Grupo de voluntários luta por manter viva a tradição oral em Timor-Leste

Voluntários contam histórias, em português e em tétum, e desenvolvem brincadeiras/Foto: DR

Haktuir Ai-Knanoik divulga entre as crianças narrativas tradicionais do país que estão em vias de esquecimento, uma iniciativa com pouco apoio de entidades timorenses.

Virgília da Rosa Freitas, de 5 anos, está sentada num círculo de nove pessoas. Finge ter uma fisga e pedrinhas nas mãos. Olha para cima como se estivesse a fitar um pássaro. “Mausoko, com uma fisga e pedrinhas no bolso, tentou acertar no manu-lin [pássaro, em português]. Enquanto aponta, o manu-lin canta: ‘Ei, Mausoko não me atires com a pedra. Eu sou um manu-lin’”, conta ao grupo. Sorrisos estampados no rosto de todos. As crianças sorriem de entusiasmo com a história e os adultos de orgulho por saberem que têm uma contadora que lhes vai suceder.

Virgília é uma das 10 mil crianças timorenses beneficiadas pelo Haktuir Ai-Knanoik, que se dedica à literatura oral da timorense entre o público infantil. É normalmente aos sábados que o grupo, que possui já 30 elementos, reúne meninos e meninas na Fundação Oriente, através do apoio de professores das escolas.

Contam histórias, em português e em tétum, e desenvolvem brincadeiras. As dinâmicas também são realizadas com orfanatos e associações de deficientes em Díli, mas já foram a Baucau e Lospalos.

As atividades não existiriam sem a recolha de narrativas tradicionais, que traduzem para as duas línguas oficiais. Já recolheram cerca de 60 contos timorenses e publicaram cinco livros.

Sediado em Kuluhun, Díli, o grupo foi fundado em 2014 por 12 jovens mulheres timorenses e as professoras brasileiras Márcia Cavalcante e Keu Apoema. O nome Haktuir Ai-Knanoik, “Contadores de Histórias” em português, foi dado pela professora timorense Fernanda Sarmento, que se tornou a “madrinha” do projeto.

“Fomos incentivadas pela professora Márcia Cavalcante. Era um trabalho da disciplina de Literatura Brasileira. A professora pediu-nos que fôssemos aos municípios recolher narrativas orais”, conta Olga Boavida, que é uma das fundadoras e também coordenadora do Haktuir Ai-Knanoik.

O que no início tinha apenas como objetivo conseguir boas classificações no trabalho transformou-se num projeto.

A iniciativa foi apoiada pelos professores do Programa de Qualificação de Língua Portuguesa (PQLP), Embaixada do Brasil, Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL), Fundação Oriente, Centro Cultural Português da Embaixada de Portugal em Díli, Gabinete da Sociedade Civil do Primeiro-Ministro e Rádio Internacional em Português.

Projeto beneficia mais de 10 mil crianças timorenses /Foto: DR

Conhecimento e imaginação afetados pelos telemóveis

Além do poder educativo, da expressão de sentimentos e emoções, a contadora Natércia da Cruz do Rosário, mestre em Educação Artística e uma das fundadoras do grupo, não hesita em expor outros benefícios da literatura oral para o público infantil. “Aprendem voluntariamente e de forma lúdica a língua portuguesa. Desenvolvem a imaginação. Conhecem algumas culturas e tradições e terão mais à-vontade para falar em público”, destaca a educadora.

No entanto, o objetivo dos voluntários passa também por conservar a arte de contar histórias e manter viva a tradição oral timorense. “Queremos preservar, valorizar e difundir o património cultural timorense. Focamo-nos nos contos, lendas e adivinhas para que um dia, quando as velhotas morrerem, estas narrativas continuem a ser vividas pelas crianças”, diz Natércia.

A ideia é também defendida por outra representante do Haktuir Ai-Knanoik, Laudiana Matias Fernandes, estudante finalista da UNTL. “Os mais velhos são como bibliotecas de histórias passadas” e, por isso, “é preciso recolher estas narrativas para não se perderem”, reforça.

Os contadores, contudo, não escondem a preocupação perante o desconhecimento do imaginário timorense pelas crianças. Segundo o grupo, algumas desconhecem as histórias conhecidas do país.

A situação relaciona-se com a má utilização dos telemóveis pelas crianças, o que prejudica a tradição oral e a arte de contar histórias, argumentam os elementos do grupo. “Alguns ainda ouvem histórias em casa, mas outros não. E assim se perdem os laços na família, que podiam ser reforçados com estas narrativas. Falem uns com os outros em vez de estarem todos nos telemóveis, em frente às televisões ou a outros dispositivos”, apela Natércia.

“As crianças choram um pouco e os pais dão-lhes telemóveis para assistirem a alguns vídeos. E os telemóveis? Sabem como usar? Nós aqui, quando as crianças choram, temos de as mimar com histórias infantis”, atalha Octávia da Costa Pires, também finalista da UNTL e associada ao Haktuir Ai-Knanoik.

Falta de apoio

No entanto, a tecnologia não é o principal entrave destes voluntários, que têm pouco apoio de entidades timorenses. “Os parceiros apoiam-nos com os espaços para contar histórias, lanches e transporte para as crianças. Embora faltem fundos para a renda da casa, temos de conseguir o dinheiro através das apresentações”, afirma a coordenadora.

