Liberdade de Imprensa: 10.ª posição em ranking de 180 países não reflete dificuldades dos jornalistas

José Ramos-Horta defende menos burocracia no acesso à informação/ Foto: Presidência da República

Ameaças de detenção e de instauração de processos em tribunal por elementos da PNTL, queixas no Ministério Público, demora ou ausência de respostas e a dificuldade no acesso a dados que deveriam ser públicos contrastam com mais uma subida de Timor-Leste no ranking mundial da liberdade de imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF). Depois de ter passado da 71.ª posição para a 17.ª em 2022,  o país subiu este ano mais sete lugares e ocupa agora o 10.º lugar da lista atualizada e divulgada todos os anos, a 3 de maio, o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa.

Apesar de a maioria das entidades timorenses ainda exigir cartas aos órgãos de comunicação social para fornecerem dados que deveriam ser públicos, para darem entrevistas ou, muitas vezes, se recusarem a prestar declarações e ameaçarem os jornalistas, o país conseguiu subir sete lugares na classificação que avalia a liberdade de imprensa a nível mundial.

Eduardo Soares, diretor e jornalista do Diligente, revela que, depois de uma entrevista ao Comandante da Unidade de Trânsito da Polícia Nacional de Timor-Leste, em fevereiro deste ano, foi ameaçado por esse mesmo responsável. “Ele respondeu às minhas perguntas e sabia que estava a ser gravado, mas, no fim, disse-me para não publicar as informações que tinha acabado de me dar e que, caso eu o fizesse, me iria deter e avançar com um processo em tribunal”.

No âmbito da mesma investigação jornalística, o jornalista entregou uma carta na Polícia Científica de Investigação Criminal (PCIC), no início do mês de fevereiro, à qual a PCIC demorou duas semanas a responder, limitando-se a dizer que não poderia prestar declarações, porque o processo de investigação estava em “segredo de justiça” e escusando-se a dar qualquer outro esclarecimento.

Também no início de fevereiro, o mesmo jornalista do Diligente entregou uma carta, desta feita a solicitar uma entrevista ao Procurador-Geral do Ministério Público (MP). Depois de um mês sem resposta, decidiu voltar ao MP, onde foi informado de que não sabiam do paradeiro da carta. “Vi-me obrigado a entregar uma nova carta, mas, até agora, e já estamos no final de maio, ainda não obtive resposta. Tudo isto dificulta muito o meu trabalho”, lamenta Eduardo Soares.

“Quem inventou esta regra? Um pedido por escrito? Isto é inaceitável. Isto é, francamente, de um Governo ou de um regime que quer controlar ou dificultar a atividade jornalística”

O mesmo aconteceu no Tribunal de Recurso, onde, em meados de abril, um outro jornalista, também do Diligente, Nicodemos Espirito Santo, entregou uma carta a pedir uma entrevista para um trabalho que estava a desenvolver sobre o registo dos partidos políticos. Não recebeu qualquer resposta, sendo que as eleições já se realizaram no passado dia 21 de maio.  “Fui ao Tribunal de Recurso duas vezes para obter respostas, mas disseram-me que a carta ainda estava na mesa do presidente e que me contactariam quando houvesse um despacho. Até agora ainda não recebi nenhuma informação.”

O Presidente da República, José Ramos-Horta, em entrevista ao Diligente, no âmbito da comemoração do Dia Mundial de Liberdade de Imprensa, no Palácio da Presidência, em Díli, mostrou-se indignado ao tomar conhecimento que as autoridades exigem cartas aos jornalistas para darem entrevistas e deu o exemplo de outros países, como os Estados Unidos da América, a Austrália e Portugal, “onde não é necessário entregar cartas para aceder a informação pública”.

“Quem inventou esta regra? Um pedido por escrito? Isto é inaceitável. Isto é, francamente, de um Governo ou de um regime que quer controlar ou dificultar a atividade jornalística. Eu não concordo. Os jornalistas só deveriam telefonar às entidades. O presidente sim, mandem uma carta, mas não é necessária tanta formalidade. Só é necessário confirmar a agenda”, reivindicou, salientando ainda que, muitas vezes, basta receber um e-mail ou uma mensagem no WhatsApp quer de jornalistas internacionais quer nacionais, e responde diretamente.

