Gaspar Afonso: “Não ver não significa que não temos pensamentos, não temos visões e não temos futuro”

Gaspar Afonso, assessor do Presidente da República para os Assuntos Sociais/ Foto: Diligente

Tinha nove anos quando ficou cego. Doenças e um acidente num simples jogo de futebol entre crianças “roubaram– lhe” a vista, mas não lhe levaram a ambição. A deficiência visual não trava Gaspar Afonso nem os seus objetivos. Das pessoas não espera que sintam compaixão. Quer sim que lhe deem oportunidades, sem diferenciação.  

Gaspar Afonso nasceu sem problemas de visão, a 15 de setembro de 1981, em Maliana, município de Bobonaro. Até aos quatro anos, a infância foi marcada por alguns problemas de saúde, como conjuntivite e sarampo, que resultaram em complicações acrescidas que começaram a afetar a sua visão. Aos 9 anos, a jogar à bola com os amigos, o impacto de uma bolada forte diretamente na cara fez com que perdesse, quase na totalidade, a pouca visão que ainda tinha. Nesse mesmo ano, em 1990, acabaria por ficar totalmente cego.

Apesar de não conseguir ver, sempre tentou levar uma vida sem diferenciação e, por exemplo, sempre ajudou nas tarefas domésticas. Alimentava os porcos, ia buscar água e outras funções da rotina familiar, que assegurava fazendo valer-se dos outros sentidos, que, defende, “ficaram mais apurados depois de perder a visão”.

Os pais biológicos entregaram-no para ser criado pela tia, irmã da mãe, quando tinha apenas seis meses. Os tempos de infância com os “tios adotivos” recorda com carinho e sem mágoas. Já sobre a família desses mesmos tios, que também acompanharam o seu crescimento, as memórias estão longe de serem as melhores. Confessa que chegou a ouvir esses mesmos familiares dizerem aos seus pais adotivos que “deviam preocupar-se mais em cuidar dos animais para depois os venderem e lucrarem com isso” do que com ele, Gaspar Afonso, a quem se referiam, amiúde, como “um inútil”. “Claro que isso me magoava muito”, recorda.

Ao mesmo tempo que vivia uma infância marcada por lutas e desafios, também o país travava a sua luta pela independência. As lutas de Gaspar Afonso e de Timor-Leste cruzaram caminhos, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) decretou a consulta popular sobre a independência do país, em 1999. Recorda, sobre esse tempo que, em Maliana, sua terra natal, as fações pró-independência realizaram na altura uma campanha na qual participou com colegas, “mas eles não queriam ir porque temiam pela própria vida. Zanguei-me muito porque eu, um cego, tinha coragem de ir e eles não”.

Depois do resultado do referendo, que determinou a vontade do povo pela independência da Indonésia, Gaspar Afonso e a família refugiaram-se em “Kapolres” (em língua indonésia, instalações da polícia indonésia), no posto administrativo de Maliana, para se defenderem dos ataques das milícias indonésias, que tinham já matado algumas pessoas. Ele próprio quase foi morto juntamente com o seu pai adotivo. “Tiraram uma faca e disseram: “Este  sangue é de pessoas, não é de animais. Eu disse-lhes que era cego e eles pouparam-me. Disseram-me que, se não tivesse dito, me teriam cortado o pescoço”.

Como a situação no país estava muito instável na altura, a família refugiou-se em Atambua, região indonésia que faz fronteira com o município de Bobonaro. Estávamos em outubro de 1999, e durante esse mês, fizeram de um galinheiro a sua “morada”. Um mês depois, a 1 de novembro, conseguiram regressar a Timor-Leste.  Ficaram então a viver em Bemori, Díli, e como meio de subsistência vendiam no mercado.

Aos 18 anos, já maior de idade, Gaspar continuava, como em criança, a ajudar nas tarefas domésticas. Mas essa não foi a única realidade que não mudou, mesmo passados tantos anos. Continuava a ser vítima de discriminação, do mesmo tipo de preconceito que sofreu por parte da família dos pais adotivos: “As pessoas diziam aos meus pais adotivos que era uma pena terem ficado comigo, porque eu não podia fazer nada no futuro”.

Como forma de luta contra este ou qualquer outro preconceito, Gaspar Afonso, juntamente com quatro colegas criaram, em 2004, a organização Unidade Defisiénsia Matan Timor-Leste (em português, Unidade para os Deficientes Visuais de Timor-Leste).

