Influência religiosa, falta de informação e cultura travam educação sexual em Timor-Leste

Cultura obriga jovens que engravidam precocemente a casarem/Foto:DR

No país, apenas 21% das mulheres admitem recorrer a algum tipo de método contracetivo, segundo estatísticas do Governo de 2019

Em Timor-Leste, onde mais de 90% da população é católica e a disciplina de Educação Sexual não é ensinada nas escolas, uma em cada quatro mulheres é mãe antes dos 20 anos, revela uma pesquisa do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA, em inglês) de 2017.

Ainda segundo o estudo, 19% das jovens do país casam-se antes dos 18 anos. A principal razão, destaca o levantamento, é a gravidez precoce.

Grávida, a jovem vê-se obrigada, muitas vezes, a casar precocemente, situação que, para a ativista timorense Berta Antonieta, se deve a questões culturais. De acordo com os costumes do país, os pais olham geralmente para filhos e filhas de forma muito diferente. “As filhas servem para casar e dar filhos ao marido, portanto culturalmente as mulheres são menosprezadas e os filhos homens são aqueles que, na hierarquia familiar, dão continuidade à geração dos pais”, diz.

Domingas (nome fictício) foi mãe ainda adolescente. Aos 17 anos, no terceiro mês de gestação, descobriu a gravidez. Na altura, desconfiada dos constantes enjoos, não sabia com quem conversar e, aflita, procurou uma prima que vivia em Portugal para pedir conselhos. Depois desta conversa, ganhou coragem e comprou um teste na farmácia. Ao confirmar-se a gravidez, caiu em desespero.

“Foi quando começou a fase mais dura da minha vida. Para confirmar o resultado do teste, uma tia levou-me ao hospital para fazer uma ecografia. Ao ouvir que estava grávida de três meses, chorei descontroladamente”, lembra.

Sem saber o que fazer, pensou em abortar, mas o medo impediu-a. Domingas terminara o relacionamento com o pai da criança, antes de descobrir a gestação e, sentindo-se desamparada, acabou por lidar com a situação como impõe a cultura familiar.

“Passei o que tinha de passar. Segui o processo cultural. As famílias reuniram-se, realizou-se uma festa e a gravidez foi aprovada. Eu e o meu ex-namorado voltamos a estar juntos”, relata.

“Todas nós somos afetadas por esta cultura hipócrita”

Segundo Berta Antonieta, a sociedade e os próprios pais excluem as mulheres desde que nascem. Pai e mãe consideram que elas não pertencem à família. A mulher é vista como propriedade, não só do seu marido como da família dele.

Antonieta admite que também é afetada pela cultura: “Eu sou afetada. Todas nós somos afetadas por esta cultura hipócrita, que impede tudo, inclusive o pensamento crítico. Estas tradições são impostas sem dar espaço às pessoas de questionar”.

“Eu nunca tive uma conversa aberta sobre educação sexual na escola, em casa e nem com as minhas amigas”

Rabia Virgínia Amaral tinha 16 anos, quando engravidou. Ao contrário de Domingas, os pais não a julgaram. Mesmo assim, o processo pelo qual passou foi exatamente igual ao da Domingas. A cultura timorense colocou-as na mesma caixa.

Uma em cada quatro mulheres é mãe antes dos 20 anos/Foto:DR

A jovem teve relações sexuais sem proteção por desconhecer a existência de métodos contracetivos. “Eu nunca tive uma conversa aberta sobre educação sexual na escola, em casa e nem com as minhas amigas”.

Quando descobriu a gravidez, ficou chocada e “perdida silenciosamente durante dois meses”, sem saber o que fazer. Passado esse tempo, decidiu contar a duas amigas, com quem pôde assim desabafar.

Era uma jovem muito ativa nas atividades da escola e na igreja, mas a gravidez veio pôr um ponto final em tudo. Foi obrigada a sair da escola, porque o regulamento não permitiu que continuasse os estudos. Estava no 12.º ano. “Depois de a escola tomar conhecimento da minha gravidez, a madre, que é a vice-diretora, sugeriu que todas as meninas da instituição fizessem o teste de gravidez”.

Hoje, a jovem tem 20 anos. Inicialmente, muito tímida, começou a transpirar ao partilhar a sua experiência com o Diligente. No entanto, já está mais preparada do que nunca para as críticas da sociedade: “Não é necessário esconder a minha identidade. O pior já passou e agora é só aprendizagem”, enfatiza.

