Jovem timorense transforma água do mar em potável e ajuda famílias em Liquiçá

As pesquisas que levaram à produção de água potável através de água do mar começaram em 2017/Foto: DR

Liderada por Luciano Pereira, desde 2019 a cooperativa Nurak Sulin Hamutuk já comercializou aproximadamente 50 mil garrafões da marca “Tasi Liquiçá É mó” (Mar tornou-se em água doce, em português).

Em Liquiçá, decorria o ano de 2017, um grupo de jovens juntava-se para identificar problemas do lugar onde viviam. Depararam-se com uma realidade em que a falta de água potável afetava a economia local, já que as famílias eram obrigadas a comprar as garrafas vendidas pelo camião cisterna. Localizado na costa norte de Timor-Leste, 30 minutos a oeste de Díli, o município está longe do acesso a água da rede pública. O grupo, chamava-se, então, Dailor Liquiçá.

O líder era Luciano dos Santos Pereira. Na tentativa de resolver o problema que afetava os cidadãos da sua terra, o jovem de 29 anos, recém-graduado em Ciência Química na Universidade Nacional de Timor Lorosa’e (UNTL), decidiu pesquisar sobre como transformar água do mar em água potável. A ideia também foi sugerida pelos seus docentes ao perceberem que o local onde o estudante residia se encontrava perto do mar.

Em Timor-Leste, segundo o Censo da População de 2022, mais de metade das famílias ainda recorre às fontes de água desprotegidas ou desconhecidas e depende da proximidade de ribeiros e proximidade de lagos para conseguir água para beber.

Quando disse a algumas pessoas  que queria transformar água do mar em água para beber, Luciano Pereira recebeu palavras desmotivadoras como “Vais conseguir quando a galinha tiver dentes!” e “Se conseguires, vou transformar a água do mar em petróleo!”. Ao remar contra a maré, o jovem conseguiu realizar o sonho, provando que estavam erradas as pessoas que não acreditaramacreditaram nele.

Para que a iniciativa pudesse funcionar, o jovem contou com a ajuda de amigos e familiares. No início dos trabalhos, somavam 25 elementos. Após algum tempo e avanços, o grupo deu origem à cooperativa multissetorial Nurak Sulin Hamutuk. Luciano, a referência, sempre foi também o responsável por ensinar a técnica de transformação da água salgada em potável.

A sugestão para a criação da cooperativa veio do Secretário de Estado das Cooperativas, Arsénio Pereira da Silva, a partir de um encontro com o grupo, em 2018. Atualmente a Nurak Sulin Hamutuk tem 16 membros.

Desde 2019, depois da validação do Ministério da Saúde, já foram comercializados pelo menos 50 mil garrafões da marca “Tasi Liquiçá É mó” (Mar tornou-se em água doce, em português), distribuídos regularmente por quinze quiosques do município, informou Luciano. Diariamente, entre 45 e 50 garrafões abastecem os quiosques, que os vendem por um dólar.

Se os clientes optarem por buscar os garrafões diretamente na cooperativa, cada unidade sai a 50 centavos. Se os garrafões tiverem de ser transportados desde o local de produção, o valor é de 75 centavos, o preço normal no mercado.

O caminho para o sucesso

Além do apoio do grupo e da família, foram os livros e as muitas tentativas que conduziram Luciano e a cooperativa ao sucesso. O jovem investiu primeiro nos livros para aprofundar os conhecimentos. Com 50 dólares da mãe, comprou a primeira publicação intitulada “Engenharia de Processos de Tratamento de Água”. Continuou a comprar livros, chegando a ir à Indonésia e a encomendar obras técnicas de Portugal e do Brasil. Para complementar a pesquisa, Luciano Pereira utilizava o Google e o Youtube.

A carta de pesquisa para a monografia, que servia de autorização para que o jovem iniciasse a sua investigação pela UNTL, só saiu em 2020. Mas Luciano fintou a burocracia e já havia começado a pesquisa em 2017, quando estava ainda a fazer estágio pedagógico em Liquiçá. Quando a autorização saiu, já Luciano e os colegas andavam a vender água potável em garrafões.

