Festival Fronteira 2023 reconhece os conflitos do passado, mas destaca a importância de reconciliação

Grupos de dançarinos das duas nações juntaram-se para animar o público na primeira noite cultural/Foto: Diligente

O intercâmbio cultural de quatro dias entre Timor-Leste e a Indonésia pretende fomentar a fraternidade.

O Festival Fronteira 2023 está a decorrer, de 15 a 18 de novembro de 2023, no município de Bobonaro. O evento, que pretende encorajar as gerações futuras de Timor-Leste e da Indonésia a terem pensamento crítico sobre a memória do conflito político no passado, inclui seminários e intercâmbios culturais subordinados ao tema “reconciliação”.

Entre 1975 e 1999, Timor-Leste ficou sob a ocupação indonésia. O período foi marcado por muita violência, com o povo timorense a resistir e a lutar pela independência, obtida, finalmente a 20 de maio de 2002 – à custa de centenas ou milhares de cidadãos mortos pelos militares indonésios ao longo de 24 anos.

O evento deste ano foi oficialmente lançado na quarta-feira (15.11) pelo ministro da Juventude, Desporto, Arte e Cultura (MJDAC), Nélio Isaac Sarmento, em representação do primeiro-ministro timorense, Xanana Gusmão. O ministro teve a companhia do diretor-executivo do Centro Nacional Chega! (CNC), Hugo Maria Fernandes, do secretário de Estado da Arte e Cultura (SEAC), Jorge Cristóvão, do presidente da Autoridade Municipal de Bobonaro, Ernesto de Oliveira Barreto, do administrador Municipal de Belu e pelo rei de Malaca, Indonésia.

O Centro Nacional Chega!, o Ministério da Juventude, Desporto, Arte e Cultura e a Secretaria de Estado da Arte e Cultura realizam o Festival com um orçamento de 74 mil de dólares americanos, segundo o comunicado do CNC.

Os seminários, que tiveram início no segundo dia das atividades e decorrem até este sábado (18.11), permitiram aos delegados dos dois países trocar conhecimentos sobre a memória.

Na abertura do colóquio, a 16 de novembro, o presidente da República de Timor-Leste, José Ramos-Horta, ressaltou que a reconciliação é essencial, porque aproximadamente 100 mil timorenses visitam o país vizinho anualmente – depois de cidadãos de Austrália e Singapura, os timorenses são os estrangeiros que mais visitam a Indonésia, segundo a estatística do país. Ramos-Horta acrescentou que os dados oficiais relatam que sete mil indonésios residem em Timor-Leste.

“Tenho falado com o primeiro-ministro para fechar os processos relacionados com o conflito de 1974, 1975 e 1999, porque muitos timorenses que se refugiaram na Indonésia ainda têm receio de voltar a Timor-Leste”, concluiu.

O secretário de Estado, Arte e Cultura, Jorge Cristóvão, informou que o evento aborda “a cultura e o seu papel no reforço da amizade, da fraternidade e da reconciliação entre as comunidades na área da fronteira”. Avançou que é o primeiro Festival realizado pelo Governo com a participação de cerca de 300 delegados da Indonésia, composto por governantes, participantes de seminários e apresentadores culturais.

“Esta reunião mostra que o tempo e a guerra não apagam a identidade cultural que nos identifica”, afirmou Jorge Cristóvão.

Já o diretor-executivo do Chega!, Hugo Fernandes, citou no seu discurso o relatório do CNC e da Comissão de Amizade e Verdade entre Timor-Leste e a Indonésia, que pede às duas nações que encarem a cultura como um reforço da relação entre os povos.

“A ilha de Timor é sempre só uma ilha, mas a guerra e o conflito dividiram-na em duas áreas, criando fronteiras, que não devem representar barreiras para as famílias. Queremos reconstruir a corda cultural que temos desde os nossos bisavós, através do intercâmbio”, salientou o dirigente do CNC.

Para o ministro Nélio Sarmento, o Festival Fronteira 2023 é uma oportunidade de se informarem, através dos peritos da história, da relação entre Timor-Leste e Timor Ocidental, e uma forma de incentivar as gerações a respeitarem-se e amarem-se, evitando a violência. “Temos diferenças, mas devemos usar o cérebro, não o físico, porque já não há tempo para violência”, observou.

Ancestralidade

O primeiro dia do seminário e diálogo intercultural abordou o tema “De Wehali até ao Estado Moderno: Interação Social, Cultural e Política da sociedade na ilha de Timor ao longo dos tempos”. Na ocasião,  o primeiro orador, Dionísio Babo, assessor do presidente da República, começou por detalhar a origem dos timorenses, explicando que antes de ser colonizado, Timor-Leste tinha grupos étnicos que funcionavam como organizações políticas.

“De acordo com o perito português, António Quelas, em 1930, o país teve 46 régulos (grupos étnicos)”, partilhou Dionísio Babo, citando também que a ilha estava no meio da área autoritária do reino Majapahit, que governava a Indonésia, nomeadamente as ilhas de Java, mas não tinha influência nenhuma desta monarquia.

Ainda antes da colonização portuguesa, foram descobertas cavernas de abrigo em Manatuto, o que mostra a presença de grupos há cerca de 43 e 44 mil anos. Em Lospalos, mencionou que foi encontrado um anzol com 16 a 23 mil anos, verificando-se a habilidade de pescar dos povos nativos.