Os pais só descobriram a gravidez aos três meses. “Durante os primeiros dois meses de gravidez, foi um inferno”. Tentou abortar de várias formas, comeu ananás (é crença em Timor-Leste de que o consumo desta fruta pode interromper a gravidez), tomou muitos medicamentos e ingeriu bebidas alcoólicas. Fez de tudo para pôr fim à gravidez, mas não conseguiu. Hoje arrepende-se de ter tentado.

O pai de Rabia, diretor de Educação do Município de Viqueque, no sul de Timor-Leste, é muito respeitado na zona. Por isso, o medo de os pais serem julgados pela sociedade era tão grande que a levou a pensar em suicidar-se“. Felizmente, as duas amigas com quem tinha partilhado o que se estava a passar conseguiram impedi-la.

O comentário que mais a magoou e que ouviu várias vezes foi: “O pai é diretor de Educação, mas, olha, a filha nem terminou a escola e ainda por cima engravidou muito cedo”.

A jovem confessa que inicialmente o namorado não quis assumir a gravidez e desapareceu sem dizer nada, mas quando a família da jovem insistiu e o ameaçou, reuniram-se e seguiram o processo cultural para as famílias se conhecerem e aceitarem a família um do outro, e o relacionamento.

Neste momento e passados 4 anos de ter tido o filho, frequenta o terceiro ano da licenciatura em Economia da Universidade da Paz. A criança está ao cuidado dos pais de Rabia.

“Preservativos são para as prostitutas”

Casos como o de Domingas e de Rabia poderiam ser evitados com a utilização de métodos contracetivos. Contudo, devido a questões culturais, a educação sexual em Timor-Leste ainda é um tema difícil de ser abordado, especialmente entre a população mais jovem – aproximadamente 70% dos habitantes do país têm em média 25 anos.

Na escola, Domingas conta que a temática“, mais próxima associada ao sexo eram as explicações de Biologia sobre o funcionamento do sistema reprodutor. A respeito de alternativas para evitar doenças e gravidez, a recomendação dos professores, conta a jovem entre risos, era de que “poderia namorar, mas sem andar de mãos dadas”.

O uso do preservativo, diz Domingas, era totalmente desaconselhado. “Os professores diziam que os preservativos eram para as prostitutas. Não se fala sobre isso para não se ser alvo de críticas ou fala-se apenas a brincar”, diz, revelando a oposição e a resistência a este tema no meio escolar.

O estudo de 2017 “A gravidez adolescente e o casamento precoce em Timor-Leste” da Plan International, do UNFPA e Secretaria de Estado da Juventude dá conta de que tanto as meninas como os rapazes timorenses têm muito poucos conhecimentos sobre os seus próprios corpos. Quase todos ouviram falar de sexo, mas não sabem que os coloca em risco de gravidez, VIH/SIDA ou doenças sexualmente transmissíveis (DST). Desconhecem também o seu sistema reprodutivo ou sinais de gravidez.

De acordo com os dados mais atuais do Governo, apenas 21% das mulheres timorenses entre 15 e 49 anos admitem recorrer a algum tipo de método contracetivo.

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Cada mulher deve ter acesso e escolher o contracetivo mais adequado à sua saúde sexual/Foto:DR

A cultura também interfere no planeamento familiar. Não é a mulher que decide. O marido é que decide por ela. Preocupada com a situação, Berta alerta que as mulheres não devem normalizá-la, mas questionar tudo o que tem implicações para os seus direitos.

Sobre a importância do preservativo, a jovem ativista responde que “muitas pessoas pensam que usar preservativo pode incentivar o ‘sexo livre’, mas o ‘sexo livre’ também acontece” sem preservativo, como se pode verificar pela elevada taxa de gravidez precoce.

Também não é o que dizem os estudos da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), que reforçam que os programas de educação sexual contribuem para que as relações sexuais ocorram mais tarde e estimulam o uso de métodos contracetivos, reduzindo a possibilidade de gravidez indesejada e do contágio por doenças sexualmente transmissíveis (DST).

Centro de saúde não dá conselhos de planeamento familiar, mas de moral

Na tentativa de procurar informações sobre a prevenção de doenças e métodos contracetivos, fomos saber como funciona o atendimento num centro de saúde de Díli.