Se os responsáveis ou líderes do Governo estão sempre indisponíveis, automaticamente, não garantem a liberdade de imprensa no país”

Zezito da Silva, representante da associação de jornalistas Timor-Leste Press Union (TLPU) e jornalista da Tatoli, mostra a sua insatisfação sobre a relação das autoridades com os órgãos de comunicação social. “Lamentamos porque, às vezes, os responsáveis das instituições públicas e alguns governantes não nos respeitam e consideram-nos inimigos. Os jornalistas são pessoas normais, que trabalham diariamente para recolher informações. Se os responsáveis ou líderes do Governo estão sempre indisponíveis, automaticamente, não garantem a liberdade de imprensa no país.”

Zezito salienta ainda que, apesar de Timor-Leste estar numa boa posição no ranking relativo à liberdade de imprensa, na realidade, os jornalistas ainda enfrentam muitos obstáculos. “Durante a  cobertura de um caso sobre um desentendimento entre uma família e uma médica do Hospital Nacional Guido Valadares (HNGV), os representantes do HNGV recusaram-se a prestar declarações,  o que representa, na minha opinião, um entrave à liberdade de imprensa e ao meu trabalho”. O representante da TLPU aponta ainda o dedo aos responsáveis das instituições que exigem cartas para darem entrevistas ou facultarem dados e informações. “As instituições não podem dificultar o trabalho jornalístico com as suas burocracias”. Lamenta ainda facto de alguns jornalistas receberem notificações das autoridades. “O próprio Ministro do Ministério dos Assuntos Parlamentares e Comunicação Social (MAPCOMS), Francisco Jerónimo, fez queixa do chefe de redação do site de notícias Hatutan.com”.

Francisco Belo Simões, chefe de redação da Hatutan.com, foi notificado pelo Ministério Público, no dia 18 de maio de 2022, por suspeita de denúncia caluniosa na sequência de uma notícia publicada, no ano passado, sobre os projetos de instalação de receptores-descodificadores na Rádio Televisão Timor-Leste, Empresa Pública (RTTL, E.P). “No dia 23 de maio do ano passado, fui prestar as primeiras declarações, na Procuradoria Distrital de Díli, mas já passou um ano e até hoje ainda não fui informado sobre o processo”.

O chefe de redação defende que as entidades deveriam fazer queixa no Conselho de Imprensa (CI), que é a entidade reguladora da comunicação social: “Muitas vezes, os líderes não fazem queixa no Conselho de Imprensa nem fazem uso do direito de resposta ou retificação e preferem levar os órgãos de comunicação social e os jornalistas diretamente ao tribunal”.

Suzana Cardoso, diretora do jornal online Media One Timor, critica também o facto de, nos últimos tempos, alguns jornalistas terem sido presentes a tribunal. “Na verdade, o Conselho de Imprensa é que tem competência para nos alertar sobre possíveis falhas do nosso trabalho, de acordo com a lei da comunicação social.”

Em entrevista ao Diligente, o Presidente do Conselho de Imprensa (CI), Otelio Ote, destacou que o CI está a trabalhar para a transmitir mais e melhor informação às autoridades sobre o papel dos media e sobre o direito de resposta e de retificação. O objetivo é que “as autoridades possam entender o trabalho dos jornalistas. Além disso, realizamos encontros com os assessores de imprensa no sentido de melhor colaborarem com os jornalistas”.

Ainda de acordo com o presidente do CI, quer as instituições do Estado quer as empresas públicas e privadas já se habituaram a exigir cartas, por isso “os jornalistas têm de entregá-las para que a entrevista seja oficial, mas, na verdade, não deveria ser necessária tanta formalidade e burocracia, porque atrasa ou impossibilita o trabalho dos jornalistas”, tendo em conta que a profissão obriga em muitos casos a uma corrida constante contra o tempo.