O Haktuir Ai-Knanoik não recebe qualquer tipo de apoio da Secretaria de Estado da Arte e Cultura (SEAC) timorense. “Entregámos a proposta, mas ainda ninguém nos contactou. Nada. E nem participam nas atividades realizadas”, lamenta. Mas não é por isso que desistem. Têm de recorrer a apoio de entidades portuguesas, brasileiras e sul-coreanas.

“Fomos aos municípios no final do ano graças ao apoio da organização não governamental sul-coreana Global Civic Sharing”, continua Olga. Sem esta ajuda não poderiam “consciencializar os professores sobre como contar histórias” ou sensibilizá-los para a necessidade de brincarem com as crianças.

Tudo tem de ser obrigatoriamente racionado, inclusive os materiais que usam com as crianças. Chegada a hora do desenho, são muitas as sessões de contos e brincadeiras em que os lápis de cor, as borrachas e até os papéis não chegam para todos.

O Haktuir Ai-Knanoik paga do seu bolso uma renda de 200 dólares mensais por uma casa grande com pequenas divisões, em Kuluhun. Uma casa onde falta muito, até espaço para receber todos os elementos do grupo e juntar as 20 crianças. Em 2015, tiveram de recorrer à Fundação Oriente, que lhes cedeu um espaço que usam até agora para desenvolverem as atividades.

Paixão, o motor da resiliência

Visitar o Haktuir Ai-Knanoik é, segundo Octávia e Laudiana, voltar a ser criança através das histórias. “Os adultos não regressam fisicamente à infância, mas sim psicologicamente. Voltam, quando participam nas atividades do Haktuir Ai-Knanoik”, garantem as finalistas da UNTL, com entusiasmo.

Octávia e Laudiana dizem-se motivadas e querem “trabalhar nas instituições ou escolas da capital, porque podem aprender muito a contar histórias em duas línguas”.

Sentem-se mudadas na forma como enfrentam o público e brincam com a voz. Orgulham-se também de terem adquirido hábitos de leitura em língua portuguesa. “Aqui aprendemos. Na universidade, por exemplo, eu não tinha vontade de ler”, afirma Octávia.

Não é, contudo, fácil manter o ânimo perante as dificuldades. A dada altura, o grupo chegou a ter quatro elementos. A resiliência, enfatiza a coordenadora Olga, implica “paixão, vontade de aprender e trabalho de equipa”, mas também “participação em encontros e formações sobre como contar histórias”.

O que estes voluntários mais anseiam agora é que os ajudem a promover a literatura oral timorense. Com apoio, esta história pode ter um final feliz e transformar-se em realidade: “Era uma vez um grupo de voluntários que contava histórias às crianças. Eram felizes com o que faziam, mas tinham muitos problemas por falta de ajuda. Um dia, começaram a receber mais apoio de entidades timorenses e tudo mudou. Agora, são muitas as crianças que conhecem a tradição dos seus antepassados.Vitória, vitória. Acabou-se a história“.

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  1. Uma historia de um poeta e escritor nascido TL, para todas as criancas do meu Timor. A minha creatividade e memoria de um labarik e vasta e tenciono partilhar com todos vos, desde que tenham a paciencia para me aturar.
    Nao sou nem Shakespere, Camoes ou Antonio Aleixo, sou simplesmente Timorense, nascido em Dili em 25/6/1955.
    Se mais mundo houvera, la chegarei de beiro, sempre com um “hanenassa”.

    O Lalenuko e o Manduko!

    E tempo de restinga em Lecidere.
    O Lalenuko mais uma vez vai visitar o Manduko, seu amigo de anos.
    Devagarinho, diligententemente, vence todos obstaculos para chegar ao lugar onde vive Manduko.
    Fa-lo sempre que tem uma oportunidade.
    Uma vez juntos, tem uma conversa amigavel
    dos que se passa nos seus habitats, as mudancas que o clima lhes tras e suas repercusssoes . Nos dias de hoje nao e facil ser Lalenuko ou Manduko mas a vida continua…
    E deveras extraordinario ser testemumha desta amizade de longa data entre dois cidadoes de Timor Leste, que nao precisam de cartao de cidadao, passaporte ou pensao vitalicia.
    Lalenuko e Manduko sao prova inagualavel de que nao importa quem es, o que representas neste mundo, se es vagaroso ou rapido, se vives na agua ou na terra, se tens carapaca ou nao. Lalenuko tem aproxidamente 18 anos e o Manduko 2, mas isso nao importa, nao e obstaculo para a sua amizade.
    Eles dao o exemplo aos humanos que falham “redondamente”
    E esta, hein,

  2. Apreço, pessoalmente, pela prensença deste sítio, ou seja esta média de online, foi criado pelos jovens anciosos, e espero que possa promover a cultura de ler na nossa sociedade.

    Foi e é uma reportagem motivadora para os jovens timorenses ao promoverem as histórias, lendas e os contos, contados pelos/as “fuuk mutin” ou seja “ferik no katuas”.

    Viva Timor-Leste e viva joventude loriku asuwa’in.

    Parabens, parabens e parabens aos fundadores.

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