Maria Fernanda Lay: “Ainda há desigualdade devido à nossa cultura patriarcal e à educação que os pais dão aos filhos”

Maria Fernanda Lay faz parte do Parlamento Nacional desde 2007, quando foi eleita deputada pela primeira vez, pelo CNRT, partido que defende até hoje /Foto: Diligente

Em entrevista ao Diligente, a presidente do Parlamento Nacional falou sobre o seu percurso antes e depois de atuar na vida política e os desafios que tem enfrentado desde que assumiu o cargo como primeira mulher a liderar o órgão legislativo.

No âmbito do Dia Nacional da Mulher, celebrado hoje, dia 3 de novembro, o Diligente conversou com Maria Fernanda Lay, a primeira mulher a desempenhar funções como presidente do Parlamento Nacional, ao qual pertence desde 2007. Na época, exerceu também funções de liderança em comissões, como a das Finanças Públicas. Foi Secretária-Geral da Rede das Mulheres da Comunidade dos Países da Língua Portuguesa (CPLP) e Vice-Presidente Executiva da Organização Mundial de Parlamento contra a Corrupção (GOPAC).

No seu percurso, foi também, em 1995, chefe do setor de telecomunicações da Telecom Indonésia. Em 1984, Maria Fernanda Lay mudou-se para território indonésio, tendo ido estudar em Bandung, na escola de telecomunicações, na vertente das finanças e recursos humanos.

Em 2003, decidiu regressar a Timor-Leste com a intenção de contribuir para o país depois da restauração da independência, a 20 de maio de 2002. Trabalhou em projetos para a Agência dos Estados Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional e para a Associação Global do Desenvolvimento, na área da pesquisa sobre terrenos. Juntou-se ao partido Congresso Nacional de Timor-Leste (CNRT), no ano em que foi eleita deputada pela primeira vez.

Determinada e focada, Maria Fernanda Lay nasceu numa família que a educou para a igualdade de género. “Os meus pais educaram-nos, a mim e aos meus irmãos, independentemente do nosso género. Gozámos das mesmas oportunidades e obrigações. Hoje, dou graças a Deus por isso”, observou.

Foi nomeada presidente do Parlamento Nacional, tornando-se na primeira mulher a assumir esta função em Timor-Leste. Como se sente em relação a este facto?

Foi uma surpresa para mim quando fui indicada pelo partido (CNRT) para desempenhar esta função. Foi na véspera da tomada de posse dos deputados e claro que me deixou surpreendida, quer dizer, eu estou pronta para trabalhar, mas há certas posições para as quais é precisa muita preparação. Por que é que eu digo isto? É importante uma pessoa desempenhar a sua função com competência para poder dar o melhor ao povo timorense. Claro que para mim é uma honra, mas também um desafio e uma responsabilidade tremenda. Já fez quatro meses que estou cá e confesso que tenho uma tarefa árdua pela frente.

No seu discurso de tomada de posse, realçou que é precisa coragem para que uma mulher assuma um cargo de liderança, porque implica muito estudo e trabalho.  Pode especificar em que é que isso se traduziu no seu percurso político?

Bem, eu disse isso, porque não é fácil escolher uma mulher. Até agora, como disse, sou a primeira. Entretanto, ser a primeira é um desafio, porque temos de mostrar o que é que podemos fazer melhor. E eu disse e continuo a dizer: temos no partido muitas mulheres com capacidade. O motivo para ser escolhida desconheço, mas alguma coisa deve ter chamado a atenção dos líderes do meu partido.

Sou firme nas minhas decisões. Claro que não sou contra, nem a favor, mas sou consistente nas decisões e naquilo que devo fazer. Foi por isso que disse que vai dar muito trabalho, porque temos deputados com experiências diferentes, de várias organizações e com vários conhecimentos técnicos, de maneira que para trabalhar em conjunto não é fácil. Mas, pouco a pouco, estamos a conseguir e isso é uma vitória para mim.

“O que eu lamento são algumas brincadeiras, apesar de eu dizer sempre que um distinto deputado tem de ter uma atitude distinta. Cabe a cada um interpretar a minha mensagem. É precisa muita paciência para lidar com políticos”

O que a levou a envolver-se na política?

