Luta de galos, euforia masculina e sofrimento dos animais

Multidão lota espaço onde se realiza a luta de galos, em Golgota, Díli, em plena segunda-feira/Foto: Diligente

Tradição que antes era associada à resolução de problemas e eventos culturais, atualmente é utilizada para o entretenimento de homens, ávidos por ganhar algum dinheiro através de apostas.

Em Timor-Leste, a luta de galos é um jogo tradicional, mais conhecido por Manu Futu, em tétum, e faz parte da cultura desde os tempos antigos. A tradição ainda reúne todos os dias, em vários locais do país, multidões de homens para acompanhar os animais a lutarem até à morte. Os donos, sempre ávidos por ganhar algum dinheiro, criam e treinam vários galos para as batalhas, para que, na morte de um, haja outro para continuar a participar nas apostas. Mas nem sempre foi assim.

De acordo com o lia na’in (dono da palavra em português), Eugénio Sarmento, antigamente, o Manu Futu funcionava como uma forma de solucionar os casos de disputas entre as pessoas e de garantir a paz na sociedade.

“Os nossos avôs usavam a luta de galos para resolver alguns problemas que não eram deliberados pelos líderes tradicionais. Então, eles iam procurar dois galos para lutar. Quem ganhasse no Manu Futu ganhava também na justiça. Para além disso, o jogo também assegurava a amizade entre os participantes”, explicou.

Já no tempo da resistência, quando os combatentes voltavam do mato e se reuniam com outros homens na cidade, a prática servia também para a troca de informações, sendo importante para a definição de estratégias a serem implementadas no enfrentamento aos militares indonésios.

Com o passar dos anos e após a independência de Timor-Leste, em 2002, a tradição foi perdendo a faceta de planeamento e de resolução de impasses, passando a ser uma atividade muito mais voltada para o entretenimento. Atualmente, em Díli, há pelo menos quatro espaços para a luta de galos.

Armandino Leão, 76 anos, antigo funcionário português, contou ao Diligente, no campo de luta de galos, em Maloa, um dos sucos da capital, que antigamente o duelo dos animais só se realizava em dias oficiais, nomeadamente durante o arrolamento de bens – um costume timorense, semelhante ao censo, que serve para registar o número de pessoas e de bens familiares de cada casa sagrada ou de cada aldeia.

“Quando era criança, via a luta de galos. Os nossos antepassados realizavam este jogo só nas cerimónias culturais. Depois da chegada dos indonésios, isto começou a mudar, acontecendo em qualquer dia”, recordou Armandino Leão.

O negócio

Maloa, Kuluhun, Golgota, Bebonuk são alguns dos sítios da capital onde se pode assistir à luta de galos, como em outros sítios do território nacional. Segundo os donos, os lugares são registados no Serviço de Registo e Verificação Empresarial, Instituto Público (SERVE, IP). Em pelo menos um deles, a equipa do Diligente confirmou a existência do registo.

No ambiente em que as batalhas ocorrem, circulam também vendedores ambulantes de lotaria, coco, café e outros produtos.

Ernani Henriques, 47 anos, dono de um espaço de luta de galos em Maloa, há mais de quatro anos, afirmou que a atividade é lucrativa para todos.

“Temos de criar condições para que os vendedores ambulantes possam vender os seus produtos e os jovens possam ajudar, já que não temos postos laborais suficientes. Em vez de andarem na rua, podem vender aqui”, destacou Ernani.

Leonita Sorares, 32 anos, vendedora de lotaria, chega a ganhar entre 50 e 60 dólares numa tarde num local que promove batalhas entre os animais. “Este valor é para adquirir arroz e produtos de higiene”, ressaltou a mãe de dois filhos, no meio da plateia de homens, em Golgota.

