Lixo de uns é alimento de outros

Fome leva famílias a disputarem produtos fora da validade no aterro de Tibar/Foto: DR

Quinta-feira, 11h da manhã. No meio da lama, moscas, fumo e fezes de animais, um grupo de 50 pessoas aguarda, no aterro de Tíbar, em Liquiçá, pelos camiões que chegam de Díli. Uns trazem lixo, outros trazem produtos alimentares com prazos expirados . É para estes últimos que as pessoas fazem fila, de sorriso no rosto, ansiosas pela oportunidade de procurar no entulho , os alimentos que vão ganhar um lugar nas mesas das suas casas. Crianças, jovens, casais, velhos, todos disputam os “melhores” artigos fora do prazo.

No aterro de Tíbar, os camiões despejam, para além do lixo, todo o tipo de produtos inapropriados para consumo ou comercialização. Garrafas de óleo, embalagens de frango, vários géneros de enlatados , entre outros, que não servem para uns, mas que alimentam quem nada tem, aqueles para quem é uma sorte poderem ter comida gratuita, mesmo que com data de validade expirada.

Um vídeo transmitido em direto na página do Facebook de Zelio Loco, funcionário de uma das empresas de mercadorias que ali descarrega os produtos alimentares que já não cumprem os requisitos para estar nas prateleiras dos supermercados, expõe um cenário assustador e desumano : pessoas empurram-se e a atropelam-se para conseguirem levar para casa “os melhores produtos”.

O Diligente foi ao local para perceber o que leva estas pessoas a procurar comida e outros produtos no aterro de resíduos da capital.

“Sabemos que é arriscado para a nossa saúde, mas temos de comer, mesmo que sejam alimentos estragados”. As palavras são de uma das muitas pessoas que vasculham o lixo e que preferiu não revelar a sua identidade. Para contornar os riscos, procura sempre “escolher os produtos que ainda têm bom aspeto, parecendo apropriados para consumo”, explica.

É também no lixo que, orgulhosamente, encontra fonte de rendimento familiar. A necessidade obriga-o a fazê-lo, bem como a trabalhar a céu aberto, debaixo de um sol abrasador. Dia e noite procura latas, garrafas e outros materiais, que depois vende em troca de pouco dinheiro, um pouco que é muito para conseguir sustentar-se a si e à sua família.

No mesmo local, uma mãe de 35 anos, que também não quis revelar a sua identidade, confessa que também sobrevive do que encontra no lixo. “Estão sempre muitas pessoas, mas nem todas têm sorte. Algumas encontram produtos, outras não”, conta. Revela também que é habitual todos competirem, no meio do aterro, para conseguirem encontrar os melhores produtos. Para além dos produtos alimentares e objetos para venda, “encontram-se também produtos de higiene, como champôs”, avança ainda.

“Sinto-me bem a usar estes produtos, porque a minha vida é mesmo assim. Em Tíbar, embora exista oferta de emprego, quando não temos conhecimentos ou familiares, nunca somos selecionados”, afirmou. O favorecimento na obtenção de emprego faz com que as pessoas percam a vontade e a esperança. Para fazer face a esta realidade também esta mãe recolhe latas e garrafas, que depois de vendidas, lhe permitem ganhar algum dinheiro para financiar os estudos dos seus filhos e outras necessidades familiares.

De acordo com Marco Salgário, professor do departamento de Nutrição da Universidade Nacional de Timor Lorosae (UNTL), os produtos expirados não devem ser consumidos, uma vez que podem representar riscos para a saúde.

“Alguns microrganismos presentes nos alimentos podem multiplicar-se e interferir na qualidade do produto, colocando a saúde da pessoa em risco e causando até intoxicações alimentares”, explicou.

Muitas vezes, a escolha dos alimentos é condicionada apenas pelo que as pessoas veem a “olho nu”, o que nem sempre mostra o estado de conservação dos alimentos. “A necessidade de se alimentar obriga a comunidade, sem consciência dos riscos, a consumir estes produtos. Porém, seria melhor não o fazerem, porque é muito arriscado”, aconselhou o professor.

O Governo de Timor-Leste tem em curso, desde 2021, uma política de recuperação económica para fazer face à crise provocada pela Covid-19, com medidas de apoio como a cesta básica ou a atribuição de um subsídio de 200 dólares americanos para os agregados familiares com rendimentos mais baixos. No entanto, as políticas do Governo têm-se mostrado insuficientes para combater a fome e a pobreza que assolam o país.

De acordo com a última edição do Índice Global da Fome (IGF) de 2022, que mede e monitoriza a fome a nível mundial, Timor-Leste ocupa o 110º lugar num total de 121 países, com um nível de fome considerado grave.

Array

Ver os comentários para o artigo

  1. Muito obrigado pela notícia da realidade real timorense sobre a pobreza material do povo que não tem, o povo que sobrevive com as migalhas dos outros por falta da boa política o estado de combate a fome.

  2. Muito triste!
    Ha que incenerar estes produtos em vez de os deitar na lixeira para por em risco aqueles que por ali vasculham.
    Se nao morrem da fome morrem de veneno de produtos expirados

  3. Lixo!

    Num esguicho,
    Em cochicho
    Me inteirei deste lixo
    Para muitos, matabicho
    Sem preco fixo
    Em Timor, naquele nicho
    Ta tudo lixado, lixo!

    Carlos Batista
    Poeta de Timor

Comente ou sugira uma correção

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Open chat
Precisa de ajuda?
Olá 👋
Podemos ajudar?