No âmbito do Festival Fronteira 2023, o escritor de Timor Ocidental e orador convidado do evento destacou a importância de colocar as ideias no papel, e que, durante o Governo de Suharto, na Indonésia, houve tentativas de silenciar a realidade do que se passava em Timor-Leste.
No Festival Fronteira 2023 – evento que aconteceu, na semana passada, em Maliana e pretende fortalecer a relação entre Timor-Leste e a Indonésia –, Felix Kandidus Nesi, escritor indonésio, partilhou a sua experiência de como tomou conhecimento sobre o que se passava no território timorense nos últimos anos da ocupação indonésia, e de como a escrita o ajudou a escapar dos traumas. Referiu-se ao seu romance Orang-orang Oetimu (pessoas do local fictício que se chama Oetimu, 2019), o primeiro livro com personagens de Timor-Leste e de Timor Ocidental, como a “escrita das feridas”.
Orang-orang Oetimu venceu o concurso de romances do Conselho de Artes de Jacarta, em 2018, e o prémio de literatura da Agência de Línguas do Ministério da Educação, Cultura, Investigação e Tecnologia, em 2021. A obra está a ser traduzida para inglês, alemão e italiano.
No seu texto de ensaio para escrever o romance Orang-orang Oetimu, citou: “Alguns criminosos de guerra não só não foram levados à justiça, como também lhes foram confiados cargos importantes no Governo. Ativistas, que antes falavam apaixonadamente sobre a humanidade, agora estão a procurar o seu próprio caminho seguro. Os líderes religiosos jogam ainda mais seguro, refugiando-se naqueles que são fortes.”
Felix Nesi escreveu, desde 2016, oito livros e a sua última publicação Kapten Hanya Ingin ke Díli (O Capitão só Queria Ir a Díli, 2023) está nomeada para o prémio de literatura da Agência Linguística 2023, da Indonésia.
Licenciado em Psicologia na Universidade Merdeka, em Malang, Felix Nesi procura usar a literatura para causar impacto tanto em si próprio como em outras pessoas.
Relativamente ao tema “reconciliação”, que marcou o Festival Fronteira deste ano, Felix Nesi observou que é preciso conhecer e compreender a narrativa do outro e reconhecer as suas feridas. “A história é uma ferida, mas, através da escrita, é abraçada novamente e as pessoas sentem-se acolhidas”, refletiu.
O jovem de 35 anos defende que, devido ao gosto de contar histórias, as pessoas da ilha de Timor (Ocidental e Leste) têm potencial para serem escritores, mas o que está a acontecer “é que ainda não começaram a pegar na caneta e a derramar as ideias no papel.” Após a sua palestra no Festival Fronteira, o escritor conversou com o Diligente.
Como foi a sua infância?
A minha vida era normal até por volta de 1996 e 1999, quando tinha 11 anos, porque, a partir desta altura, os timorenses começaram a refugiar-se na nossa aldeia, Nesam, entre Atambua e Kefamenanu. A Indonésia invadiu Timor-Leste em 1975, mas não havia muita revolta. Até quando Xanana [Gusmão] foi capturado e levado para Cipinang também não teve muito impacto na nossa aldeia.
Em 1996, houve uma grande rebelião e os refugiados vieram e fomos afetados. Começámos a ouvir falar frequentemente sobre as questões de Timor-Leste. Na véspera do referendo, isso intensificou-se.
Os refugiados aumentaram e ocuparam os terrenos perto das escolas e das casas abandonadas. Por não haver comida, às vezes, os timorenses lutavam contra os jovens indonésios, o que afetou muito a minha infância. E os militares indonésios também vieram à minha aldeia. Eram arrogantes e poderosos e o seu entretenimento era dar palmadas e fazer bullying às crianças, a mim, inclusivamente.
Quando Timor-Leste ficava mais caótico, muitos cidadãos vinham para a minha terra. Houve ainda milícias que se sentiram frustradas e dispararam aleatoriamente nas ruas, assustando as crianças.
Porque decidiu ser escritor?
Quando era criança, gostava de ler livros e queria ser escritor, porque escrever é um meio de contar a minha infância. O que me espantou e mudou a minha vida foi o facto de a história ficcional ser valorizada. Através da escrita, podemos imaginar, criar e até receber prémios. As crianças têm o hábito de inventar coisas pequeninas, por isso, interessei-me imediatamente pela escrita ficcional.
Uso a ficção para tecer diferentes histórias numa só. Misturo a realidade com a ficção. As relações entre as personagens e as suas características são fictícias.
O que me inspirou a escrever foi a oportunidade de contar o que não se consegue relatar ou, se o fizermos, é aborrecido. Por exemplo, o relatório do Centro Nacional Chega! é muito espesso e complicado para ser lido, mas relata histórias interessantes. Se transformamos o relatório em história, é fascinante. No relatório, só sabemos quantas pessoas morrem, quando, onde e como, mas num livro de ficção, podemos criar a personalidade destas pessoas.