Numa segunda-feira, por volta das 16h, o Diligente foi conferir o Manu Futu num local situado no suco de Madohi, em Díli. Homens de várias classes sociais, de diferentes faixas etárias (incluindo crianças), em pé ou sentados à volta da pequena arena discutem o valor que vão investir no animal de sua preferência. Enquanto isso, os donos dos galos que vão lutar, amarram lâminas às patas esquerdas deles, que permanecem imóveis.

O jogo começa. Dentro do ringue, os adultos gritam, batem palmas, incentivam e tentam dar instruções, na esperança de que o respetivo galo entenda e vença a batalha – que é acompanhada por um árbitro.

Na plateia, o público torce para não perder dinheiro. Ninguém quer ir para casa de bolsos vazios. Em menos de cinco minutos, um dos animais sucumbe, para o delírio de uns e tristeza de outros. Assim que o vencedor é anunciado, o próximo combate é informado.

Em dias da semana, acontecem cerca de 25 lutas, mas nos fins de semana, o número pode mais que duplicar. Para cada batalha, os donos estabelecem um preço: o vencedor leva a quantia do perdedor. Até 99 dólares, no mínimo 5 dólares ficam reservados para o proprietário do espaço. Acima desse valor, pelo menos 10 dólares devem ser pagos ao detentor do campo da arena. Em resumo, quanto mais alto o custo da luta, maior o lucro para quem a promove.

Ernani Henriques garantiu que, mensalmente, paga imposto à Autoridade Municipal de Díli (AMD) e que a importância depende do rendimento mensal.

Já as apostas do público são acordadas verbalmente entre cada um. Frequentador assíduo das lutas de galo, o apostador Leonardo Pinto Jerónimo, conhecido como Kolo, de 33 anos e pai de quatro filhos, afirmou que a prática o ajuda com as necessidades básicas da família. Em 2021, disse que ganhou cerca de 15 mil dólares americanos.

“Uma vez, apostei dez mil dólares contra alguns líderes do país. Graças a Deus, ganhei. Com este valor, comprei três carros e uma mota e o restante dinheiro serviu para o sustento familiar”, destacou. Porém, sem hesitar, contou que também já chegou a perder, num só jogo, por volta de cinco mil dólares.

Uma tradição sexista

Antigamente, a luta de galos contribuía também para o casamento arranjado. Eugénio Sarmento explicou que, se um rei não aceitasse algum pedido do tipo feito por um homem à sua filha, por serem de classes diferentes, então era realizado o Manu Futu para determinar se haveria matrimónio. “Por exemplo, se o galo do homem ganhasse então, o casal poderia casar. Se fosse ao contrário, não”, esclareceu o lia na’in.

Desde os tempos antigos, contudo, um aspeto mantém-se: a hegemonia masculina. Atualmente, e porque Timor-Leste é um país maioritariamente patriarcal, a presença das mulheres em eventos do tipo continua limitada, sob o pretexto de que, caso participem, podem “perder a dignidade”.

“Se as mulheres participarem na luta de galos, elas vão perder a dignidade, já que este jogo é semelhante a uma guerra. E as mulheres não participam na guerra”, argumentou Eugénio Sarmento.

Kolo relatou que, na sua experiência de duas décadas a frequentar o Manu Futu, as mulheres que chegou a ver nos ambientes ou eram vendedoras ou estrangeiras. “Não sei porquê é que isto acontece. Na minha opinião, as timorenses também podem participar”, confessou.

Por sua vez, Ela Variana, ativista progressista do Movimento de Resistência Social e finalista na Faculdade de Direito da Universidade de Díli (UNDIL), observou que a luta de galos é um exemplo dos privilégios que os homens têm em relação às cidadãs no país.

“Se uma mulher estiver presente num Manu Futu, a sociedade vai julgá-la. A mulher ideal, na perspetiva equivocada que ainda prevalece na sociedade timorense, tem de ficar em casa a fazer os trabalhos domésticos e a cuidar dos filhos. Os homens podem sair e divertir-se em qualquer evento público. Temos de mudar essa mentalidade”, ressaltou a ativista.

