Finanças Públicas

Governo atribui 15 milhões do OGE à Igreja Católica, mais do que ao HNGV

Subvenção pública alocada à Igreja Católica desde 2018 é, em média, cerca de 11 milhões por ano/Foto: Diligente

O Conselho de Ministros aprovou, na quarta-feira, dia 22, uma subvenção de 15 milhões de dólares americanos para a Igreja Católica timorense, um valor que ultrapassa a quantia alocada pelo Governo, no Orçamento Geral do Estado (OGE), para o Hospital Nacional Guido Valadares (HNGV): 13,6 milhões de dólares americanos. Com a atribuição deste ano, a Conferência Episcopal Timorense (CET) já recebeu, desde 2018, dos cofres do Estado, 66,5 milhões em subvenções públicas, enquanto, no mesmo período, o executivo atribuiu ao Hospital Nacional, 60,4 milhões. São menos 6 milhões do OGE para o único hospital nacional público de Timor-Leste, onde faltam médicos, meios de diagnóstico, condições de higiene e até macas.

O valor atribuído à CET varia anualmente, de acordo com o montante do OGE, sendo que, em média, a Igreja tem recebido do Governo, por ano, 11 milhões de dólares americanos.

A aprovação do valor para este ano teve lugar ao abrigo do Acordo-Quadro assinado a 16 de junho de 2017, que regula a parceria para a celebração de acordos anuais de subvenção para a transferência de verbas do OGE para a CET, como previsto entre a Santa Sé e a República Democrática de Timor-Leste (RDTL), a 14 de agosto de 2015, em Roma.

O objetivo deste apoio é financiar atividades educativas e sociais. Do total de 15 milhões de dólares americanos concedidos à Igreja Católica, 40% serão direcionados para a educação, 30% para serviços sociais e os restantes 30% para o governo eclesiástico e gestão administrativa, pode ler-se no acordo assinado, que não especifica, no entanto, fins mais concretos.

Em declarações ao Diligente, no final da reunião de Conselho de Ministros, o Ministro da Presidência do Conselho de Ministros, Fidélis Magalhães, adiantou que “o Governo atribui esta subvenção, anualmente, à Conferência Episcopal Timorense porque a Igreja tem um papel muito importante para o país”, caracterizando a subvenção como “uma forma de compromisso do Governo para trabalhar com a Igreja”. O ministro esclareceu ainda que a CET “tem um sistema autónomo de gestão do apoio” e destacou o trabalho desenvolvido pela Igreja Católica em estabelecimentos de ensino privados como o Colégio Infante de Sagres, em Maliana e a Universidade Católica Timorense (UCT).

Também Dom Virgílio Cardeal do Carmo da Silva, Pró-Presidente da CET, avançou ao Diligente que “este fundo é utilizado para a reabilitação e construção das escolas diocesanas, de igrejas e capelas”.

“O Estado reconhece que a Igreja Católica tem uma relação profunda com os timorenses e, por isso, desempenha um papel importante no desenvolvimento social, cultural e espiritual”, sublinhou, por sua vez, o ministro das Finanças, Rui Gomes.

No seu discurso, à margem da cerimónia de assinatura do acordo, que aconteceu na quinta-feira, o ministro referiu que a Igreja Católica “está sempre disponível para ajudar o Governo a preencher lacunas em áreas estratégicas como a educação, a saúde e o apoio social, através da construção de escolas e de clínicas, projetos que as instituições públicas não conseguem realizar, mesmo quando possuem recursos financeiros e logísticos para tal”.

Apesar disso, há cidadãos que se mostram insatisfeitos com a subvenção pública atribuída à Igreja, sobretudo tendo em conta que Timor-Leste é um Estado laico.

“Este dinheiro deveria ser destinado a resolver problemas urgentes como o desemprego, a má-nutrição e as más condições das estradas”, defende Paulo Negro, 27 anos, estudante na Faculdade de Ciência Política da Universidade de Díli (UNDIL).