Iniciei a minha carreira política, em 2007, com 53 anos, por sentir necessidade de contribuir para o meu país. No período da ocupação indonésia, estive a trabalhar nas telecomunicações como funcionária da Telecom Indonésia. Em 1984, fui estudar na escola de telecomunicações, no ramo das finanças e recursos humanos, em Bandung, Indonésia. Em 1995, fui a primeira mulher timorense (na altura Timor-Leste ainda era uma província da Indonésia) a desempenhar o papel como chefe das telecomunicações, no Tabanan, Bali, sendo a única timorense num universo de cerca de 100 funcionários.

Em 2003, regressei a Timor-Leste com a intenção de contribuir para o país depois da restauração da independência. Posteriormente, juntei-me ao CNRT, dirigido por Xanana Gusmão, em 2007. E desde então sou membro do Parlamento.

Acredita que, por ser a primeira mulher a presidir ao cargo, tem uma responsabilidade acrescida?

Sim. Ainda há alguns deputados que, por vezes, agem de propósito para ver até onde vai a paciência de uma mulher. Muitas vezes, ignoro, mas nós temos o regimento para nos regular. Para o bom funcionamento do Parlamento, a disciplina deve ser para todos e não apenas para mim, tal como consta nos artigos do regimento.  O que eu lamento são algumas brincadeiras, apesar de eu dizer sempre que um distinto deputado tem de ter uma atitude distinta. Cabe a cada um interpretar a minha mensagem. É preciso muita paciência para lidar com políticos.

“A igualdade de género para trabalhar para o país já existe desde os 24 anos de ocupação indonésia. Tanto homens como mulheres demonstraram que eram capazes e unidos para lutar pela independência.  Até hoje e para sempre vamos reconhecer essa luta. E porque não agora, juntarmo-nos para lutarmos pelo desenvolvimento do país?”

Como analisa a participação das mulheres na vida política timorense?

Bem, muitas mulheres, no contexto timorense, têm uma grande capacidade para governar.  Não só em Timor-Leste, porque eu tenho andado por vários países e por vários parlamentos. Por exemplo, em Portugal, há muitas mulheres com grande capacidade.  Muitas participam na vida política e também assumem cargos importantes no Governo.  Em Timor-Leste, a nossa tradição patriarcal impede a participação feminina. Eu estive em Same e o presidente da autoridade alertou para a importância da participação da mulher, mas antes disso uma mulher tinha concorrido a uma posição importante e até hoje ainda não tomou posse. Mesmo tendo capacidade, é sempre um desafio para nós, mulheres, se os homens não nos derem oportunidades.

Uma mulher também é capaz de fazer o trabalho que um homem faz. Porque não? Com a capacidade e a educação que, hoje em dia, as mulheres timorenses têm, podem fazer tudo, mas têm medo. Mas não precisam de ter medo, porque a igualdade de género já existe desde a ocupação indonésia. Tanto homens como mulheres demonstraram que eram capazes e unidos para lutar pela restauração da independência.  Vamos sempre reconhecer essa luta. E porque não agora juntarmo-nos para lutar pelo desenvolvimento do país?

“O Estado timorense trata homens e mulheres de forma igual, mas na sociedade ainda há desigualdade devido à nossa cultura patriarcal e à educação que os pais dão aos filhos”

Entre os 47 nomes nos ministérios e secretarias de Estado no Governo Constitucional de Timor-Leste apenas sete são de mulheres.  O que está a faltar para haver uma igualdade efetiva?

Temos oportunidades, mas utilizá-las não é fácil. Uma mulher não pode assumir um cargo importante só por ser mulher, tem de ser competente e ser capaz de pensar analiticamente sobre certos assuntos. Hoje em dia, a lei prevê que, entre três homens, pelo menos haja uma mulher.  Números temos, o que precisamos é de qualidade.

Para atingir este nível, temos de ler muito e temos de aprender com outras pessoas. Por exemplo, quando era deputada, participei num intercâmbio parlamentar e aprendi muito. Agora, o que é que nós queremos para o nosso país? Temos de identificar as nossas necessidades antes de irmos para o estrangeiro. Temos a vantagem de estarmos no século XXI, o que nos permite aprender muito com outros países, incluindo em termos legais, para dar um pulo. Há coisas que já existem noutros locais, mas temos de pensar em como as adaptar a Timor-Leste para que a nossa sociedade se adeque ao século XXI.

