Maria Fonseca: “A falta de vontade política e os preconceitos culturais perpetuam a desigualdade de género em Timor-Leste”

Atualmente, Maria Fonseca trabalha a meio tempo no Jurídico Social Consultoria (JU,S) para a implementação do programa “Juntos pela Igualdade”, que visa combater o assédio sexual na administração pública/Foto: Diligente

Em entrevista ao Diligente, a ex-secretária de Estado para a Igualdade e Inclusão (SEII) refletiu sobre os obstáculos que as mulheres timorenses enfrentam para verem os seus direitos respeitados.

Em Timor-Leste, país predominantemente patriarcal e conservador, persistem questões de violação dos direitos humanos, especialmente dirigidas às mulheres, como: violência de género, desigualdade no acesso à educação, disparidade salarial, sub-representação em cargos de liderança, acesso limitado à saúde reprodutiva, discriminação legal e cultural e casamento precoce.

Para combater estes problemas, Maria João da Fonseca Monteiro de Jesus decidiu dedicar-se à promoção da igualdade de género. Iniciou a sua carreira na Secretaria de Estado para a Promoção da Igualdade (SEPI) em 2007 e, posteriormente, ocupou o cargo de secretária de Estado para a Igualdade e Inclusão (SEII), de 2018 a 2022.

Natural de Díli, licenciou-se em gestão na Universidade Católica Widataria em Malang, Indonésia, em 1998, e obteve o mestrado em negócios na Austrália, em 2003.

Atualmente, trabalha a meio tempo, na Jurídico Social Consultoria (JU,S), onde colabora na implementação do programa “Juntos pela Igualdade”, que visa combater o assédio sexual na administração pública. Além disso, está envolvida em uma pesquisa sobre a eficácia da alocação orçamentária para a promoção da igualdade de género e inclusão social.

“As nossas práticas culturais marginalizam e discriminam as mulheres”

Como percebe a igualdade de género em Timor-Leste e quais os principais desafios que as cidadãs enfrentam atualmente?

Quando falamos de igualdade género, não só diz respeito à igualdade de direitos entre homem e mulher, mas também dos direitos da Comunidade LGBTQIA+. Em 2002, estabeleceu-se um gabinete de apoio à promoção da igualdade em Timor-Leste sob a administração das Nações Unidas. Em 2007, no IV Governo Constitucional, estabelecemos a Secretaria de Estado para a Promoção da Igualdade (SEPI). Então, os Governos seguintes continuaram a trabalhar nestes assuntos e criou-se a Secretaria de Estado para Igualdade e Inclusão (SEII), que no IX Governo, passou a chamar-se Secretaria de Estado para Igualdade (SEI). Este órgão é uma máquina estatal que trabalha para defender e coordenar esforços para promover a igualdade de género e inclusão social, mas é claro que as mulheres ainda enfrentam discriminação. As nossas práticas culturais marginalizam e discriminam as mulheres.

Em Timor-Leste, as mulheres ainda precisam de pedir autorização ao marido para ter acesso a consultas de planeamento familiar. A política que fundamenta essa medida contraria princípios dos direitos humanos e foi implementada pelo VIII Governo. Como avalia esta questão?

Naquele tempo, quando a lei do Planeamento familiar foi levada a discussão, a SEII opôs-se. Sempre defendemos que todas as pessoas têm o direito de decidir sobre o seu corpo, mas quando já são casados, penso que as decisões têm de ser tomadas a dois e deve haver concordância entre os parceiros, sem nenhum ser subjugado. Muitas pessoas pensam que o marido que tem de decidir em nome da mulher, em termos de planeamento familiar, mas isto está errado. Cada ser humano é livre para decidir sobre si, sobre o que quer fazer com o seu corpo. O pessoal de saúde também tem de compreender este assunto para promover a igualdade e inclusão nas consultas.

“Quando escolhem uma mulher para exercer funções no Governo, o público questiona se ela participou na guerra, se tem capacidade, mas nunca faz a mesma pergunta quando escolhem um homem”

Entre os 47 nomes à frente de ministérios e secretarias de Estado do IX Governo Constitucional de Timor-Leste, apenas sete são de mulheres. Em relação à gestão anterior, a participação feminina em cargos de chefia não mudou: permanece em 15%. Porque é tão difícil ter mais mulheres em funções de liderança?