Uma fonte, que não quer ser identificada, dirigiu-se, então, a um desses espaços. Ao ser atendida, pediu à médica orientações.

“Que idade tens? Já tens emprego? Queres ter uma relação saudável em que sentido?”, perguntou-lhe a médica, em tom de gozo. “Quero iniciar a minha vida sexual, mas não quero engravidar nem contrair doenças. O que me aconselha?”, questionou novamente a fonte. “Quando tiveres um bom emprego, são os homens que te vão procurar. Usa o preservativo quando casares e se não quiseres ter filhos. E não te esqueças de rezar para que as coisas aconteçam no tempo certo”, devolveu a médica, encerrando o atendimento em seguida.

“Senti-me humilhada. Fui buscar orientação profissional e recebi em troca julgamentos, conselhos baseados na Igreja. A médica ainda se riu de mim”, conta a fonte, indignada.

Em 2021, a Ministra da Saúde, mandou riscar a expressão “uza preservativu” (escrito em tétum) de cartazes para a prevenção do VIH/SIDA

Em 2017, o Centro de Saúde da Formosa chegou a oferecer uma máquina (espécie de ATM) de preservativos, cujo preço por unidade era de 25 centavos. Depois das críticas da Igreja à iniciativa, o aparelho foi retirado.

Já em 2021, a Ministra da Saúde, Odete Maria Freitas Belo, mandou riscar a expressão “uza preservativu” (escrito em tétum) de cartazes para a prevenção do VIH/SIDA.

O Diretor Nacional de Saúde Pública de Timor-Leste, Frederico Alves dos Santos, reconhece que o forte vínculo entre a sociedade timorense e a Igreja Católica pode ser uma barreira para se falar sobre sexo com os mais jovens.

“Aqui, a relação sexual é considerada sagrada. Na teoria, para ter relações sexuais é preciso ser casada ou casado e as famílias já reconhecerem o namoro”, explica Santos.

O diretor, formado em Medicina, admite que alguns profissionais de saúde do país acabam por desempenhar duplas funções: são médicos e religiosos. Por essa razão, não se sentem confortáveis quando o assunto é a sexualidade.

Para o padre António Quenser, do Instituto Superior de Filosofia e Teologia D. Jaime Garcia Goulart em Fatumeta, em Díli, “a Igreja não contribui para o aumento de casos de gravidez precoce. Pelo contrário, a Igreja defende a educação moral sexual”.

A evolução da ciência e da tecnologia preocupa o sacerdote “pela quantidade alargada de fármacos e metodologias artificiais que existem para evitar doenças e gravidez”. Defende que “quando nós perdemos a nossa natureza ou a nossa essência, deixamos de ter o controlo da nossa vida”.

O religioso afirmou ainda ao Diligente que “a humanidade está em decadência moral. Como tal, a Igreja deve ensinar valores éticos para a construção do carácter. A instituição vai mostrar-se firme perante movimentos e organizações que atualmente, segundo o sacerdote, “querem contrariar a natureza com o uso de métodos artificiais”.

Gravidez precoce e falta de conhecimento

Na avaliação da Direção Nacional de Saúde Pública de Timor-Leste, a falta de conhecimentos sobre planeamento familiar é uma das principais causas da gravidez precoce. A situação leva, inclusive, a que muitas meninas não reconheçam que, em grande parte, são forçadas pelos parceiros a ter relações sexuais sem proteção.

O regulamento das escolas prevê expulsão para as jovens que engravidam

Frederico Alves dos Santos alerta ainda para o impacto da gravidez na adolescência na formação escolar, principalmente num país onde as jovens que engravidam não podem concluir o ensino secundário, uma vez que o regulamento impõe a expulsão.

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A gravidez precoce leva, muitas vezes, ao abandono dos estudos e a que as mulheres  fiquem em casa/Foto:DR

“Depois de engravidar, todas as jovens param de estudar, desistindo dos seus sonhos futuros. Pouquíssimas voltam para terminar os estudos e somente o fazem quando conseguem o apoio do marido. Embora muitas queiram voltar à escola, poucas conseguem. Muitas vezes voltam a engravidar logo após terem o primeiro filho e, além disso, veem pais, sogros e maridos a opor-se à ideia por acharem que a escola deixou de ser um lugar para elas, agora que são mães”, afirma Santos.

