A professora de Língua Portuguesa lançou recentemente o seu primeiro livro: a biografia do irmão, David da Cunha, que morreu na luta pela libertação de Timor-Leste.
Na sua infância, Maria da Cunha tinha com David, um dos seus irmãos, uma relação de muita proximidade e carinho. Naturais de Oé-Cusse, viviam em paz, ajudando a família na agricultura. Tudo mudou em meados de 1975, aquando da invasão das tropas indonésias em Timor-Leste. Na altura, estavam ambos em Díli. A 9 de outubro daquele ano, o jovem, temendo pela vida da irmã, pediu-lhe que voltasse para Oé-Cusse, para ficar com a família. David, que havia conseguido um trabalho como locutor numa rádio na capital, ficou. Na ocasião, tinha 20 anos, ela, 15. Nunca mais se viram.
À distância, Maria soube que o irmão se tinha envolvido na resistência e não recebeu mais notícias dele. Em 1999, quando os combatentes saíram das montanhas para participar no referendo pela independência, David não esteve presente. As suspeitas de que ele tinha morrido, então, aumentaram: já estava desaparecido há algum tempo.
Apenas em 2015, quando, pela televisão, acompanhou uma notícia, é que Maria teve a confirmação: os restos mortais de David, assim como de outros combatentes, tinham sido localizados, transmitia a Rádio e Televisão de Timor-Leste (RTTL).
Foi a partir desse momento que Maria teve inspiração para escrever um livro sobre a história do irmão.
A biografia de David da Cunha, escrita em língua portuguesa, é o primeiro livro de Maria. Para a obra, a escritora optou por utilizar o pseudónimo Vitória Assunção. A escolha é uma homenagem à sua avó materna, Vitória Sequeira, e ao seu nome original, Maria Assunção da Cunha – que foi registado de forma errada no cartório de Oé-Cusse. A autora deseja escrever mais, nomeadamente a sua própria biografia, além de poesia.
Considera que a leitura a ajudou bastante a desenvolver o gosto pela escrita. Pede ao Governo que promova iniciativas de apoio aos editores para estimular os escritores timorenses a escrever.
Maria da Cunha é docente no departamento de Língua Portuguesa na Universidade Nacional de Timor Lorosa’e (UNTL), onde leciona desde 2008. É mestre em Teoria de Literatura (especialização em Literaturas Lusófonas) pela Universidade do Minho (Braga, Portugal), para onde partiu em novembro de 2009. Concluiu o mestrado em 2012.
O Diligente esteve à conversa com a professora e escritora para perceber melhor o seu processo criativo e quem foi David, o seu irmão.
Porque decidiu escrever o livro sobre David da Cunha, seu irmão?
Quando regressei de Portugal, depois de concluir o mestrado, em janeiro de 2012, um outro irmão informou-me que deveria levar os meus documentos de identificação à Comissão de Combatentes para ser a representante da família e receber a pensão do meu irmão David. Desde essa altura, comecei a pensar em escrever a biografia dele, porque ele não deixou filhos. Quis escrever sobre ele para que as próximas gerações não o esqueçam.
Em 2015, estava a acompanhar uma notícia da Rádio e Televisão de Timor-Leste (RTTL) sobre a transladação dos restos mortais de guerrilheiros de Tutuluro, em Manufahi, em que estavam incluídos os restos mortais do saudoso comandante Clarimundo Gil, de Cassa, em Ainaro. Na entrevista da RTTL, o filho dele contou que o seu pai foi capturado por militares indonésios numa zona chamada Aidila, em Same, juntamente com o segundo comandante David da Cunha, de Oé-cusse. Senti-me muito motivada para escrever, porque há muito tempo que esperava por esta informação.
Qual é o objetivo principal desta obra?
A biografia pretende eternizar a contribuição do meu irmão na luta pela libertação do país. Quis fazer o lançamento no Museu da Resistência, porque ele não foi reconhecido como um herói nacional, mas o nome dele está na lista dos combatentes. Desta forma, a obra não pretende dar-me notoriedade, mas sim homenagear a história e o contributo do meu irmão, que merecem ser recordados pelas gerações futuras.
Como foi o processo criativo?
