Morte sem regras: Campas à porta de casa, cemitérios cheios e caóticos

Os timorenses ainda enterram os seus entes queridos ao lado de casa/Foto: Diligente

Quinze anos depois da aprovação do Decreto-Lei sobre Higiene e Ordem Públicas que proíbeenterrar defuntos ou animais mortos em locais fora dos determinados pela Administração”, em Timor-Leste ainda se fazem campas ao lado de casa. Os familiares querem ter os mortos por perto e alegam que os cemitérios estão sobrelotados .

À porta de casa, mesmo coladas à varanda de um lado e às paredes do outro, flores. Vasos e cestos com flores de várias cores, colocadas estrategicamente no retângulo pintado de branco. Outras flores espalhadas nesse mesmo espaço dão ainda mais colorido ao cenário. Atrás, mais vasos, mas desta feita com plantas. Cerca das das 18h, um idoso sai. Prepara três velas que coloca atrás e uma outra maior dentro do retângulo. Não é num canteiro de um jardim que o homem deixa as velas. É na campa onde foi enterrada a mulher, cuja fotografia surge ao centro apoiada na cruz com as palavras do costume: “Aqui jaz…”. E, atrás desta, mais uma sepultura . Duas campas da família, uma delas apenas a centímetros de casa.

A irmã de Maria (nome fictício) foi aqui enterrada, há alguns anos, em frente da habitação, na área de Mascarenhas, em Díli. A família diz que pediu autorização à Autoridade Municipal de Díli (AMD) para o fazer, porque a mãe queria “sentir-se mais perto da filha”. “Depois de verem onde a localização da casa, os delegados da autoridade deram permissão verbal para o enterro e não alertaram para uma possível poluição da água subterrânea”, conta.

É aqui que começa o pingue-pongue entre as autoridades sobre as responsabilidades. A Presidente da AMD, Guilhermina Saldanha, contradiz a jovem: “Há famílias que vêm pedir autorização, mas nunca demos. Algumas delas, quando explicamos o possível impacto para a saúde, cooperam, mas outras enterram, ainda assim, os falecidos em casa”.

A responsável aponta aos chefes de suco a responsabilidade de fiscalizarem , divulgarem informação junto dos cidadãos e informarem a AMD sobre todos os que não cumprem a lei para que estas famílias sejam notificadas. “Até agora, só notificámos duas famílias enlutadas . Como não nos avisaram, provavelmente não há sepulturas em casa”, satiriza.

O pai de Ana (nome fictício) morreu em 2014 e a família comunicou ao Ministério da Solidariedade Social e Inclusão que queria fazer o enterro ao lado de casa. Conseguiu autorização, com a condição de ser provisório, devendo depois a família trasladar o corpo para o cemitério, quando saísse um despacho do Governo sobre a proibição de sepultar em casa. No entanto, o Decreto-Lei fora publicado seis anos antes de o pai da jovem morrer e a família ainda não recebeu qualquer notificação para fazer a trasladação.

A presidente da AMD alerta, contudo, que o ministério não tem esta competência, porque só as autoridades dos municípios podem tomar esta decisão. O Decreto-Lei de 2016 relativo ao estatuto das administrações municipais confirma que compete ao administrador municipal “autorizar o enterro de cadáver em cemitérios públicos e ceder terreno cemiterial necessário para esse efeito”.

Independentemente da confusão de competências, para as famílias, enterrar os familiares perto da casa significa manter a relação com os falecidos. É o caso de Ana: “Todas as tardes, juntamo-nos para acender velas e fazer orações na campa do pai, porque o amamos muito. Além disso, viveu muito tempo neste bairro e não queremos que durma longe de casa”.

Ainda há mais campas no jardim de Ana, em Ai-Mutin, Díli. O seu irmão, que perdeu dois filhos num aborto espontâneo, decidiu enterrar ali os fetos por os poder visitar todos os dias e acreditar que o avô os “podia guardar no outro mundo”.

Com as campas em casa, as famílias rezam todas as noites e sentem-se conectadas com os falecidos/Foto: DR

O chefe do suco de Mascarenhas, Rui Ilídio de Araújo, admite  que deu autorização a habitantes do seu suco para fazerem enterros em casa, desde que as campas ficassem dentro de muros, longe da via pública ou dos vizinhos e a, pelo menos, cinco metros de furos de água.

