Memórias do 12 de Novembro: como é que os sobreviventes do Massacre de Santa Cruz escaparam à morte?

Monumento de 12 de Novembro em Motael/Foto: Diligente

A propósito do 32.º aniversário do trágico episódio que marcou para sempre a história de Timor-Leste, o Diligente conversou com alguns homens e mulheres que vivenciaram momentos de terror no fatídico dia.  

Há exatamente 32 anos, mais de 271 timorenses foram mortos a tiro por militares indonésios no cemitério de Santa Cruz, em Díli. Outras 278 pessoas ficaram feridas. Os cidadãos participavam numa manifestação/procissão em homenagem ao jovem Sebastião Gomes, que lutava pela independência do país, mas que também fora assassinado pelas forças indonésias dias antes.

A brutalidade do trágico episódio foi registada pelo jornalista britânico Max Stahl, que escondido entre as campas, gravou toda a ação. Conhecido como Massacre de Santa Cruz, o acontecimento chocou o mundo. Através de uma intermediária, o profissional conseguiu enviar o material para a Europa e, quatro dias depois do acontecimento, as imagens foram exibidas por uma emissora holandesa. A partir daí, a comunidade internacional passou a pressionar a Indonésia para reconhecer a soberania de Timor-Leste – que veio a conseguir a independência a 20 de maio de 2002.

Com uma diferença de 30 anos entre um facto e outro, Sebastião Gomes e Max Stahl faleceram na mesma data: 28 de outubro.

Já alguns dos sobreviventes do Massacre de Santa Cruz ainda continuam a residir em Díli. O Diligente conversou com os homens e mulheres para saber como foi que escaparam à morte, como vivem hoje em dia e o que pensam sobre a situação atual do país.

“Dispararam contra a pessoa que estava atrás de mim e eu fiquei quieto enquanto sentia o corpo dele a morrer em cima do meu”

Vasco Amaral Miguel, 53 anos, funcionário público, pai de cinco filhos/Foto: Diligente

“Antes do dia 12 de Novembro, já circulava informação entre os jovens de que todos tinham de participar na missa na Igreja de Motael, mas não para fazer a manifestação. Tinha 19 anos e andava no segundo ano do ensino pré-secundário, mas naquele dia não fui à escola. Fui à missa dos 16 dias da morte de Sebastião Gomes. Na missa, só participaram jovens. Saímos da Igreja para a manifestação, os que estavam na primeira fila, levavam um estandarte a dizer viva Timor-Leste, Viva Xanana [Gusmão], as bandeiras da FRETILIN e a bandeira Nacional de Timor-Leste. No percurso de Motael até Santa Cruz, houve conflitos entre polícia e manifestantes.

Nas proximidades da sede da Polícia de Estância, o atual centro cultural indonésio, começaram os problemas.  Ao chegar ao cemitério, muitas pessoas estavam à entrada. Os militares surgiram com armas numa camioneta militar. Os jovens continuavam a gritar viva Timor-Leste, Viva Xanana. Passado pouco tempo, começaram a disparar contra nós. Corremos para dentro do cemitério, mas antes de entrarmos, dispararam contra a pessoa que estava atrás de mim e eu fiquei quieto enquanto sentia o corpo dele a morrer em cima do meu. Outras pessoas, que foram atingidas por balas, morreram em cima de mim. Quando o tiroteio parou, saí e corri para o cemitério. O meu corpo estava coberto de sangue. Não consegui sair do cemitério, porque os militares indonésios já nos tinham cercado e mandado fazer formatura, mulheres de um lado e homens do outro. Mandaram-nos tirar a roupa e apenas ficar com a roupa interior. Começaram a bater-nos com as armas e a dar bofetadas.

Queriam saber de onde vínhamos e quem é que nos mandou participar na manifestação. Depois de transportarem todos os mortos, levaram-nos para a sede da polícia em Comoro. Como castigo, obrigaram-nos a estar sentados debaixo do sol durante dias, sem comer nem beber e continuaram a bater-nos. Finalmente, acabaram por libertar aqueles que não conheciam, como era o meu caso.

Depois de 21 anos de restauração da independência, o Timor-Leste de hoje só beneficia as elites. O povo continua a sofrer. Pior do que isso, aqueles que antes não queriam que Timor-Leste fosse independente, hoje em dia, gozam, porque ocupam uma boa posição no Estado. Muitos dos nossos colegas não têm diploma, porque deixaram de estudar para lutar pela independência, porque a propaganda da altura dizia que quem lutasse, teria o futuro garantido, mas, na realidade, agora estão desempregados.”