“O que passamos no nosso local, que faz fronteira com Timor-Leste, nunca foi abordado. E eu ignorei o sofrimento que tive de aguentar desde criança devido à ocupação indonésia em Timor-Leste. Um dos sucessos de Suharto foi conseguir que as pessoas não escrevessem sobre este assunto”
Porque decidiu escrever sobre Timor-Leste?
O livro Orang-Orang Oetimu fala sobre uma aldeia tranquila que foi perturbada pela entrada de refugiados timorenses devido à invasão da Indonésia em Timor-Leste. Oetimu é um lugar fictício e significa água de uma árvore que se chama Timu. Oetimu é um nome comum que existe em qualquer parte de Timor Ocidental.
Escrevi este livro, na verdade, para os indonésios saberem a nossa história, porque nunca é ensinada na escola e os jovens indonésios acabam por não acreditar que o seu país, uma vez, fez isso a Timor-Leste.
É uma história com personagens de dois países. Escrever sobre a ilha de Timor é uma viagem longa e cansativa de regresso a casa. Este livro é um reflexo da minha infância e contém os meus traumas. Aborda, em geral, questões sociais.
Antes, gostava mais de escrever sobre a sociedade javanesa, porque, desde criança, foi isso que foi cultivado na mente dos indonésios. A Indonésia esteve debaixo do regime autoritário de Suharto durante quase 32 anos. Na era de Suharto, todos os conhecimentos tinham origem na ilha de Java, o que fez com que olhássemos para a nossa história e cultura como inferiores e não dignas de serem abordadas. Cresci com o preconceito de que apenas os javaneses têm cultura e um estilo de vida interessantes, que merecem ser contados e que devemos ter como exemplo.
Também a história que aprendemos na escola e os livros infantis falam de como o militar indonésio ajudava as crianças de Timor-Leste. O que passamos na nossa terra, que faz fronteira com Timor-Leste, nunca foi abordado. E eu ignorei o sofrimento que tive de aguentar em criança devido à ocupação indonésia em Timor-Leste. Um dos sucessos de Suharto foi conseguir que as pessoas não escrevessem sobre este assunto.
Depois de ler muitos livros, os meus olhos abriram-se. Agora, gosto mais de escrever sobre a minha aldeia, o meu suco, a nossa zona rural. Um membro do júri chegou a referir-se ao meu romance Orang-Orang Oetimu como “uma etnografia bem trabalhada”. Neste livro, além de contar o que vivi, entrevistei muitas pessoas, como sacerdotes, polícias, e li o relatório do Centro Nacional Chega!. O processo demorou entre três a quatro anos.
De que fala a sua primeira obra?
O primeiro livro, de 2016, intitulado Usaha Membunuh Sepi (O Esforço de Matar o Silêncio), aborda a história de Timor Ocidental, nomeadamente os problemas sociopolíticos como a seca e os caminhos ilegais (mais conhecidos como Jalan Tikus) que surgiram, porque as famílias foram separadas de repente: algumas ficaram em Timor-Leste e outras na Indonésia. No livro, quando morreu a avó, o único caminho para poder assistir às cerimónias fúnebres era ilegal. O livro diz assim: “criem a vossa nação à vontade, só queremos enterrar a nossa avó, não faz sentido termos de tratar do passaporte e de outros documentos para isso.”
Quais são os desafios de escrever um livro?
Para um livro de ficção, como Orang-Orang Oetimu, um dos desafios é verificar os dados. Não consigo pensar em outros, porque gosto de ler desde sempre e escrever desde o ensino primário.
O que é preciso para ser escritor?
Leia muito e comece a escrever. A ilha de Timor, tanto Timor-Leste como Timor Ocidental, tem muitas histórias para contar. E as pessoas desta ilha gostam de contar histórias em todas as ocasiões, principalmente nas reuniões familiares. São contadores espetaculares de histórias e têm muito potencial para serem escritores.
Quando se reúnem, às vezes, mesmo que saibam que a pessoa que está a contar a história está a mentir, os ouvintes preferem deixá-la falar por estarem animados. E podem ficar acordados até ao dia seguinte a conversar. Claro que é preciso estudar, mas a história já está na cabeça. É só aprender as técnicas de escrita.
O que está a escrever ou pretende escrever?
Estou a escrever o guião de uma longa-metragem sobre os cidadãos da ilha de Timor que foram obrigados a serem criminosos em Jacarta. As personagens são misturas de diferentes locais de Timor, porque, normalmente, nas capitais, as pessoas da ilha de Timor juntavam-se e consideravam-se irmãos. A história aborda como criaram negócios e sobreviveram lá.
Se fosse nasi, traria muita paparoca ao povo maubere.