Em  2011, essa mesma organização teve problemas internos que culminariam na sua saída.  No mesmo ano, criou a fundação Halibur Matan Defisiente Timor-Leste (HMDTL), onde assumiu o cargo de coordenador-geral.

Entre os episódios que mais o marcaram ao longo da vida lembra uma situação ocorrida na Malásia, em 2014. Aconteceu numa ida a um centro comercial. Numa viagem oficial, juntamente com o então vice-ministro da Solidariedade Social, Jacinto Rigoberto de Deus, “uma pessoa aproximou-se para me dar uma esmola por eu ser deficiente visual. Rejeitei e expliquei que estava lá com a comitiva timorense e não a mendigar”.

Naquele momento sentiu-se ofendido, “senti que não tinha valor”, explica. “Não quero que as pessoas tenham compaixão de mim por ser deficiente. Quero que me deem oportunidades. Como se costuma dizer, quero “um anzol para pescar e não o peixe’.”

“Gaspar Afonso foi a primeira pessoa portadora de deficiência a assumir um cargo de liderança num partido político timorense”

Depois de representar, em 2015, na Austrália, a HMDTL, no âmbito de um encontro de organizações de pessoas com deficiência visual, onde foi abordada a temática da  participação de pessoas com deficiência na vida política. Foi então desafiado por outros participantes a envolver-se na vida política. “Estou pronto. O importante é contribuir para o bem comum”, foi esta a sua resposta.

Começou, pouco tempo depois, o caminho na política como Vice-Presidente do Partido Unidade Desenvolvimento Democrático (PUDD). Gaspar Afonso foi a primeira pessoa com deficiência a assumir um cargo de liderança num partido político timorense e confessa como se sentiu com este reconhecimento: “Senti-me muito orgulhoso por debater tantos assuntos importantes com pessoas de relevo pertencentes a diferentes forças políticas”.

Também em 2015, ao mesmo tempo que a fundação HDMTL se transformou em Asosiasaun Halibur Defisiénsia Matan Timor-Leste (AHDMTL, em português: Associação de Acolhimento para os Deficientes Visuais de Timor-Leste), Gaspar Afonso foi nomeado diretor-executivo desta última.

Na AHDMTL, pautou o seu trabalho por lutas como a conquista de uma Política Nacional de Educação Inclusiva, que permitiu, por exemplo, que as pessoas começassem a usar termos corretos quando se referem aos cidadãos com deficiência. Fruto do trabalho da associação, Gaspar Afonso destaca também a entrada de Timor-Leste  na União Mundial dos Cegos (WBU, em português).

Os desafios no acesso à educação

Pisou pela primeira vez o chão de uma escola em 2001. Tinha 20 anos. Matriculou-se na Sekolah Luar Biasa (Escola de Ensino Especial para Pessoas com Deficiência) onde, em dezembro do mesmo ano, começou a frequentar o 1º ciclo, que terminou aos 25 anos. “Queria continuar os estudos no ensino pré-secundário, mas a educação em Timor não era acessível para pessoas como eu”. Decidiu, então, envolver-se a cem por cento na primeira organização que tinha criado: Unidade Defisiénsia Matan Timor-Leste e começar também a ensinar braille. “Estudava de manhã e à tarde trabalhava para a organização. Durante três anos, os meus pais acompanharam-me e guiaram-me no caminho entre a nossa casa, em Bemori, e a escola em Taibesi Has Laran. Em 2004, comecei a ir sozinho. Foram muitas as vezes em que fui contra motas, pessoas, muros ou animais, mas continuei sempre a caminhar”.

“Consegui sair da ‘pobreza’ da educação. Se não estudarmos, não somos respeitados, sobretudo se formos portadores de alguma deficiência”

Em 2010, com 28 anos, teve finalmente a oportunidade de fazer o exame de equivalência ao ensino pré-secundário, em Bandung, na Indonésia e passou.

Em 2018, no regime especial, entrou no Departamento de Ciência Política da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Nacional Timor-Lorosa’e (UNTL), onde está, atualmente, a escrever a monografia “Participação dos deficientes no desenvolvimento nacional”. Sobre o que representa para si estar a concluir um curso superior, revela: “Quando canto a marcha da UNTL, choro, porque percebo que consegui vencer uma batalha. Consegui sair da ‘pobreza’ da educação. Se não estudarmos, não somos respeitados, sobretudo se formos portadores de alguma deficiência”.