Durante a investigação, foram estudados três métodos de dessalinização: destilação, em que se ferve a água, que se evapora e passa para estado líquido, já pura; filtragem da água com carbono; e filtragem por osmose reversa, que é utilizado globalmente. “Este último método também é aplicado em Timor-Leste, num projeto da Agência Internacional Coreana de Cooperação (KOICA, em inglês), em Hera. Fui lá observar e estudar o sistema”, informou.

Luciano Pereira regula a pressão de água para o filtro por osmose reversa/Foto: MJDAC

Luciano resumiu que o primeiro procedimento não é eficiente, porque apenas produz água pura, sem ou com muito poucos sais minerais, porque resulta da condensação do vapor de água. Para ser saudável para o consumidor, esta água precisa de ser misturada com sais minerais e o processo tem custos.

Já o filtro de carbono, feito de rochas, areia e carvão, consegue tirar as impurezas da água, mas não o sal. Finalmente, no método de filtragem por osmose reversa, a água é filtrada com uma membrana semipermeável, que tem aberturas de 0,01 nanómetro. O material retém o sal e outros sais, impurezas e microrganismos, mas deixa a água pura passar com ajuda de uma pressão.

“A água é irradiada por ultravioleta para matar os microrganismos”

O jovem acabou por usar os dois últimos métodos, misturando-os e modificando-os. Fez escavações na praia de Liquiçá até encontrar Manapa, formada por areia condensada, localizada a dois metros de profundidade. Para manter o poço aberto, com um metro de espessura, Luciano Pereira utilizou a própria Manapa como um tipo de estrutura de sustentação, que se mantém assim até hoje.

blank
O poço, feito e sustentado por Manapa, de onde se retira a água do mar/Foto: MJDAC

Decidiu ainda escavar mais 50 centímetros até encontrar água do mar, que é retirada, com tubos e bombas de sucção elétricas, sendo levada para o lugar da produção de água potável, situada a 150 metros da beira do mar.

A água passa primeiro pelo filtro simples. Aqui, as areias e ervas são retidas. Este filtro precisa de ser limpo diariamente. A segunda filtragem é a de carbono, em que as restantes impurezas são absorvidas pelos extratos de carvão e recife coral.

Posteriormente, a água passa então para o filtro de osmose reversa. No sistema global, são utilizadas duas membranas para filtrar a água e reagentes para lavar o tubo de filtração. Porém, por falta de orçamento, Luciano teve de usar só uma membrana semipermeável e um dínamo para empurrar o sal separado.

Do tubo de filtração, saem dois canais: um para a reserva de água filtrada e outro para reencaminhar o sal para o mar. A água é irradiada por ultravioleta para matar os microrganismos restantes e posteriormente refiltrada, antes de entrar nos garrafões.

Os gastos e desafios

Para que a estrutura fosse montada, Luciano Pereira precisou de um investimento inicial. Como não tinha dinheiro, foi ajudado pela mãe, que, mesmo desempregada, pediu um empréstimo de 10 mil dólares ao banco. Na altura, antes do pedido de crédito, quando foram ver a conta, descobriram que sobravam apenas 60 dólares. A mãe só voltou a trabalhar como professora em 2018, com um salário de 275 dólares.

Quando o empréstimo foi aprovado, cerca de 9 mil dólares, Luciano usou-o para comprar, na Indonésia, os materiais de pesquisa e produção, como o filtro, tubos, entre outros. Encontrou em Jacarta um amigo que não quis acreditar no seu projeto e considerou impossível o sistema conseguir transformar água do mar em água potável.