Desde que os missionários chegaram a Timor, já tínhamos rainha, não só nas culturas matrilineares, mas patrilineares também, o que significa que as mulheres já assumiam cargos principais, mesmo que em algumas questões elas não pudessem decidir ou mesmo falar. Na invasão da Indonésia, quando as forças invasoras chegaram à fronteira, houve muitos timorenses armados, incluindo mulheres, que foram lá para lutar contra os militares indonésios. Aliás, de acordo com os relatos, foi uma mulher que morreu primeiro naquele combate. Acho que agora temos muitos progressos comparados com outras nações. Na nossa jornada desde 2002 até agora, temos enquadramento legal e político sobre a igualdade, incluindo a lei eleitoral que introduziu a quota de 30% de mulheres no Parlamento Nacional. As mulheres já ocupam alguns cargos importantes. O problema reside na falta de vontade política em várias instituições. Desde a criação da SEPI até ao momento, tem havido uma constante defesa, em todos os níveis das instituições estatais, para garantir a participação das mulheres em cargos de decisão, desde o nível local até ao nacional. Mas, na prática, aquilo pelo que lutamos não se concretiza. Mesmo que muitas mulheres tenham capacidade para ser deputadas, há apenas uma deputada entre três deputados. No Governo, por não haver imposição como no Parlamento Nacional, o número de mulheres em cargos do executivo é reduzido. Em muitos casos, quando escolhem uma mulher para exercer funções no Governo, o público questiona se ela participou na guerra, se tem capacidade, mas nunca faz a mesma pergunta quando escolhem um homem. Por isso tem de haver vontade política muito séria. Se todas as partes trabalharem para promover a participação das mulheres nos cargos públicos, creio que teremos mais progressos.

 “A promoção da igualdade de género é responsabilidade de todos e basicamente tem de começar na família e depois na sociedade e na nação ”

 Um estudo elaborado pelo Nabilan, programa da Asia Foundation, refere que 59% das mulheres timorenses são vítimas de violência doméstica por parte do marido, pelo menos uma vez na vida. Como mudar este cenário?

Este estudo foi em 2017, agora estamos em 2024, ainda não há outro estudo para demonstrar a realidade atual. A situação pode estar pior ou melhor. Fazemos o que podemos para mudar pouco a pouco este cenário. No meu mandato, criámos uma comissão interministerial para implementar o Plano de Ação Nacional contra a Violência Doméstica e Violência de Género. Já defendemos a revisão dos instrumentos legais, com especial enfoque nas leis contra a violência doméstica. De cinco em cinco anos, fazemos um Plano de Ação Nacional Contra a Violência de Género. Temos enquadramento legal. Também investimos no VPU (Vulnerable Person Unit), unidade da polícia que atende as vítimas de violência doméstica e facilita o acesso à justiça. Ajudamos os órgãos da comunicação social para fazerem cobertura sobre estes assuntos como forma de educar a sociedade. Fizemos também campanhas na administração pública em todo o território para lutar contra o assédio sexual. Apesar dos esforços feitos, precisamos da colaboração de todas as partes, incluindo da Igreja, da sociedade civil etc. A promoção da igualdade de género é responsabilidade de todos e basicamente tem de começar na família e depois na sociedade e na nação.

 Em Timor-Leste, as mulheres queixam-se do casamento tradicional timorense, “o barlaque”, em que as mulheres são trocadas por animais e dinheiro. Acha que a tradição viola os direitos humanos?

O barlaque é uma tradição boa, que nos ensina a respeitar o outro. No processo de dar barlaque, a parte da família do homem dá algum dinheiro e animais e a família da mulher também dá algo em troca. O problema surge quando as pessoas usam esta tradição para fazer negócio e consideram as filhas como objetos para vender. O barlaque, para mim,  é dar e dar de volta. O problema é que, muitas vezes, usamos a tradição para alcançar outros fins.

A Aliança Nacional de Combate a Crimes de Infanticídio em Timor-Leste registou, nos últimos cinco anos, 60 casos do abandono de bebés. Perante esta situação, a maioria da sociedade culpabiliza apenas as mulheres. Como avalia esta situação?

