado em 2008, o espaço já acolheu mais de 500 vítimas, sendo mais de metade relacionadas com casos de abusos sexuais. A sua fundadora, Simone de Assis, decidiu criar este espaço porque viu que, em Timor-Leste, as vítimas de violência não têm muito apoio, principalmente as mulheres e crianças.
Uma das premissas da ONG é garantir que todas as pessoas atendidas possam ter formação profissional e estudar.
A educação é um direito básico dos seres humanos. Em Timor-Leste, 30,6% das crianças, com idades compreendidas entre os 3 e os 12 anos não frequentam a escola e 4% abandonaram os estudos, de acordo com os dados mais recentes da Direção Geral de Estatística (DGE) de Timor-Leste.
Este problema advém não só da pobreza extrema de muitas famílias timorenses, que acabam por obrigar as crianças a trabalhar, mas também da falta de consciência dos cidadãos sobre a importância da educação.

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  1. As Histórias e experiências são consideradas traumáticas que todos os timorenses devem considerar como assunto importante a lutar pelos direitos e deveres das pessoas vulneráveis nessas situações de violência e abusos. Tem que conscientizar e e educar as pessoas timorenses a mudar a mentalidade e enxergar a cultura de uma forma que respeita os valores e princípios de todas as pessoas, de forma particular, as mulheres e crianças , na nossa atualidade. Hoje, depois de uma conversar com um funcionário do Tribunal Distrital Díli, disse-me que a maioria dos casos atendidos é em julgamento é a violação doméstica. Isso nos convida a dar mais atenção ao assunto. Dizer ao governo e aos ONGs para promover programas de conscientização e da luta pela vida, e rejeita qualquer tipo de violência.

  2. A estatística diz tudo sobre o panorama em Timor. É preciso que o próprio Estado invista em educação e ações com visibilidade para sensibilizar as pessoas para a brutalidade desta sociedade. Bom jornalismo a denunciar esta cultura da violência é um passo importante. Continuem. Este trabalho que vocês fazem é valioso.
    Parabéns.
    Repito o comentário do Élvis: é urgente acompanhamento psicológico para as vítimas.

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