Luciano voltou com os materiais comprados e construíram um armazém no terreno oferecido pela sogra. O jovem precisou de mais algum dinheiro para conseguir a instalação elétrica no armazém. Solicitou à sogra que pedisse um empréstimo ao banco, dando os equipamentos como garantia, caso não resultasse. Conseguiram mais 4 mil dólares e instalaram o sistema. Luciano vendeu ainda a sua casa, por 3 mil dólares, para comprar garrafões e outros materiais necessários para distribuir a água produzida. Para a pesquisa e produção inicial gastaram, no total, 18 mil dólares americanos.

O grupo começou a receber apoio financeiro do Governo desde o lançamento da distribuição da água, em 2019. A Secretaria de Estado das Cooperativas (SECoop) do Governo anterior apoiou-o com um total de 24 mil dólares. Também receberam 9,2 mil dólares, através da competição anual de ideias inovadoras de negócio, promovida pelo Ministério de Turismo, Comércio e Indústria (MTCI), com a ajuda de parceiros institucionais.

O montante recebido financiou a compra de mais garrafões, materiais de manutenção, bomba de água, dínamos e a requalificação do armazém e construção de um edifício para a administração. Já neste ano, conseguiu comunicar com o atual SECoop sobre o plano de produção de água engarrafada.

Sugeriu, entretanto, que o Governo investisse mais na melhoria e promoção de água produzida no país. Porém, as pessoas ainda optam por água importada. “Pensam que é mais segura, mesmo que haja água engarrafada local, com certificação do Ministério da Saúde”, indignou-se.

Em 2021, Luciano Pereira ouviu dizer que tinham encontrado larvas na água “Tasi Liquiçá É mó”. Tentou saber o que aconteceu, quem se estava a queixar e confirmar se era mesmo a água de um garrafão da cooperativa Nurak Sulin Hamutuk, mas o boato nunca foi verificado. Na verdade, um dos garrafões foi testado por uma médica no Hospital Nacional Guido Valadares (HNGV) e não foram encontradas larvas ou impurezas. “O teste da água é feito para cada lote. Garantimos que todos os garrafões são bem selados para assegurar a higiene do nosso produto e, em cada lote, separamos um, caso seja necessário testar o conteúdo”, explicou.

“Para o jovem, um outro segredo para o sucesso é ter coragem para encarar os falhanços”

O jovem recordou que, entre 2017 e 2019, fez dez tentativas e falhou em todas. O maior desafio que teve surgiu quando tentou criar um buraco no tubo de filtração por osmose reversa. O filtro rebentou. Ficou sem dinheiro para reparar os materiais. Decidiu não sair da casa para estudar o problema durante três meses. Dividiu o tempo entre os livros e “as orações a Deus”, aos matebian (espírito dos bisavós) e à casa sagrada.

Na altura, pensou em vender a mota, mas refletiu que, quando solucionasse o problema, ficaria sem qualquer meio de transporte para fazer a distribuição da água produzida, que viria a ser a sua única fonte de rendimento. “Pensei em não continuar”, admitiu. Contudo, seguiu em frente, conseguiu reparar o filtro com a ajuda dos amigos e familiares, que juntaram dois mil dólares, e superou o obstáculo, mantendo a mota.

Ao lembrar da situação, Luciano Pereira emociona-se. “É para isso que serve uma família e amigos: para nos levantarem nas nossas quedas”. Para o jovem, além do apoio das pessoas próximas, um outro segredo para o sucesso é ter coragem para encarar os falhanços

No futuro, pretende automatizar o sistema de enchimento e de lavagem dos garrafões. Ainda são lavados com escovas por dentro e detergentes por fora, passando por um processo de esterilização. Os garrafões têm de ser enchidos à mão, quatro de cada vez.

Luciano Pereira tenta sempre lutar para oferecer soluções criativas ao país e espera que a sua experiência possa motivar todos os timorenses, principalmente os jovens. “Agarrem-se firmemente aos sonhos e desejos com uma mente positiva, porque a mente otimista torna as coisas possíveis”, destacou.

Array

Ver os comentários para o artigo

Comente ou sugira uma correção

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Open chat
Precisa de ajuda?
Olá 👋
Podemos ajudar?