Isto é um pensamento que precisamos de mudar. Se o homem contribui para ter um filho, tem a responsabilidade de cuidar da mulher durante a gestação e depois também. Em muitas ocasiões, antes de culpabilizar alguém, no caso de abandono de bebés, temos de compreender primeiro os fatores que contribuem para esta situação. Às vezes, a mulher não tem apoio do parceiro, da família. Há mulheres que sofrem depressão pós-parto, o que as deixa frágeis psicologicamente, podendo levar ao abandono do bebé. Há outras mulheres que têm doenças mentais e são vítimas de homens que as engravidaram. Então, estas mulheres não sabem que estão grávidas e depois de darem à luz, simplesmente deixam os bebés no lixo sem terem consciência do que estão a fazer. Em vez de as culpabilizarmos, devemos ajudá-las e protegê-las. Quando eu era secretária de Estado, pedi à minha equipa para fazer uma pesquisa sobre infanticídio e feminicídio, para identificamos as causas, mas ainda não sabemos o progresso deste estudo, porque terminamos o mandato. 

“Quando um homem viola uma mulher, a sociedade sempre culpabiliza a mulher, a maneira como trata do seu corpo e se veste. Este tipo de pensamento não existe apenas no Tribunal, mas em todas instituições principalmente naquelas que trabalham para defender o direito das mulheres”

 Um outro estudo, do JU,S, demonstra a dificuldade do sistema judiciário em punir pessoas que cometem crimes de violência doméstica e sexual contra mulheres. O relatório revela que preceitos culturais influenciam os atores judiciais, que acabam por valorizar as normas tradicionais em detrimento dos direitos humanos. Como resolver este problema?

A cultura, a tradição, a normas sociais e os costumes podem influenciar a vida profissional das pessoas incluindo os atores judiciais. Muitas pessoas normalizam este tipo de comportamento. Quando um homem viola uma mulher, a sociedade sempre culpabiliza a mulher e a maneira como trata do seu corpo e se veste. Este tipo de pensamento não existe apenas no Tribunal, mas em todas instituições, principalmente naquelas que trabalham para defender o direito das mulheres. Para resolver este problema, temos de sensibilizar as pessoas antes de trabalharem nas instituições públicas para evitar que eles tomem decisões discriminatórias e preconceituosas. Além da sensibilização, precisamos de rever e atualizar a lei da violência doméstica sexual para regular o comportamento destes profissionais.

 “Muitas mulheres fazem trabalhos domésticos sem remuneração. Será que deviam ser remuneradas? O trabalho doméstico deve ser dividido entre homens e mulheres”

 Que mudanças gostaria de ver em termos de consciencialização sobre os direitos das mulheres e igualdade de género em Timor-Leste?

Para reconhecer que a mulher faz parte da sociedade e contribui para ela, temos de promover a igualdade de género na família, dando espaço às nossas filhas para falarem e comportarem-se como os filhos. Temos também de incluir todas as componentes da sociedade no processo de desenvolvimento, como os cidadãos que estão nas áreas remotas, a comunidade LGBTQIA+ e pessoas com deficiência, para que todos os timorenses sintam que Timor-Leste é para todos, sem discriminações. Para que isto aconteça, as mulheres que têm cargos no Parlamento Nacional e no Governo, têm de falar, defender os direitos das mulheres para que a situação mude. Queria que todos os dias, todos os timorenses trabalhassem para assegurar a igualdade de género. Se assim for, um dia não precisaremos de defender os direitos das mulheres.

Como promover a equidade salarial e oportunidades iguais no mercado de trabalho?

Não tenho conhecimento sobre diferença salarial entre homem e mulher no mesmo nível e no mesmo setor. Antes, a Secretaria de Estado para Formação Profissional e Emprego (SEFOPE) instituiu a remuneração para os trabalhadores domésticos, sendo que a maioria é mulher. Mesmo que em Timor-Leste, tenhamos o salário mínimo de 115 dólares, mas os salários de algumas trabalhadoras domésticas não chegam a este valor. Precisamos também de unir esforços para empoderar as mulheres e formá-las no sentido de terem um emprego que garanta a igualdade. Muitas mulheres fazem trabalhos domésticos sem remuneração. Será que deviam ser remuneradas? O trabalho doméstico deve ser dividido entre homens e mulheres.

Qual é a sua mensagem para as mulheres timorenses?

Comemorámos o Dia Internacional da Mulher com o tema “Investir nas mulheres, investir no progresso”. Investimos na mulher igual ao homem, porque contribuem de igual forma para o país. Quando investimos nas nossas filhas, investimos no futuro da família e da nação. Queria que todas as pessoas trabalhassem para empoderar as mulheres para que se garanta a sua participação em todas as áreas do país.

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