“Se as instituições do Estado e as empresas públicas e privadas continuam, repetidamente, a pedir cartas, isso pode afetar a nossa liberdade de imprensa. Os líderes de qualquer instituição têm o dever de responder. Não podem usar critérios burocráticos para dificultar o trabalho jornalístico”, concluiu Otelio Ote.

Jorgino dos Santos, chefe de redação do Independente, e outro jornalista do mesmo órgão foram notificados, no ano passado, pelo Serviço de Investigação Criminal Nacional (SNI), no seguimento da publicação de uma  notícia sobre suspeitas de que o Governo teria demitido Gastão Piedade, investigador do SNI, por alegadamente terem divulgado dados sobre um processo.

Em entrevista ao Diligente, Jorgino dos Santos explicou que já respondeu à notificação, mas a autoridade competente ainda não confirmou a continuidade do processo. “Não sei ainda se o processo vai continuar. Só me disseram para aguardar, porque no caso de notificações a jornalistas, às vezes, podem ficar pendentes até haver um novo Governo, mas até agora ainda não recebi nenhuma informação”.

O jornalista considera que esta notificação o motivou a ser ainda mais rigoroso no seu trabalho. “A notificação não teve um efeito negativo no meu trabalho. Pelo contrário, incentivou-me a ser ainda mais exigente”.

“A PCIC tem de ter cuidado para não interferir no trabalho jornalístico. Se houver alguma notícia que ‘magoe’ os líderes, então podem apresentar queixa no tribunal e o órgão judicial deve ser independente para resolver”

Não obstante, o jornalista elogia a posição de Timor-Leste no ranking mundial da liberdade de imprensa: “Se compararmos com o que acontecia há seis ou sete anos, a cobertura jornalística era mais difícil. Hoje em dia, embora ainda tenhamos dificuldades, penso que melhorou”.

Relativamente à atuação da PCIC, José Ramos Horta alerta para o dever de “ter cuidado para não ser um instrumento político nem interferir no trabalho jornalístico, porque não é este o seu papel. Se houver alguma notícia que ‘‘magoe’ os líderes, então podem apresentar queixa no tribunal e o órgão judicial deve ser independente para resolver”.

O Presidente da República realçou ainda que “o Estado de Timor-Leste, enquanto Estado de Direito Democrático, tem o compromisso de respeitar e abraçar a liberdade de imprensa, a liberdade política e a liberdade religiosa de modo a que possamos contribuir para uma sociedade livre”.

Virgílio da Silva Guterres, Provedor dos Direitos Humanos e Justiça (PDHJ) e ex-presidente do Conselho de Imprensa, afirma que esta posição no ranking mundial da RSF é um orgulho, mas também um desafio para continuar a lutar para manter este lugar ou se possível melhorar. “O foco da PDHJ relativamente à liberdade de imprensa é garantir o direito de acesso dos cidadãos às informações públicas com qualidade e não os discursos de ódio ou de discriminação nem informações falsas”.

O ranking anual de liberdade de imprensa divulgado pela RSF avalia as condições do jornalismo em 180 países e territórios. O levantamento deste ano indica que a situação é “muito grave” em 31 países, “difícil” em 42 e “problemática” em 55, sendo “boa” (como é o caso de Timor-Leste) ou “relativamente boa” em 52 países.

Também a contrastar com a posição de Timor-Leste, o país asiático mais bem classificado, estão os últimos três lugares do ranking, que são também ocupados por países asiáticos – o Vietname (178), a China (179) e a Coreia do Norte (180).

À semelhança da de 2022, também a edição de 2023 foi realizada de acordo com uma nova metodologia desenvolvida por um conjunto de especialistas que define a liberdade de imprensa como “a possibilidade efetiva de os jornalistas, indivíduos e coletivos, selecionarem, produzirem e divulgarem informações de interesse geral, independentemente de interferências políticas, económicas, jurídicas e sociais e sem ameaças à sua segurança física e mental”.

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