O jovem discorda do apoio do Estado à CET e realça que “atribuir um montante de 15 milhões à Igreja não é urgente”. Lembra ainda que “a Igreja conta com a contribuição regular dos crentes. Os católicos oferecem esmolas na missa e pagam por todos os serviços, como, por exemplo, a certidão de batismo, o crisma, o casamento e funerais. Só para a certidão de batismo, chegam a ter de pagar mais de cinco dólares por um pedaço de papel”, lamenta o jovem residente em Caicoli.

Perante este cenário, levanta as seguintes questões: “Será que a Igreja vai acabar com a pobreza? Gerar emprego para os católicos? Construir estradas? Construir casas para os mais carenciados?”.

No mesmo sentido, apela à comunidade católica que reflita sobre os contributos da Igreja para a sociedade, uma vez que “desde a diocese às estações missionárias, todos pedem sempre contribuições financeiras dos cristãos, entre outros apoios”.

Narciso Lopes da Cruz, 25 anos, voluntário da fundação MAHON e residente em Kampung Merdeka, considera que o Governo deveria usar este valor para “assegurar condições básicas à população, por exemplo, a canalização de água para as escolas e resolver o problema da canalização danificada durante as cheias, de 4 de abril de 2021”.

“Se o Estado dá este dinheiro à Igreja para apoiar atividades educativas, porque não o entrega diretamente ao Ministério da Educação para a reabilitação das escolas nas áreas rurais?”, questiona.

“Com exceção do Colégio Infante de Sagres, em Maliana, nas outras escolas faltam livros, bibliotecas, cadeiras, entre outros. Com este apoio, as escolas católicas devem, obrigatoriamente, diminuir a mensalidade”, observou o jovem, realçando a escassez de recursos no setor da educação em Timor-Leste.

Não obstante, não quis deixar de salientar que, quando acontecem situações graves, como em casos de cheias ou incêndios, “a Igreja apoia de imediato as vítimas, oferecendo alojamento e alimentação”, mas, ainda assim, “isso não justifica este valor desproporcionado de 15 milhões de dólares”.

Por sua vez, Crispim Gomes de Jesus, coordenador de pesquisa e advocacia, também na Fundação MAHON, realçou que a sociedade deve ter consciência de que a Igreja é uma instituição financeiramente independente. “Os cristãos devem saber que, desde 2018 até à data, o dinheiro atribuído à Igreja é exagerado”, salientando que o público nunca teve acesso a nenhum relatório sobre a execução deste subsídio.

O provedor dos Direitos Humanos e Justiça (PDHJ), Virgílio Guterres, lamenta, igualmente, a inexistência de relatórios. “O público tem o direito de conhecer o resultado concreto da alocação do dinheiro.”

Apesar disso, destaca que “o papel da Igreja no setor da educação é indiscutível. E se realmente este dinheiro é canalizado para projetos educativos e sociais, como as escolas missionárias e técnicas em Fatumaca, Fuiluro e Maliana e seminários, então trata-se de uma boa iniciativa”.

No entanto, “o que vemos agora são também edifícios luxuosos e novas e grandes igrejas. Dizem que este dinheiro se destina a projetos educativos, mas se for gasto apenas na construção e reconstrução de igrejas, é lamentável”, frisa.

Segundo o provedor, a Igreja tem o papel de ajudar os mais vulneráveis, como acontece na escola jesuíta, em Casait – Liquiçá, que acomoda os estudantes de famílias carenciadas. Espera-se que as outras escolas católicas adotem também estas políticas para ajudarem os que mais precisam.

Realça, no mesmo sentido, o trabalho levado a cabo pelos padres Claretianos, no suco de Salele, em Suai, que “desenvolvem um trabalho incansável para dar apoio a jovens vítimas de violência sexual e de tráfico humano”. Considera que seria bom que este fundo os ajudasse também.

