Heurísticas mentais e vieses cognitivos: lógicas não conscientes que influenciam as nossas escolhas

Os meios de comunicação, o sistema educativo, político, hierárquico, religioso, económico e as normas culturais (mesmo quando não temos consciência disso) podem estar a reproduzir ideias que favorecem os detentores do poder a perpetuarem o processo de controlo social / Foto: DR

Com aproximadamente 86 mil milhões de neurónios, o cérebro humano é um órgão que corresponde, em média, a 2% do peso corporal, 73% da sua consistência é água e consome, em repouso, 20% de toda a energia utilizada para mantermos os nossos corpos ativos e a funcionar adequadamente. Esse consumo pode aumentar diante de situações de stress, quando estudamos, precisamos resolver um problema ou escrever um relatório, por exemplo. O “combustível” do cérebro é a glicose e cada neurónio é capaz de conectar-se (sinapses) com outras 10 mil células por meio de processos neuroquímicos ou impulsos elétricos. Estima-se que os impulsos elétricos podem atingir velocidades superiores a 360 km/h e gerar mais de 20 watts de potência.

Embora a ciência tenha feito avanços significativos na compreensão do funcionamento neuronal, ainda hoje os pesquisadores debatem sobre o significado do cérebro e da mente. Há um consenso de que o cérebro é um órgão físico, responsável por controlar as funções biológicas, cognitivas e o sistema nervoso, como os movimentos, a respiração, a frequência cardíaca, a conexão neuronal, entre outras. A mente, por sua vez, refere-se aos processos abstratos que ocorrem no cérebro e dão origem às experiências subjetivas. Isso inclui a perceção sensorial, o pensamento, a memória, as emoções e etc. No entanto, permanecem algumas dúvidas, tais como: os dois podem ser considerados a mesma coisa? Um existe sem o outro? Se são diferentes, onde inicia um e termina o outro, ou qual a relação entre eles?

Para responder a estas perguntas, foram desenvolvidas algumas teorias que, de maneira esquemática, separo em 5 categorias gerais: o dualismo, que divide a mente e o cérebro em duas entidades distintas que interagem de maneira complexa; o monismo, que afirma que a mente e o cérebro são a mesma coisa (monismo materialista) ou que a mente é o que fundamenta a realidade (monismo idealista); o funcionalismo foca-se nas funções da mente e suas relações causais com o ambiente e outros processos mentais, busca compreender a relação entre mente, comportamento e as funções mentais utilizadas para a adaptação e sobrevivência do organismo, sem se preocupar com as suas características físicas ou atividades neuronais; a abordagem fenomenológica entende a mente como um fenómeno em si mesmo e busca compreender a relação entre as experiências subjetivas e a atividade cerebral, explorando como as estruturas neurais influenciam e são influenciadas pela experiência consciente e vivências individuais; o epifenomenalismo desenvolve a ideia de que a mente seria um evento secundário (epifenómeno) do funcionamento cerebral, que embora exista, não exerce influência causal sobre os processos cerebrais.

A mente-cérebro (vou grafar desta maneira para marcar a complexa rede de conexões físicas e abstratas que caracterizam a nossa perceção do mundo) funciona de maneira analógica, ou seja, utiliza lógicas contextuais, flexíveis, associações e similaridades. O que é diferente da lógica digital utilizada pelos computadores que operam de forma sequencial, baseada em categorias binárias. Aquilo que chamamos de consciência seria uma das características da mente-cérebro e possui diferentes níveis, que podem variar desde a consciência alerta até estados alterados como sonhos, transe, alucinações, dissociações e, até mesmo, as experiências de meditação. Geralmente é a consciência que as pessoas associam à noção de “eu”.

Ao longo do processo evolutivo o cérebro (órgão físico) desenvolveu algumas estratégias para economizar energia e otimizar o seu funcionamento, como utilizar caminhos neurais mais curtos, automatizar comportamentos e os processos mentais. Por sua vez, a nossa mente-cérebro (que envolve a consciência) desenvolveu a tendência de não lidar muito bem com o contraste e com a diferença, busca estabelecer padrões reconhecíveis e familiares na interpretação do mundo, assim como a simplificar e generalizar informações complexas para confirmar padrões pré-existentes.

Na sequência deste texto, abordo duas estratégias cognitivas que utilizamos frequentemente para interpretarmos o mundo e a nós mesmos: os vieses cognitivos e as heurísticas mentais. Ambas estão relacionadas e influenciam as nossas tomadas de decisão, perceções, comportamentos e visões de mundo. Esses recursos mentais ajudam-nos a lidar com a complexidade do mundo, permitindo-nos tomar decisões rápidas e adaptar-nos a novas situações. Contudo, eles também podem levar-nos a erros de interpretação, julgamentos e comportamentos equivocados.

O que são vieses cognitivos e heurísticas mentais?