A este propósito, a Presidente da AMD sublinha o impacto para a saúde de corpos em decomposição ao lado de habitações: “Se tiverem um furo por perto, possivelmente a água que consomem está contaminada”. Apela, por isso, a que os familiares enterrem os entes queridos nos cemitérios.

A Organização Mundial de Saúde alerta para a contaminação de água proveniente dos corpos em decomposição. Sabe-se também que os cadáveres produzem, num período situado entre seis meses a três anos, cerca de 30 a 40 litros de necrochorume, um líquido que contém agentes patogénicos. Dependendo da forma como os corpos são enterrados, este fluido penetra no solo e contamina os lençóis freáticos, causando problemas gastrointestinais ou doenças como o tétano e febre tifoide.

Em casa de Maria, a família fez um furo a aproximadamente dez metros da sepultura. Usam a água para tomar banho e lavar a roupa. “Com o passar do tempo, os cadáveres podem trazer impacto negativo para o ambiente”, reconhece a jovem.

Também Ana admite que não pensaram no facto de a decomposição de corpos poder afetar a água. Argumenta, contudo, que as sepulturas do pai e fetos estão a cerca de 20 metros da perfuração, que só começou a dar água aos 30 metros. Acredita, por isso, que o lençol freático não foi afetado.

Da distância aos cemitérios sobrelotados

A distância a que os cemitérios ficam da população pode também constituir-se como um convite ao enterro nos jardins de casa. A família de Estevão Soares, 57 anos, mora na aldeia de Mota-Ulun, no suco de Lahane, situada no topo da montanha, na margem da ribeira, que significa literalmente ‘cabeça da ribeira’.

A esposa deste chefe de aldeia morreu em 2012, quando se dirigia a uma loja do outro lado da ribeira. Foi arrastada pela forte corrente causada pela chuva intensa, que impossibilitou igualmente o transporte do corpo até aos cemitérios no centro da cidade. Estevão Soares enterrou a mulher em casa, a cerca de 300 metros da ribeira.

Só soube da proibição de enterro dos corpos fora dos cemitérios em 2020 e concorda que enterrar os mortos fora dos lugares apropriados polui a água.

A distância não ajuda e a sobrelotação dos cemitérios é um dos argumentos de quem enterra os mortos em casa. A mãe de Maria, que morreu recentemente, foi enterrada, também com autorização, ao lado do portão de casa. Além de diminuir a dor da perda, o pai defende que não havia espaço nos cemitérios, onde, segundo o idoso, já surgem campas nos intervalos umas das outras.

Maria concorda com o pai e lamenta as irregularidades do tamanho dos sepulcros. “Quem tem capacidade financeira faz grandes jazigos, ocupando mais espaço. Na Indonésia, todas as sepulturas são iguais em modelo e medida. O Governo pode exigir que retiremos as campas de casa, desde que nos dê um espaço para colocarmos os restos mortais”.

Timor-Leste não regula a medida das sepulturas nos cemitérios, gerando-se uma competição para ver quem faz a maior campa. O cemitério de Santa Cruz foi o primeiro criado em Díli e assistiu ao massacre de 1991. Já não haverá mais enterros no local devido à sobrelotação.

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O Cemitério da Santa Cruz, já cheio, denuncia as disparidades na dimensão das campas /Foto: Diligente

Também o mais recente cemitério de Becussi está quase cheio com os primeiros sepulcros, grandes e espaçados. As primeiras linhas do cemitério estão organizadas, mas, atrás da capela do cemitério, as campas estão quase unidas e já estão a escalar a montanha.

Segundo a presidente da AMD, o cemitério de Becussi ainda tem um espaço oferecido aos missionários, que pode albergar cerca de 100 campas. Está ainda a ser construído um cemitério público em Metinaro, com aproximadamente 15 hectares, onde poderão ser enterrados mais de 500 mortos.

Caso Becussi fique cheio antes da conclusão de Metinaro, a Autoridade Municipal prevê uma área de emergência de 150 metros quadrados deste futuro cemitério, uma infraestrutura que pode estar pronta em breve, faltando só o muro para proteger o espaço dos animais.