Herval de Jesus, médico da clínica Marie Stopes, localizada em Díli, alerta também para os riscos da gravidez precoce para a saúde da mãe e do feto. Alguns desses riscos envolvem bebés prematuros e hemorragias, que podem ser fatais.

Jesus sublinha também que não usar preservativo, além de não proteger contra a gravidez indesejada, favorece o contágio com DST. “O atendimento a pessoas com VIH/SIDA e sífilis tem aumentado”, alerta.

Dada a gravidade do problema, o médico vê com bons olhos a introdução da disciplina de Educação Sexual no currículo escolar para que os jovens conheçam os riscos que correm e possam ter uma vida sexual mais saudável.

Já o psicólogo Elvis do Rosário observa que a gestação na adolescência traz consequências não só físicas, mas sobretudo psicológicas: “A adolescente grávida já não vive esta fase como deveria, pois acaba por assumir responsabilidades que deveriam ser reservadas à vida adulta”.

A Organização das Nações Unidas (ONU) considera que a educação sexual promove os direitos humanos, que envolvem os direitos das crianças e jovens ao acesso à saúde, educação, informação e não discriminação. Por essa razão, também defende a implementação da disciplina de Educação Sexual nas escolas.

“Educação Sexual é um programa de ensino sobre os aspetos cognitivo, emocionais, físicos e sociais da sexualidade. O objetivo é equipar crianças e jovens com o conhecimento, competências, atitudes e valores que os fortaleçam para: viver a sua saúde, bem-estar e dignidade; desenvolver relacionamentos sociais e sexuais respeitosos; considerar como as suas escolhas afetam o bem-estar próprio e dos outros; entender e garantir a proteção dos seus direitos ao longo da vida”, refere o guia técnico para educação sexual da UNAIDS.

A educação sexual é  um processo contínuo, participado e intersetorial, sendo necessário que a família, a escola, os serviços de saúde, organizações de jovens, instituições e outros agentes trabalhem em conjunto.

No entanto, em Timor-Leste, um país em que a Ministra da Saúde manda apagar palavras como “uza prezervativu” de cartazes de consciencialização e a sociedade não questiona esta decisão, a questão que se coloca é: Como podem os outros agentes fazer a diferença no planeamento familiar?

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Ver os comentários para o artigo

  1. Nao tenho palavras, eu que nao sou parco delas.
    A educacao, incluindo a sexual e o pilar base em qualquer cultura em qualquer nacao, especialmente TL cuja populacao jovem e grande.
    Entao a religiao catolica tem falta de educacao?

  2. Há escolas públicas que deixam depois a menina acabar o ensino secundário. E a “política fila hikas ba eskola” está agora nas mãos do MEJD a ser apresentada no CM, não sei se isso é uma medida certa!

    Mas para mim, entre aquela medida e a introdução da educação sexual no currículo é altamente importante face à primeira.

    Mas os nossos santos hipócritos ainda estão a impedir as coisas, afinal estão a fazer também o “sexo”.

  3. Parabéns pela vossa coragem. É preciso acabar com a colonização da mente. Continuem a esclarecer e a denunciar. Para a frente, Timor-Leste!

  4. Caro Diligenteonline.com,
    Parabéns pelo esforço feito de trazer ao público este assunto delicate.
    O caminho ainda é longo, mas A LUTA CONTINUA!

  5. Muito há a fazer por esta metade, ou mais, da nação oprimida.O artigo ajuda bastante a perceber a necessidade de quebrar tabus sobre a sexualidade.
    Como promover o desenvolvimento com mulheres que(ainda) não são donas de si mesmas?
    E Timor Leste tem a mais alta taxa de natalidade entre os países asiáticos o que diz bem da necessidade de promover o bem estar através de maternidades desejadas e não impostas pelo obscurantismo.
    A zona a negro da bandeira desta nação não representa ela a luta contra o obscurantismo?

  6. A religiao, seja ela qual for, nao pode ser dona do corpo ou da vida de qualquer ser humano!
    Pode ser um aconchego, pode ser o “mana” espiritual, mas nao vai poder alimentar as necessidades quotidianas.
    O nosso corpo comeca onde qualquer religiao acaba, o nosso corpo acaba onde qualquer religiao interfere!

    Carlos Batista
    Poeta e escritor nascido em Timor

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