Os vieses cognitivos são distorções no processamento da informação, resultado de padrões de pensamento automáticos e não conscientes. São como filtros mentais que afetam as nossas perceções, opiniões, atitudes, julgamentos e nos ajudam a tomar decisões rápidas, mas que nem sempre são adequadas ou estão de acordo com os eventos vivenciados. Estes vieses cognitivos são utilizados, geralmente, em situações de incerteza ou quando somos confrontados com informações complexas, ou que contrastam com as nossas expectativas, valores, crenças, desejos e etc. Eles frequentemente levam-nos a cometer erros de interpretação, a subestimar riscos ou superestimar benefícios, gostar ou não gostar de alguém e a manter preconceitos e estereótipos. Por exemplo, uma pessoa pessimista em um dia chuvoso pode focar-se no tempo sombrio, no trânsito lento e no transtorno de se molhar ao sair à rua, confirmando assim a sua visão pessimista do mundo. Ela pode desconsiderar qualquer aspeto positivo, como os benefícios para a agricultura, a possibilidade de relaxar em casa ou não “lembrar” o facto de que, mesmo em dias sem chuva, o trânsito em Díli também é lento, desorganizado, com poluição e muito calor.

Por sua vez, as heurísticas mentais são estratégias simplificadas que a nossa mente utiliza para lidar com a complexidade do mundo ao nosso redor. Elas são atalhos mentais que nos permitem tomar decisões rápidas em situações de incerteza ou complexidade, mas que aparentemente não exigem análises detalhadas, economizando desta forma o tempo de resposta e o esforço cognitivo. Por exemplo, ao vermos um leão a caminhar sozinho no centro de Díli, não paramos para analisar o que ele está a fazer ali, se está com fome, de onde veio ou se é perigoso. O processo heurístico irá usar atalhos lógicos para informar: leão-perigo-fugir.

As heurísticas mentais, ao simplificar o processamento da informação, podem contribuir para a geração ou reforço de vieses cognitivos. Isso ocorre porque, ao usar esses atalhos, estamos mais propensos a confiar em informações precipitadas ou que confirmam as nossas expectativas. No caminho inverso os vieses cognitivos podem influenciar as heurísticas mentais, levando-nos a decisões e interpretações condicionadas. Em outras palavras, as nossas crenças preexistentes, tendências emocionais ou experiências passadas podem distorcer ou estimular a maneira como usamos esses recursos cognitivos.

Tipos de vieses cognitivos e heurísticas mentais

Entre os vieses cognitivos mais comuns temos o viés de confirmação que é a tendência de buscar, interpretar e lembrar informações de maneira a confirmar nossas crenças ou hipóteses pré-existentes. As pessoas tendem a favorecer informações que confirmam as suas opiniões e ignoram ou descartam aquelas que as contradizem. O viés da ancoragem ocorre quando as pessoas baseiam as suas decisões em uma informação inicial, conhecida como “âncora”, mesmo que essa informação seja irrelevante ou imprecisa. O viés da atribuição fundamental faz com que as pessoas interpretem o comportamento e as características dos outros como sendo a sua personalidade ou disposição inata, ignorando o impacto de fatores externos ou situacionais. Isso pode levar a julgamentos precipitados e preconceitos. Temos também o viés da conservação, que é a tendência das pessoas em preferir manter as suas crenças ou pontos de vista existentes, mesmo quando confrontadas com evidências que contradizem essas crenças.

No grupo das heurísticas mentais temos a da representatividade que acontece quando as pessoas tendem a fazer julgamentos ou tomar decisões com base nas semelhanças de algo com outra coisa ou categoria já conhecida. Isso pode levar a estereótipos e generalizações simplificadas, ignorando a variedade dentro de uma categoria. A heurística da aversão à perda descreve a tendência das pessoas em valorizar mais a evitação das perdas do que em alcançar ganhos. Em situações de risco, as pessoas são propensas a assumir comportamentos mais conservadores para evitar perdas, mesmo que isso implique em não obter ganhos. A heurística do afeto refere-se à influência das emoções e sentimentos no processo de tomada de decisão. As pessoas tendem a basear as suas escolhas e preferências não apenas na lógica, mas também nas suas reações emocionais. Isso pode levar a decisões irracionais em situações onde a emoção domina sobre a razão. A heurística da disponibilidade ocorre quando as pessoas avaliam a probabilidade de um evento com base na facilidade com que exemplos relevantes ou informações vêm à mente. Situações e emoções que se destacam na memória são frequentemente percebidas como mais prováveis, mesmo que outros fatores indiquem o contrário.

Os vieses e as heurísticas apoiam-se uns aos outros, evitando as contradições lógicas e as evidências contrárias, economizando energia e tempo no processamento da informação. Por exemplo, uma pessoa com traços passivo-agressivos pode usar o viés de confirmação para selecionar e interpretar os comentários ou ações dos outros como sendo uma crítica ou ameaça. Além disso, pode usar a heurística da disponibilidade para lembrar rapidamente de situações em que se sentiu atacada ou criticada, mesmo que essas situações tenham sido raras ou mal interpretadas. Ela usa essas lembranças como base para justificar a sua perceção do outro e a sua resposta agressiva camuflada de esquecimento, procrastinação, ironias, sabotagem ou comentários dúbios e não frontais.