Para evitar a sobrelotação do futuro cemitério, a autoridade municipal vai criar algumas regras: “As medidas permitidas para cada campa serão de cerca de 2 metros por 90 centímetros, dependendo do tamanho do corpo, que pode ficar ali 5 anos. Os restos são depois transportados para um ossuário”.

O chefe do suco de Mascarenhas lembra, contudo, que o cemitério de Becussi já estabeleceu a trasladação dos restos para o ossuário cinco anos após o enterro. O líder local mostra-se indignado com o incumprimento desta regra e considera que leva à falta de espaço e ao alargamento do cemitério de Becussi até à colina da montanha.

“O cemitério é utilizado desde 2015, mas as campas com mais de cinco anos mantêm-se. O ossuário também ainda não existe. Só criam regras, mas não condições”. Defende que os cidadãos não podem cumprir a lei e não devem ser sancionados com coima, porque as autoridades não retiram as campas. “O problema é do Governo”, sublinha.

O negócio da morte

O chefe de suco acusa ainda os coveiros de se aproveitarem da falta de espaço e da competição pelas maiores campas. Para Rui Ilídio, a Autoridade Municipal não está atenta ao cemitério e deixa que os coveiros, a troco de dinheiro, façam covas de forma irregular. “Os coveiros faziam antes covas gratuitamente com medidas iguais e sepulturas alinhadas. Porém, desde 2018, quando as campas começaram a ficar desorganizadas por falta de espaço, passaram a cobrar”.

Confidenciou ainda ao Diligente que os coveiros pedem, alegadamente, às famílias por volta de 700 dólares. Àquelas com mais possibilidades económicas são pedidos mil dólares, o que lhes permite fazer “uma cova à sua medida, muitas vezes enorme”. “Os coveiros são oficiais da Autoridade Municipal de Díli. Pelo menos cinco pessoas partilham o dinheiro. Quem os deve regular é a presidente da Autoridade”.

Acredita ainda que, em breve, os coveiros vão acabar por desmantelar a “Cruz Grande”, reservada para pessoas que, embora não tendo campas no cemitério, recorrem ao espaço para rezar pelos mortos.

O Governo deve prestar mais atenção a Becussi e ao novo cemitério de Hera para pôr fim ao negócio nos cemitérios, recomenda o chefe de suco. Para Rui Ilídio, caso se mantenha este cenário, Timor-Leste não terá espaço para os seus mortos e tem de recorrer à cremação. “E não temos como não aceitar isso”. Perante este cenário, é caso para perguntar: Para onde vão os timorenses quando morrem?

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Ver os comentários para o artigo

  1. Esta reportagem impressionou-me. Até para os mortos é difícil em Timor. O desrespeito pelas regras e pelas noções básicas de higiene. Um corpo a centímetros de casa? O caos nos cemitérios, os coveiros que cobram dinheiro. Para quem gosta de Timor dói ler estes textos. Mas obrigado Diligente por todo o vosso trabalho. Espero que muitos timorenses leiam, comecem a refletir e alguma coisa mude.

  2. Não sei o que se passa com o meu pais. Não foi o país que sonharam os nossos herois. Porque as pessoas não cumprem e não obrigam cumprir as regras? É preciso mudar a mente. Não pode continuar desta forma. Eu agradeço ao Diligente pelo esforço de escrever estas histórias. Também agradeço por me ajudarem a melhorar o meu português. Todos os dias eu aprendo novas expressões.

  3. A educacao e o mana que qualquer cultura necessita, e como o oxigenio que respiramos.
    Qualquer “cultura” quando educada, nao se deixa levar pelas aldrabices dos politicos e seus comparsas.
    Qualquer “cultura” quando educada, e como ter um revestimento de saber, fica mais inteligente e sabedora dos seus direitos humanos e de cidadaes.
    A educacao e a melhor “cultura” de qualquer povo. A educacao nao se come nem se bebe, mas alimenta o espirito e o nosso ser.
    A educacao e como uma “armadura” que nos protege na luta quotidiana.
    A educacao e incolor mas pinta o cerebro de coragem com uma cor invisivel de fazer inveja.
    A educacao e inimiga dos politicos de meia tijela.
    A educacao nao tem fronteiras.

  4. Não faltam regras em Timor, mas falta quem cumpre. A maioria dos timorenses não compreendem o impacto de um morto perto de casa.

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