Em entrevista ao Diligente, o padre Norberto Soares, diretor do Colégio Infante de Sagres, em Maliana, município de Bobonaro, explicou que o dinheiro alocado anualmente à diocese de Maliana serve para apoiar a gestão do colégio que dirige e da escola Sagrada Coração de Jesus, para pagar os salários dos trabalhadores dos estabelecimentos de ensino que pertencem à diocese e para financiar a construção de seminários e internatos.

“Algumas escolas sob a alçada da diocese foram reabilitadas e equipadas, mas outras ainda não. Conseguimos, porém, manter as boas condições do processo de ensino-aprendizagem”, acrescentou.

A escola Bia-Marae e Aidabas-Lalas, no posto administrativo de Atabae, município de Bobonaro, são duas das escolas que foram recuperadas: “Melhorámos as condições de sete salas de aula e de uma casa de banho, criámos um poço e construímos um muro. Adquirimos mais cadeiras e mesas”, avançou o clérigo.

Os pais dos alunos que frequentam o Colégio Infante de Sagres pagam dez dólares de propinas mensais. Este ano, o número total de estudantes aumentou para 300, o que perfaz um valor mensal de 3 mil dólares americanos, 36 mil anuais. Cada aluno paga ainda 25 dólares americanos por ano para a manutenção do edifício.

O diretor do colégio informou que as propinas não chegam para cobrir nem metade do pagamento dos salários dos cerca de 40 professores, que, somados, totalizam uma despesa de 7 mil dólares americanos por mês.

À esquerda, uma sala do Colégio Infante de Sagres, em Maliana. À direita, uma sala da escola de Kuluhun, em Díli/Fotos: DR

Em Maliana, no Colégio Infante de Sagres, há recursos sofisticados e equipamentos de tecnologia avançada, graças ao dinheiro da Igreja e à contribuição dos pais. O colégio de luxo tem uma fanfarra, uma sala de música, um estúdio, câmaras de vigilância, ar condicionado em todas as salas e computadores portáteis MacBook para cada aluno. Um cenário que contrasta com a maioria das escolas timorenses, onde reina a precariedade e em que duas ou mais turmas, às vezes com mais de 50 alunos, chegam a ter de partilhar a mesma sala.

As mesas e as cadeiras não são suficientes para o elevado número de alunos, os tetos caem, é impossível entrar nas casas de banho devido ao cheiro fétido, que torna o ar irrespirável, não existem manuais escolares e os alunos, desmotivados e vítimas de um sistema desigual, veem o seu futuro comprometido.

Quando falamos de serviços de saúde, o cenário não só está longe de ser luxuoso, como não está perto de garantir condições mínimas, nomeadamente no HNGV. Pacientes dividem macas com outros pacientes, sejam adultos, crianças ou bebés, a espera para serem atendidos prolonga-se por horas intermináveis que, muitas das vezes, terminam em desistência por parte dos doentes, os meios técnicos e de diagnóstico são limitados, a falta de condições de higiene e salubridade é gritante.

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Dois bebés dividem a mesma maca no serviço de urgência pediátrica do Hospital Nacional Guido Valadares/Foto: DR

Questionado sobre o facto de o Governo atribuir mais dinheiro do OGE à Igreja Católica do que ao Hospital Nacional, Crispim Gomes de Jesus defende que a necessidade da Igreja não é maior do que a do hospital. “Como é que o Estado aloca este dinheiro para a Igreja, que tem os seus próprios mecanismos de gestão e subsistência, quando, no HNGV, os pacientes continuam a entrar e a sair sem que lhes seja assegurado um atendimento digno?”. Para além disso, “muitos dos pacientes no HNGV são crentes, então, este dinheiro podia fazer diferença para assegurar a saúde e a sobrevivência dos católicos que precisam de recorrer aos cuidados médicos do Hospital Nacional”.