No início, tive de falar com testemunhas e procurar algumas informações sobre ele, porque, quando ele se juntou à luta, nós já nos tínhamos separado. Ouvi histórias dos familiares do comandante Clarimundo e de outras testemunhas como a Felizarda Ximenes (ex-mulher do meu irmão), os sogros da Leónia, Pedro Paulo da Costa, Natalino dos Santos, Antoninho Sequeira e Maria Domingas, entre outras, que me ajudaram a obter informações. As palavras do meu irmão também me inspiraram a escrever: “Homem é sempre homem, lutar até à última gota de sangue”. Falou assim quando foi para o mato e um dos nossos primos sugeriu que regressasse a casa, porque os nossos pais já tinham uma certa idade, mas ele não quis voltar, por querer lutar com as FALINTIL pela independência.
Eu, como irmã, não queria ficar só pelas histórias. Quando o escritor José Luís Peixoto veio participar na Feira do Livro, em Díli, há alguns anos, tive a oportunidade de participar numa oficina de escrita com ele. Perguntei-lhe como poderia escrever uma biografia, se só deveria escrever factos verídicos ou se havia outras possibilidades. O escritor respondeu-me que, se olharmos para uma parede branca e fixarmos bem o olhar, conseguimos reparar que há manchas. A partir daí, pensei em não escrever ficção, mas sim uma biografia. Parti de factos e também de informações dadas pelas testemunhas.
Quem é David da Cunha? Pode contar-nos um pouco sobre a sua vida?
David da Cunha era o oitavo filho da minha família. Nasceu no Bairro de Santa Rosa de Lima, Pante Makasar, em Oé-Cusse. Era uma pessoa simples e modesta, membro ativo da igreja, foi um dos primeiros membros do Corpo Nacional de Escutas (CNE), em Oé-Cusse. A primeira edição de escutismo, em Timor-Leste, foi criada por três padres, Domingos Morato da Cunha, Leão da Costa (falecido) e Vítor Manuel da Costa, o atual Monsenhor nos Estados Unidos da América.
Apesar de condições difíceis, os nossos pais aceitaram que ele fosse para Díli, mas, por não ter passado no exame, não conseguiu frequentar o ensino secundário, em Díli. Mais tarde, voltou para Oé-Cusse, onde frequentou o curso de monitores escolares para formar professores do Ensino Básico. Assumiu também o cargo de Administrador da escola básica de Quiupeno, em Sacato, Oé-Cusse. Em 1972/73, iniciou as suas funções como monitor escolar e ensinou na escola pré-primária no mesmo sítio. Depois, foi transferido para outra escola, sediada em Naimeko, na parte sudeste da Pante Makasar, para desempenhar a mesma função.
Entrou para a vida política, em meados de 1975. Primeiro, fez parte da ASDT (Associação Social Democrata Timorense), que mais tarde se transformou na FRETILIN (Frente Revolucionária Timor-Leste Independente). Como escrevi no livro, quando o povo de Oé-Cusse fez manifestações a favor da libertação e foi impedido pelos militares indonésios, o David pôs-se à frente dos manifestantes e pediu aos militares que lhes permitissem expressar a sua opinião, dizendo que “a voz do povo é a voz de Deus”. Em 1975, viemos juntos de barcaça (transporte marítimo utilizado durante a governação portuguesa) para Díli, porque ele queria procurar novas oportunidades de trabalho e eu vinha estudar para o Liceu Dr. Francisco Machado. Ele também foi locutor de rádio, às quartas-feiras, na rádio Maubere, para difundir notícias e informações em Baikenu (língua materna de Oé-cusse), até ao dia da invasão pelos indonésios. Foi depois para o mato juntar-se aos guerrilheiros. Era o segundo comandante da brigada Choque do Centro-Norte.
Quais foram as dificuldades que enfrentou durante o processo de escrita da biografia do seu irmão?
Uma das maiores dificuldades que enfrentei no processo de escrita da biografia do meu irmão foi não conseguir descrever as emoções na primeira pessoa, porque o que nós passámos juntos foi como um filme. Presenciámos o conflito, o golpe e o contragolpe, entre outras situações difíceis, por isso, decidi contar na terceira pessoa. Porém, tudo passou e fica para a história. O que interessa é estarmos preparados e darmos as mãos para podermos construir o país que tanto desejámos.
Qual é a reação que espera dos leitores?