Direitos dos animais

Durante o tempo de luta, a maioria dos galos não se alimenta nem bebe, dado que alguns dos donos acreditam que, se os galos comerem ou beberem, ficam mais pesados e não vão ter uma boa prestação, apesar de, na realidade, perderem a força por sede ou fome.

De acordo com o artigo 2.º da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, aprovada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em 1978, “todo o animal tem o direito à atenção, aos cuidados e à proteção do homem”. Já o artigo 3.º determina que “nenhum animal será́ submetido nem a maus-tratos nem a atos cruéis”.

No entanto, a Constituição da República Democrática de Timor-Leste é omissa relativamente a este assunto, sendo que a cultura do país normaliza o sofrimento inútil dos animais e o facto de esta tradição dispor indiscriminadamente das suas vidas.

Alheados de todos os mitos à sua volta, os galos são explorados cruelmente. Logo à entrada do ringue, os animais são colocados frente a frente para se bicarem, como uma forma de aquecimento para a violência por vir.

Quando a batalha tem início, além das bicadas, as unhas afiadas são utilizadas como armas. As lâminas amarradas às patas reforçam a agressividade dos movimentos. No meio da gritaria de uma multidão de homens, o sangue jorra pelo chão de terra.

Quando o público começa a berrar bakufila (capotar, em português), é porque um dos animais já foi severamente atingido e está prestes a morrer.

Os galos digladiam-se até saírem vitoriosos ou acabarem por tombar, sem vida, no ringue da luta na qual não pediram para participar. Mortos, os animais são levados para casa, onde depois de cozinhados acabarão no estômago dos donos – desapontados por não verem satisfeita a sua sede de afirmação.

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  1. Kokorek, nao sou galo de luta!

    Sou galo mas nao de luta
    Sou galo de galar
    E uma coisa muito astuta
    8 galinhas para sustentar
    Galo de luta?
    Que horror, coisa bruta
    Como galinha, boa fruta
    Nao confronto nenhuma disputa
    A noite durmo numa luxuosa gruta
    Sou galo e ganda borracho
    Nao ha galinaceo que me resista
    Nao sou galo de tacho
    Nao sou galo fascista
    O meu amo e sacerdote
    Virei galo religioso
    Tal e a minha sorte
    Nao sou galo de luta odioso
    Tenho um vasto harem
    Mas aceito galinha que venha por bem
    A meta e ter 100(cem)
    No meu palacio de kalem

    Ze Galaroo
    Pueta galinaceo de TL

  2. Abaixo assinado ao Senhor PM de todas as galinhas de TL

    Senhor Primeiro Ministro
    Excelencia

    Nos, abaixo assinado, galinhas de TL, em particular as galinhas pedrezes de Dili, vem por este meio solicitar a VEXA, que se digne legislar no sentido de por cobro a luta sangrenta e horrorrosa do nosso querido macho, o GALO DE TL.
    De acordo com a constituicao de TL, nomeadamente os artigos 68 e 69, galineas a)b) e c), temos o direito como Aves de fazer a vida sem termos de ficar galinhas viuvas por causa dessa luta sangrenta do Galo e os nossos pintainhos ficam orfaos, crescem fracas com falta de disciplina pois nao tem o poder paternal.
    Se isso nao acontecer Excelencia, entraremos em greve, deixaremos de por ovos e, aproxima-se o Natal e nao vai haver “mantolo” para cozinhar aquelas docuras de que tanto gostam os Humanos.
    Assinado
    Galinha Gira da Colmera
    Galinha Jeitosa do Comoro
    Galinha Bonita da Marconi
    Galinha Formosa de Udilaran
    Galinha Compinta de Aitarak Laran
    Galinha Pedrez de Metiaut
    Galinha Viuva de Santa Cruz
    Galinha Bem Cheirosa de Bemorin
    (Seguem em anexo 200 paginas de assinaturas de galinhas revoltadas)

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