“Temos de ter planeamento familiar. Muitos filhos, certamente, trarão muitos problemas. Se um casal tiver poucos filhos, estes poderão usufruir de uma educação de qualidade e de uma vida melhor para eles, para os pais e para a sociedade em geral”

Quais são, no seu entender, as maiores prioridades e desafios de Timor-Leste relativamente à igualdade de género? 

O Estado timorense trata homens e mulheres de forma igual, mas na sociedade ainda há desigualdade devido à nossa cultura patriarcal e à educação que os pais dão aos filhos. Mesmo que uma filha tenha capacidade, quando casar vão mandá-la ficar na casa do marido, acabando por se submeter a qualquer tratamento de desigualdade que a sociedade impõe. Esquecem-se que ela também tem os seus planos para o futuro, que precisa de trabalhar e ser independente.

E, neste contexto, quando falamos de violência doméstica, muitas mulheres, embora saibam que é um crime público, desistem de levar os seus maridos a tribunal, porque dependem financeiramente deles. Se as mulheres ganhassem o seu próprio dinheiro, a situação seria diferente. A sociedade tem de prestar atenção a este problema. Temos de ter planeamento familiar. Muitos filhos, certamente, trarão muitos problemas. Se um casal tiver poucos filhos, estes poderão usufruir de uma educação de qualidade e de uma vida melhor para eles, para os pais e para a sociedade em geral. Esta mentalidade tem de partir dos pais. É um desafio, mas vamos trabalhar em conjunto para o superar. Não é fácil, mas nada é impossível.  As mulheres precisam de trabalhar em equipa para poderem quebrar a desigualdade de género.

Acredita que Timor-Leste precisa de mais líderes femininas?

Claro que sim. Há mulheres que realmente têm a capacidade de tornar os sonhos em realidade. São boas gestoras, eu valorizo imenso as mulheres que fazem a gestão do vencimento do marido para poderem sustentar a família. Com o salário mínimo do marido, conseguem comprar alimentos para pôr na mesa, educar os filhos e torná-los em pessoas úteis na vida. Os meus pais educaram-nos, a mim e aos meus irmãos, independentemente do nosso género. Gozamos das mesmas oportunidades e obrigações. Hoje, dou graças a Deus por isso.

Acredite-se ou não, as mulheres são naturalmente inteligentes e atentas aos pormenores.  Eu sempre disse que uma mulher, que só tem a quarta classe, conseguir cuidar da família com o salário que o marido tem, deve ser extraordinária.  E a minha mãe foi assim e isso é incrível.  Temos de reconhecer que é um poder natural que todas as mulheres têm.

“As mulheres precisam de trabalhar em equipa para poderem quebrar a desigualdade de género através da educação.  É por isso que comemoramos o Dia Nacional da Mulher”

Neste mandato de 5 anos, o que gostava de mudar?

O Parlamento é um órgão coletivo. Como já disse, vimos de um background diferente, mas é preciso dignificar a instituição e também os seus membros, para serem respeitados, porque a nossa sociedade, às vezes, não respeita os deputados por causa das suas atitudes.

Dignificamo-nos através da forma como intervimos, das nossas atitudes e também ao ouvirmos mais o nosso eleitorado. Claro que os eleitores querem que façamos isto e aquilo, mas temos de explicar que o Estado tem as suas prioridades, entre elas está a necessidade de levar água, eletricidade, educação e saúde às áreas rurais que ainda não têm e construir estradas com boas condições. Se compararmos com outros países, estamos em melhores condições. Se eu comparar com os países que fazem parte da Assembleia Parlamentar da CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa], pois estive em alguns países africanos, eles não estão têm tão boas condições como nós.

Como pretende incentivar o diálogo e cooperação entre os diferentes partidos políticos no Parlamento para promover consenso e avançar com a agenda da legislatura?