Considera que, na UNTL, “alguns docentes discriminam os deficientes visuais. Isso ofende-me. Eu tenho princípios, não peço esmolas. Quero que me avaliem de acordo com as minhas capacidades”. Foram várias a vezes em que foi confrontado por docentes que não percebiam como fazia os exames e os trabalhos. “Mas eu expliquei que poderia fazer um exame oral. Se eu me licenciar, vou continuar a estudar para mostrar à sociedade que nós também podemos, o que falta são oportunidades. Não temos medo de competir com as pessoas não deficientes. Não vermos não significa que não temos pensamentos, não temos visões e não temos futuro”.

Gaspar Afonso lamenta que os cidadãos com deficiência que têm acesso a um sistema educativo adequado sejam ainda poucos: “Podemos contá-los pelos dedos de uma mão. Muitos querem ir à escola e têm esse direito, mas as escolas não oferecem as condições necessárias para as pessoas com necessidades educativas especiais”.

Para resolver este problema e tantos outros, o assessor  vai, muitas vezes, falar com o Presidente da República, insistindo para que pressione o Governo a atuar no sentido de resolver os problemas dos mais vulneráveis. “Sugiro que, do Orçamento Geral do Estado (OGE) se aloque um valor diretamente para as pessoas com deficiência. O Governo tem obrigação de apoiar as nossas organizações”.

 Gaspar e a família

Formou família, em 2013, quando tinha 32 anos. A esposa, Florbela dos Santos Pacheco, também é invisual. Do enlace nasceram três filhas.

A relação causou polémica e comentários entre os vizinhos, que vaticinavam que os filhos do casal nasceriam cegos. Muitos questionaram, inclusivamente, como é que dois cegos iriam cuidar de bebés. “Graças a Deus, as minhas filhas nasceram a ver”, exalta.

Gaspar Afonso e a esposa tiveram de enfrentar as críticas não só da sociedade como da família da mulher, que também não aceitou a união, mas Gaspar Afonso nunca se vergou às ofensivas preconceituosas e  sempre levantou a voz para dizer : “Se até os animais irracionais conseguem alimentar e cuidar dos seus filhos, nós também vamos conseguir. Não temos medo de enfrentar desafios”.

A missão na Presidência da República

Quando soube, em fevereiro de 2022, que Ramos-Horta era candidatado à Presidência da República, Gaspar Afonso quis encontrar-se com ele. “Quis dizer-lhe que queria ser a voz dos deficientes. Horta aproximou-se de mim e disse que se vencesse, me levaria com ele para o Palácio do Presidente”.

Após ter sido eleito Presidente da República (em abril de 2022), José Ramos-Horta reiterou a vontade de levar dois cidadãos com deficiência para trabalhar no Palácio da Presidência.

A 31 de maio de 2022, num encontro com Ramos Horta “fui informado que me deveria apresentar ao serviço no dia 1 de junho. Tive de deixar as minhas funções na AHDMTL para assumir o cargo de assessor principal para os Assuntos Sociais da Presidência”, funções que desempenha atualmente.

Confessa que nunca sonhou ocupar um cargo tão importante e ficou muito emocionado quando o Presidente o escolheu. “Ramos-Horta está envolvido em muitas organizações, como a Organização da Nações Unidas, entre outras, e confiou em mim. Não é qualquer pessoa que tem um cargo destes”.

“Sonho ser Presidente da República de Timor-Leste: estou a preparar-me, os deficientes também podem liderar, mesmo os que não têm deficiências e lideram o país não conseguem resolver os problemas”

O dia a dia de Gaspar Afonso passa por encontros com o presidente, em que tem a oportunidade de relatar as queixas dos cidadãos que vivem com deficiência. “Trabalho também diretamente com ministérios, embaixadas e agências internacionais para averiguar os problemas que mais afetam as pessoas como eu”.

Gaspar Afonso defende que esta é a primeira vez que um Presidente da República timorense dá atenção aos cidadãos com deficiência. “Muitos prometeram cuidar dos deficientes, mas como? Se derem peixe para comer, hoje comemos e amanhã acaba. O importante é dar oportunidades, ensinar a pescar”.

Durante muitos anos Gaspar Afonso viveu sem grandes sonhos ou motivações. Isso mudou quando “o trabalho em grupos e organizações de apoio a pessoas com deficiência se transformou também em coragem”. Hoje em dia  “sonho ser Presidente da República de Timor-Leste. Estou a preparar-me. Os deficientes também podem liderar, mesmo os que não têm deficiências e lideram o país não conseguem resolver os problemas”.

De acordo com os Censos de 2022 de Timor-Leste, num universo de 17.061 deficientes identificados, 6.665 são invisuais – 3.562 mulheres e 3.103 homens.

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