Outra pessoa, com um perfil narcisista, tende a concentrar-se em si mesma e procurar validação e reconhecimento constantemente. Ao superestimar as suas habilidades e subestimar os outros, pode interpretar qualquer comentário contrário às suas ideias como sendo inveja, acionando assim o viés da superioridade para reforçar a crença de que ela é melhor que os outros. Para contribuir para esta dinâmica utiliza a heurística da representatividade onde, por meio de ideias superficiais e estereotipadas, convive com pessoas que reforçam as suas crenças e se afasta de qualquer um que desafia a sua autoridade.

Ou ainda, uma pessoa desconfiada poderá acionar o viés da negatividade para ressaltar para si própria os aspetos negativos das relações sociais, perceber intenções maliciosas e presumir que os outros querem enganar. Por meio da heurística da disponibilidade, ela traz à memória histórias e experiências em que pessoas enganaram umas às outras. Ao vermos um malae podemos ficar desconfiados das suas intenções e imediatamente lembrar de situações com estrangeiros que confirmam esta expectativa inicial.

As heurísticas e vieses também podem ocorrer em contextos mais amplos e serem utilizadas para o controlo e manutenção do sistema de dominação e desigualdades sociais. Os grupos que detêm o poder na sociedade podem recorrer a estas estratégias cognitivas para submeter a população a um conjunto de crenças, regras e ideologias que dificultam a análise e o pensamento crítico, influenciando a perceção das pessoas e tornando-as mais “controláveis”. Nesse sentido, os meios de comunicação, os sistemas educativo, político, hierárquico, religioso, económico e as normas culturais (mesmo quando não temos consciência disso) podem estar a reproduzir ideias que favorecem os detentores do poder a perpetuarem o processo de controlo social.

Penso não ser exagero, já que estamos a falar de vieses e heurísticas, lembrar que os exemplos acima são simplificações, ou um recurso mnemónico, com o objetivo de gerar imagens mentais que nos ajudam a compreender o funcionamento básico de um processo mais complexo. É importante reconhecer que todos nós estamos sujeitos à influência dessas lógicas e padrões mentais; há muitos outros vieses e heurísticas para além dos citados aqui; a relação entre eles não é linear; vários vieses e heurísticas podem interferir ao mesmo tempo na maneira como interpretamos um mesmo evento; assim como a maneira de pensar e agir podem ser diferentes de uma pessoa para outra. Advertência feita, vamos em frente.

A importância de conhecermos a maneira como organizamos as nossas ideias e crenças

A mente humana é complexa; os vieses e as heurísticas não são os únicos elementos que formam e influenciam a maneira como vivemos e interpretamos o mundo. Analisar os nossos pensamentos e sentimentos em relação aos outros e a nós mesmos, pode ser uma estratégia para identificar padrões recorrentes que revelam tendências na maneira como organizamos as nossas ideias e crenças. Isso ajuda-nos a desenvolver uma maior consciência dos nossos próprios processos mentais e a adotar uma abordagem mais empática e equilibrada nas relações sociais e interpessoais.

Além disso, ao entendermos como os vieses cognitivos e as heurísticas mentais influenciam a maneira como vemos o mundo, podemos evitar cair na armadilha de projetar nossas próprias características e experiências nos outros. Em outras palavras, nos ajuda a diminuir a tendência em ver o mundo e os outros como espelhos de nós mesmos.

Para identificar essas lógicas, você pode fazer um exercício simples, prático e que não necessita de conhecimentos avançados em psicologia. Durante alguns dias, anote os seus pensamentos e sentimentos, como reagiu e interpretou as diferentes situações vivenciadas no trabalho, com os amigos e na família. Observe a sua motivação para fazer algo, o que o/a preocupa, os pensamentos recorrentes e as soluções automáticas para os seus dilemas. Depois, veja se há um padrão na maneira de pensar, interpretar e reagir. Se, independentemente da situação, a sua reação tende para um tipo específico de pensamento ou emoção, talvez seja interessante rever a maneira como você está a organizar as suas ideias e se a sua interpretação dos factos está adequada. Isso pode ajudar a identificar possíveis vieses cognitivos e heurísticas mentais que estejam a influenciar a sua perceção.

Alessandro Boarccaech, psicólogo com especialização em psicologia clínica e da saúde, psicoterapeuta e PhD em antropologia. Professor universitário, coordenador do Centro de Pesquisa em Cultura e Sociedade e editor da revista académica Diálogos da Untl. Autor de diversos livros e artigos científicos entre os quais Os eleitos do cárcere; A diferença entre os iguais; Dicionário Hresuk-Português; Conhecimento local, curandeiros e Psicologia: causas, sintomas e tratamentos dos transtornos mentais em Timor-Leste.

Array

Comente ou sugira uma correção

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Open chat
Precisa de ajuda?
Olá 👋
Podemos ajudar?