Na altura do lançamento, os participantes, nomeadamente os professores do doutoramento que estou a frequentar, gostaram muito por ser um livro ligado à cultura, à identidade e à memória. Gostaram do poema dedicado ao meu irmão, escrito pelo meu sobrinho e traduzido para português por mim. Alguns leitores disseram que a biografia não mostra apenas a identidade pessoal, mas também a coletiva.
Qual a importância desta biografia para a história de Timor-Leste?
Não sei. Os exemplares do livro estão quase a esgotar. Os meus familiares e os meus colegas já compraram. O Governo tem de decidir se esta narrativa deve fazer parte da história da resistência. Este livro é apenas uma iniciativa minha para deixar como memória, principalmente para a família, para o povo de Oé-cusse e para a população timorense. Escrevi este livro para valorizar a medalha de homenagem e a pensão do Estado timorense, bem como o certificado e a medalha atribuídos pela FRETILIN, em 2014. Por isso, na contracapa do livro, dediquei um poema ao meu irmão sobre as condecorações que recebeu.
Quais são os elementos necessários para desenvolver a escrita biográfica?
Escrevi esta obra sobre a vida da personagem, da sua família, da sua profissão e o que é que fez para poder ser conhecido. Na qualidade de autora, na altura, tive de recorrer à memória. Para valorizar a minha escrita, senti que devia desenvolver aquilo que é importante para este país, porque se fosse a biografia de qualquer pessoa, ninguém teria interesse em ler. Reconheço que os relatos ainda estão incompletos, porque a história precisa de factos e como algumas partes das informações não foram justificadas, decidi cortá-las.
Queria ter publicado o livro no dia de Camões (10 de junho). Porquê?
Sim, porque o departamento de Língua Portuguesa [da UNTL] comemorou este dia, com o intuito de motivar os estudantes a valorizar este idioma através da leitura. Queria também lançar na altura em que os meus professores do Doutoramento em Letras estivessem cá para poder receber algumas dicas para melhorar a minha escrita. O Governo deve ter a iniciativa de apoiar os editores em Timor-Leste para podermos desenvolver a escrita, porque há escritores dedicados, mas não há editores.
Conte-nos um pouco sobre o seu início na literatura e na escrita.
Aprendi literatura quando ainda estudava na licenciatura, mas sempre gostei muito de ler. Foi a minha orientadora que me motivou a apreciar mais a literatura, porque tirava boas notas, mas nas disciplinas de língua portuguesa tinha uma avaliação mais fraca, porque, em 1991, o meu marido faleceu, quando eu ainda era estudante, professora, mãe e responsável pela casa. Fazia tudo sozinha. Às vezes, não tinha muito tempo para estudar. Apesar disso, a minha orientadora, a professora Flávia Bá, fez com que me apaixonasse pela literatura. Ela disse-me: “Maria da Cunha, vou ser sua orientadora. Gosta de literatura e a sua pesquisa deve ser nessa área”. Então decidi estudar dois contos de Sophia de Mello Breyner Andresen.
Quais são as suas principais referências na literatura?
Tenho muitas referências, mas a mais importante é a obra literária de Luís Cardoso. Também gosto muito do livro de poesia de Xanana Gusmão intitulado “Mar Meu”. Quando estava no curso de aperfeiçoamento de Língua Portuguesa e li o poema “Esperanças rasgadas”. Os ouvintes ficaram com os olhos marejados . Senti a importância da literatura, quando escrevi a minha dissertação. O meu orientador sugeriu-me um tema e deu-me uma referência teórica que dizia que um país soberano, se não tiver literatura, deve criá-la, porque, através da literatura, podemos adquirir muitos conhecimentos. Para fazer uma boa análise, por exemplo, das obras de Luís Cardoso, o leitor tem de ter a capacidade de transferir para a interpretação vários conhecimentos: filosófico, jurídico, histórico, cultural e linguístico. Este é o valor da literatura. Por isso, tenho amor pela literatura.
Quais são as suas sugestões para quem queira escrever um livro?
Em primeiro lugar, é preciso ler. Ler é um dos critérios essenciais para escrever bem, porque a partir da leitura sentimo-nos inspirados. No início, também não tinha coragem para ligar as frases e as ideias. Tive de ler. Não há nenhum texto em que o autor utilize só as suas próprias ideias. Transporta sempre as ideias de outros, embora indiretamente.
Leko!