“O perito português, Tomás Pires, disse que no século XVI, as pessoas de Java chamavam todas as ilhas a Leste ‘Timor’. Também os navegadores mencionaram que Timor já tinha tido muitos liurais (reis) e referiram a Wehali como o centro da ilha, onde se encontravam as pessoas de Tétum, Bunak e Kemak, as línguas maternas de alguns municípios atuais”, informou o orador.

População no evento/Foto: Diligente

Seguir em frente sem esquecer a história

A moradora do suco de Balibó-vila, Casmira dos Santos Marçal, teve um irmão que morreu logo depois da Consulta Popular, juntamente com outros oito jovens, por ajudarem os guerrilheiros no mato. “A 2 de setembro de 1999, foram mantidos em cativeiro na casa perto do monumento de Integração, em Balibó. Quatro dias depois, foram levados até Batugade e assassinados lá”, contou a gaguejar.

A senhora de 60 anos não queria relembrar o passado e reabrir as feridas. “O meu irmão tinha 27 anos, quando foi executado. Mas não fomos apenas nós que sofremos, todas as pessoas, tanto em Timor-Leste como na Indonésia, passaram pela mesma coisa”, reconheceu.

Casmira Marçal afirmou que chegou a altura de seguir em frente sem esquecer a história, porque é o que forma a identidade de uma nação. “É essencial perdoarmo-nos e não ficarmos presos ao passado, porque temos de assegurar o futuro dos nossos filhos, que devem poder movimentar-se por todo o lado sem nenhum impedimento”, explicou.

Também Regina Moniz, 56 anos, considera o evento como a reafirmação do relacionamento dos cidadãos dos dois países. “Só estamos separados por um ribeiro. Todos os dias nos vemos quando vamos lavar roupa”, disse.

A família de Regina Moniz também morreu na sequência da Consulta Popular, exatamente no dia do resultado da votação, a 4 de setembro de 1999. “Mesmo que andassem no mato com armas e granadas, naquela altura, o meu marido e mais oito guerrilheiros não conseguiram fazer nada à frente dos timorenses pró-indonésios, porque estes sabiam que nós, esposas e filhos, estávamos escondidos na escola Canossa, em Manleu, Díli”, contou a senhora.

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A história da luta pela libertação é imortalizada na obra construtiva/Foto: Diligente

Inauguração do monumento Liberdade

A abertura do Festival foi antecedida pela inauguração do monumento Liberdade, em Balibó, município de Bobonaro, o lugar onde militares indonésios assassinaram cinco jornalistas internacionais, em 1975. A inauguração da obra, que deveria ter sido feita pelo presidente da República, acabou por ser realizada pelos convidados e governantes de Timor-Leste, como o diretor-executivo do CNC, o secretário de Estado da Arte e Cultura, o presidente da Autoridade Municipal de Bobonaro, o administrador do município de Belu e todos os membros da comunidade presentes.

O monumento representa a história da luta pela independência do povo timorense, constando a cronologia de 15 datas importantes, divididas em quatro períodos: a Revolução dos Cravos em Portugal em 1974 e a descolonização de Timor-Leste; o surgimento da FRETILIN, do movimento armado da UDT e o assassinato dos cinco jornalistas estrangeiros em Balibó; a assinatura da integração de Timor-Leste pela Indonésia e a consulta popular de 1999; e finalmente oficialização de Timor-Leste como nação soberana e independente.

O diretor-executivo do CNC, Hugo Maria Fernandes, enfatizou que o monumento Liberdade representa a emancipação dos timorenses. “Balibó é a primeira área do Timor Português. Quanto entramos em Balibó, encontramos o Forte Balibó, a bandeira da Austrália e o Monumento da Integração, uma lembrança de Timor-Leste quando era a 27ª província da Indonésia.”

Para o dirigente, o monumento Liberdade mostra como Timor-Leste lidou com o passado e com as diferenças que existem numa nação democrática. “A democracia é sobre como as pessoas exercem os seus direitos e valorizam os de outros. Usar a violência para atingir objetivos é um crime. Já passámos por isso durante 24 anos e esperamos que não se repita”, refletiu.

Na noite de abertura do Festival, o campo do ginásio Municipal de Maliana encheu-se de gente e música, danças culturais de Timor-Leste e da Indonésia, além de fogo de artifício. Todas as restantes manhãs e tardes do evento foram preenchidas por conversas entre especialistas sobre a história. As noites ficaram marcadas pelo intercâmbio cultural, animado por grupos de danças culturais dos dois países.

Hoje é o encerramento do Festival Fronteira 2023 e espera-se que os jovens saiam do evento com pensamento crítico relativamente à cultura e com espírito de paz.

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Ver os comentários para o artigo

  1. Desculpem-me, nao consigo tirar a “pedra do sapato”, neste “transatlantico imovel”.
    Felizes os que podem “comer a sopa” depois de malvados a terem cuspido dentro.
    Para que qualquer reconciliacao seja positiva e duradora, ha que fazer justica, ha que pedir perdao ao Povo pelos invasores.
    Nao somos bonecos de borracha!

  2. Se eu fosse de borracha!

    Se eu fosse de borracha
    Com cara de feijao preto
    Isto nao era conversa de chacha
    Pois toca-me muito no peito

    Se eu fosse boneco de cartao
    E comesse sapo vivo
    Nao so isto era gozacao
    Como seria politico no activo

    Se eu fosse Ze Cartola
    Nao batesse bem da bola
    Metesse pe na argola
    Estava apanhado da tola
    Colava puzzles com cola
    Camisa nao tinha gola
    Se um diz mata o outro esfola
    Igreja parava de receber esmola
    A pedra do sapato furou a sola

    Se eu fosse de borracha!

    Ze Carola
    Poeta e escritor de TL

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