“Quando começaram os disparos, não sabia para onde fugir, por isso, rezei”

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Jacinto da Costa, Secretário da Administração do Município de Lautém, 55 anos, pai de cinco filhos/Foto: Diligente

“Envolvi-me na manifestação no dia 12 de Novembro, quando tinha 23 anos. Naquele momento, andava no Seminário de Nossa Senhora de Fátima Lahane, depois mudei-me para o Seminário de Nossa Senhora de Fátima (SENOFA), em Balide. Por estar no Seminário, não podia ir à missa fora, neste caso em Motael, a não ser que pedisse licença antes. Então, quando os meus amigos saíram da missa e fizeram a manifestação, eu e os meus colegas seminaristas saímos do Seminário para nos encontrarmos com eles, à frente do estádio Municipal de Díli, e juntos fizemos a manifestação. Durante o caminho, já houve provocações entre manifestantes e polícias e militares indonésios, à frente da sede da Kepolisian Negara Republik Indonesia POLRI, em português, Polícia Nacional Indonésia (atual embaixada da Indonésia). Quando chegamos a Santa Cruz, os militares já tinham vindo de Taibessi para esperarem por nós.

Já lutávamos há muitos anos, mas o mundo não sabia, porque não havia jornalistas a transmitir esta informação, ou se o fizessem, eram censurados ou ameaçados da morte. Quando começaram os disparos, não sabia para onde fugir, por isso, rezei. Depois, consegui sair do portão e corri para a escola de São José, em Balide e depois para o Seminário de Lahane. No dia seguinte, os militares capturaram-me e levaram-me para o hospital de Lahane, onde estavam feridos graves, para me controlar. Tive sorte, porque os padres seguiram-nos e falaram com a polícia para me libertar.

Os jovens de hoje não continuam a luta dos jovens de Loriku Aswain. Eles defendem os seus grupos de artes marciais para se matarem uns aos outros. Por isso, o Governo tem de criar leis rigorosas para regulamentar estes grupos e investir mais na educação de forma a que os jovens possam ter competências para desenvolver a nação.”

“Tivemos muito medo, mas conseguimos subir para o muro e sair do cemitério. Graças a Deus, os militares indonésios não nos viram”

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Paula Faria de Sousa, dona de casa, 49 anos, mãe de 7 filhos/Foto: Diligente

“Naquela altura, ainda frequentava o que equivale atualmente ao sétimo ano do ensino básico. Tinha 14 anos. No dia 11 de novembro, eu e cinco colegas juntámos dinheiro para pagar o táxi para irmos à missa de 16 dias de Sebastião Gomes. Fomos primeiro à escola, deixamos os cadernos lá e fomos à missa em Motael. Depois da missa, levámos flores a Santa Cruz, não sabíamos que havia uma manifestação e muito menos que ia haver um tiroteio.  Tive muito medo, porque começou a haver conflitos entre os jovens e os polícias e militares indonésios, à frente do estádio de Díli, em Caicoli.

Quando aconteceu o tiroteio, estávamos dentro do cemitério. Muitos colegas morreram, outros ficaram feridos, muitos gritavam com dores. Tivemos muito medo, mas conseguimos subir para o muro e sair do cemitério. Graças a Deus, os militares indonésios não nos viram. Corremos até Audian e antes de chegarmos à Clínica de Foho Osan Mean, pedimos para nos escondermos nas casas da comunidade, mas não permitiram. Então, decidimos separarmo-nos. Fugi das milícias até conseguir chegar a casa, à noite.

O Timor-Leste de hoje já alcançou a liberdade, mas ainda há muita população que sofre devido à falta de uma educação de qualidade e à pobreza. As pessoas vulneráveis não gozam dos seus direitos, por exemplo, muitas crianças não vão à escola, porque têm de trabalhar para ajudar a família. Isto acontece, porque os políticos só pensam em distribuir os bens entre eles. Espero que este novo Governo não faça mais do mesmo.”

“Libertaram algumas mulheres, mas outras foram levadas para serem violadas”

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Francisca Ataíde Carvalho, 55 anos, dona de casa, mãe de cinco filhos/Foto: Diligente

“Quando participei na manifestação, tinha 22 anos. Depois de terminar o ensino secundário, decidi trabalhar na frente clandestina para ajudar as Forças Armadas da Libertação Nacional de Timor Lorosa’e (FALINTIL). Por isso, já sabia que ia haver uma manifestação. Naquela altura, todos os jovens tinham coragem, porque queriam que Timor-Leste fosse independente. Tínhamos de fazer alguma coisa para denunciar a opressão que se vivia.

No dia 11, recebemos informação de que no dia 12, todos os jovens deviam participar na missa, na Igreja de Motael, e depois na manifestação.

Quando chegamos a Santa Cruz, todos gritámos viva Timor-Leste. Passados uns minutos, começaram os disparos, eu corri para o cemitério e escondi-me ao lado das campas. Os militares cercaram-nos e detiveram-nos. Separaram homens para um lado e mulheres para outro. Até às 16h, libertaram algumas mulheres, mas outras foram levadas para serem violadas. Muitas mulheres foram capturadas quando tentaram fugir pelo muro. Aos homens, bateram com as armas, deram bofetadas e depois levaram-nos para a sede da polícia.

Agora que somos independentes, peço ao Governo para criar leis que erradiquem todas as formas da violência contra os direitos humanos, principalmente contra as mulheres e as pessoas vulneráveis.”

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  1. O meu maior apreco e carinho por todos vos.
    Aos meus olhos voces sao verdadeiros herois.
    Homens e Mulheres de Timor com vontade ferrea e de grande coragem!
    Bem Hajam

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