Eu disse, no início da minha tomada de posse, que gostaria de trabalhar com todas as bancadas parlamentares, incluindo os partidos que queiram participar em certas decisões legislativas, porque temos deputados e ex-deputados que também fazem parte de outros partidos. Claro que em processos de legislação, onde aposta o Estado, temos de ter um consenso, que não é fácil, porque para onde queremos levar o país? Há assuntos em que podemos não ter consenso, mas não quer dizer que não podemos fazer debates para poder chegar a esse acordo para o bem da sociedade. Vou dar um exemplo concreto sobre a Comissão Anticorrupção (CAC). Nós temos de chamar as bancadas parlamentares, do Governo e da oposição, trazer um candidato consensual que possa trabalhar de forma independente sem se inclinar para um partido ou para um órgão, um candidato que vai fiscalizar outro órgão. Será uma instituição de controlo, que vai pôr os olhos sobre a execução do orçamento, sobre a atitude dos membros do Governo deliberámos para que não haja corrupção.

Estamos agora numa fase de discussão para escolher um candidato, mas ainda não deliberámos.  Não é fácil escolher pessoas. Toda a gente vota pelo seu partido, o que dificulta ainda mais o processo de seleção.

Acredita que o facto de ser deputada desde 2007 é uma mais-valia para o desempenho das funções, uma vez que já conhece detalhadamente o funcionamento do Parlamento Nacional?

Não é suficiente. Desde 2007 até agora, aprendi e não paro de aprender, porque toda a vida aprendemos, porque tudo é dinâmico, não só no nosso país, mas também nos outros países parceiros, por exemplo, da Assembleia Parlamentar da CPLP. A aprendizagem é constante.

O seu trabalho no Parlamento esteve fortemente ligado às finanças públicas. Como olha para as finanças públicas do país e para a dependência de Timor-Leste do Fundo Petrolífero? Poderá ser um entrave à governação do atual executivo?

O atual Executivo e o partido de que faço parte estão preocupados com a sustentabilidade do financiamento do Fundo Petrolífero, porque para reduzir o défice fiscal que Timor-Leste tem, graças a Deus, temos o fundo.  Há outros países que só dependem dos impostos, isto é, das taxas que o cidadão tem de pagar para sustentar o orçamento do Estado.

O senhor Xanana Gusmão, na sua governação anterior, pensou nisto, com a ex-ministra das finanças, a senhora Emília Pires. Fizeram muitos estudos e investiram uma parte do Fundo Petrolífero, que está agora a dar receitas ao país, porque Bayu Undan [campo petrolífero] está nas últimas. Sobre a exploração, claro que, no futuro, temos de ver os investimentos que fizemos, porque fazemos a política de front-loading investment, e temos certas infraestruturas. Penso que o IX Governo está empenhado nesse assunto e ciente de que, um dia, o Fundo Petrolífero irá acabar. Vamos ver quais são as possibilidades de exploração do Greater Sunrise, que penso estar em negociações e esperamos que tenha bons resultados, no futuro.

Não vamos explorar só o petróleo e o gás, também temos minerais no país. Timor-Leste tem condições para prospeção de minerais metálicos, como o manganês. Temos o mármore, que ainda está intacto. E há quem diga que temos ouro. Esperemos que o Governo possa pôr em prática essas reservas para podermos ter outras receitas, para além do Fundo Petrolífero.

Qual a sua mensagem para as cidadãs timorenses nesta data em que se celebra o Dia Nacional da Mulher?

Mulheres, cuidem-se primeiro. Estudem e tenham conhecimento para que possamos lutar juntas contra a desigualdade de género, que ainda persiste no nosso país.

Encorajo as mulheres para continuarem a trabalhar como tesoureiras da família, mas também nas instituições públicas, não tenham medo de tomar decisões e assumir cargos importantes, porque o nosso papel é fundamental para o desenvolvimento do país. Temos de acreditar que podemos ir além e para isso, temos de ter fé em nós mesmos, sobretudo ter disciplina. Não tenham medo do mundo lá fora. Criem melhores condições para os vossos filhos, tratem-nos de forma igual independentemente do seu género, porque estes pequenos gestos vão mudar o país para melhor.

Também gostaria de acrescentar que quando falamos de mulheres como membros do Parlamento, não é apenas “empurrar” as mulheres para a política, não é só isso. Precisamos de servir de referência a todas e a todos. Nós podemos fazer mais, mas, para isso, temos de trabalhar em equipa.

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