De acordo com os dados do Portal de Transparência de Timor-Leste, o valor atribuído à Igreja Católica é também mais alto do que o montante previsto no OGE, deste ano, para o Serviço Autónomo de Medicamentos e Equipamentos Médicos, que tem alocados, para 2023, menos de 10 milhões de dólares americanos, do que a importância destinada ao Laboratório Nacional, cuja parcela no orçamento ronda os 800 mil dólares ou do que a quantia alocada ao Serviço Nacional de Ambulância e Emergência Médica, que dispõe de pouco mais de 2 milhões de dólares americanos.

Num país como Timor-Leste, com uma população esmagadoramente católica, a confiança depositada na Igreja é, para grande parte da população, o último ou até o único reduto de um povo a que, muitas vezes, não resta mais nada a não ser agarrar-se à fé. Uma fé que, embora possa, de alguma forma, ‘iluminar’ os dias dos mais crentes, está tão longe de garantir as condições mínimas que o Governo tem obrigação de assegurar aos timorenses como o céu está da terra.

Ver os comentários para o artigo

  1. Falar de “inexistência de relatórios” è falso. Os relatórios das despesas existem, são entregues cada ano a Governo, são muito documentados com recibos dos gastos e fotografias das obras realizadas, e são disponíveis para serem consultados também na sede da CET e da Nunciatura Apostolica. Para ter uma ideia do tamanho e da amplidão desses relatórios, o relatório do ano passado foi em volta de 1.200 páginas.
    Para outras informações estou pessoalmente disponível.

  2. Acabei de ler a notícia/o artigo, que não é muito agradável. Mas enfim, ainda esta a nossa realidade, parece algo que é muito longe do pensamento dos pobres, mas o que fazer? Porque estamos a priorizar mais o secundário e terciário e não o que é primário…. Não é criticar a Igreja, longe disto, mas apenas expressar aquilo que sinto em relação a esta notícia. Obrigada

    1. É para defender a Igreja Católica em Timor-Leste. Paraçe-me que o narrador do artigo tenha pouca capacidade crítica ou queria apenas lançar a especulação à sociedade timorense. Segundo o que diz Mons. Marco Sprizzi, O representante do Vaticano em Timor, o montante da verba recebida, a execução do orçamento e o relatório submetido ao Governo RDTL reflete a qualidade da execução da parte da Igreja Católica. Tudo está bem documentado e arquivado. O que é irónico é que, porque a Igreja Católica é sempre criticada por bem que já tinha feito e ainda hoje continua a fazer para o bem dos nosso próprios filhos/as?
      As distintas verbas alocadas ao HNGV, às outras escolas públicas ou outror setore públicos do Governo está na responsabilidade do Governo e na qualidade dos cálculos orcamentais dos nossos bem assalariados “assessores” do Governo RDTL, nada compete a decisão do nenhuma entidade da Igreja Católica.
      Quanto a escola do Colégio Infante de Sagres, confirma-se que com um orçamento bem executado, resultaria a qualidade como aquele escola. Tudo é possível se a alma é grande.
      A Igreja Católica, refere-se ao comentário do Mons. Sprizzi está sempre disponível para qualquer esclarecimento. Lamento de novo pelo redator deste artigo que pretendia criticar mas sem a qualidade do espírito crítico.
      Obg

  3. Compreendo que a igreja também está a investir na educação e na ajuda aos mais necessitados, mas alguma coisa está errada num país que dá mais dinheiro à igreja do que a um hospital nacional. Depois de ter infelizmente estado no hospital nacional e de ler a reportagem do Diligente sobre o que lá se passa, as prioridades ainda me chocam mais. A culpa não é da igreja. É de quem governa.

  4. Sugiro ao HNGV que faca o relatorio anual de 2400 paginas, o dobro da igreja.
    Fui a bruxa e ela disse-me que se assim acontecer, vai haver milagre e as verbas invertem-se a favor do HNGV.
    Paginas em branco nao sao contadas!

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