Falta de políticas públicas multiplica animais de rua e maus-tratos em Timor-Leste

Um dos vários cães doentes nas ruas de Díli, sem acesso a cuidados de saúde. Foto: Pene Worth.

No país, não há programas de esterilização ou abrigos para animais que vivem nas ruas, o que também contribui para a disseminação de zoonoses. O único apoio que estes animais recebem é de voluntários 

“De tão magra que estava, era só ossos, pelo e olhos. Já não andava: cambaleava. Olhou para mim e eu vi um sofrimento igual ao de qualquer humano. Aquele olhar era um pedido de ajuda. Sabia que, se a deixasse ali, morria. Nesse dia, não aguentei. Peguei nela, levei-a para casa e chamei o veterinário, que me disse que a gatinha podia não sobreviver”, conta Cláudia, que, até esse dia, “fazia um esforço enorme para, em Díli, olhar para o lado e não ver os maus-tratos e o sofrimento de muitos animais”.

Portuguesa, de 44 anos, Cláudia Alves gosta de animais desde criança. Os gatos não eram o seu animal preferido. Porém, em 2020, apareceu-lhe Kitty, uma gatinha com cerca de 3 meses, entre a vida e a morte, que “lhe mudou a sua perceção sobre este animal, mas também a vida”.

Nunca mais deixou de olhar para o lado, até porque “salvar um animal e sentir a gratidão desse bicho é viciante”. Além da agora saudável Kitty, Cláudia tem mais cinco gatos, todos resgatados doentes da rua, mas também acolheu e tratou de mais dez até serem adotados.

Questionada sobre qual a razão para ajudar gatos, Cláudia resume: “Os animais sofrem e não gosto de sofrimento, nem em pessoas nem em animais, que são seres indefesos. Além disso, podem fazer muitas famílias felizes. Mas tirá-los da rua é também uma questão de saúde pública”. E conta: “Antes de a resgatar gravemente doente, Kitty andou com diarreia e vómitos pela relva onde costumam brincar crianças. É fácil imaginar as consequências para a saúde dessas crianças”.

Animais doentes a vaguearem pelas ruas

Além de evitar a reprodução descontrolada dos bichos, programas com o objetivo de os retirar das ruas ajudam na redução de transmissão de doenças de animais infetados (por vírus, bactérias, protozoários ou parasitas) a seres humanos, conhecidas como zoonoses. Entre as mais comuns estão a raiva (transmitida pela mordida de um animal, como um cão), leptospirose (encontrada em água contaminada pela urina), toxoplasmose (alimentos contaminados por fezes) e sarna (doença de pele).

“Por cada animal que esterilizamos, acabamos por tirar milhares da rua, sem cometermos crimes contra os bichos, e contribuímos para a saúde de todos, animais e pessoas”

Os programas que recolhem os animais das ruas, comuns em muitos países – mas não em Timor-Leste –, encaminham os bichos para abrigos, onde são tratados, vacinados, esterilizados e alimentados . Posteriormente, são colocados para adoção.

Já os animais que não se adaptam ao ser humano e que sempre viveram na rua são apanhados, esterilizados, para não se reproduzirem, e devolvidos ao meio de onde saíram.

Sem a esterilização, por exemplo, uma gata de rua pode ter três ninhadas por ano, o que, multiplicado por vários anos, dá origem a milhares de gatos. Cláudia explica: “Não ajudei apenas 16 gatos doentes. Por cada animal que esterilizamos, acabamos por tirar milhares da rua, sem cometermos crimes contra os bichos, e contribuímos para a saúde de todos, animais e pessoas”.

Procurada, a Direção-Geral da Veterinária e Pecuária de Timor-Leste limitou-se a informar que a esterilização de animais no país é da responsabilidade dos donos.

Apesar de não possuir programas de recolha ou abrigos para bichos, Timor-Leste conta, desde 2014, com uma lei que restringe a circulação de animais nas ruas. O decreto nº 12/2014 visa a “preservação da condição higiénica nas áreas urbanas e periféricas”.

A lei proíbe, por exemplo, a “permanência de animais soltos ou atados nas áreas urbanas, nas estradas e lugares públicos ou locais de livre acesso ao público”. Contudo, não define o encaminhamento dos bichos para um abrigo.

Em Díli, é relativamente fácil encontrar animais presos pelas ruas. Um desses é um bode, a poucos metros da residência do Presidente da República, José Ramos-Horta, em Metiaut. Desde o início do ano, o animal está na beira da estrada, com uma corda atada ao pescoço, que só lhe permite circular nuns míseros 2 metros quadrados.

Na tarde de uma quarta-feira, sob o sol escaldante, o bode inclina a cabeça para o balde azul ao seu lado, na esperança talvez de matar um pouco da sede, mas o recipiente está vazio. Exposto à poeira, vento e chuva, o animal, sem ter como pedir ajuda, sobrevive como pode.

O bode solitário de Metiaut/Foto: Diligente

Segundo o artigo 11.º do decreto-lei, os animais apreendidos podem ser “sacrificados in loco” (mortos no local em que são encontrados), ir para leilão, doação ou detidos por dez dias – sem, no entanto, especificar onde.

A legislação, porém, contraria os princípios da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, aprovada pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), em 1978. De acordo com o artigo 2.º, “todo o animal tem o direito à atenção, aos cuidados e à proteção do homem”. Já o artigo 3.º estipula que “nenhum animal será submetido nem a maus-tratos nem a atos cruéis”.

Ao Diligente, o Diretor Nacional da Pecuária, Carlos Antunes Amaral, informou que a execução da lei nº12/2014 é da responsabilidade dos municípios. Explicou também que os animais não são sacrificados “in loco”. A recomendação, diz Carlos, é para que os bichos sejam apreendidos e levados para locais específicos, onde podem ficar por dez dias. “Depois desse período, se o dono aparecer, paga coima conforme a lei. Se ninguém aparecer, os bichos podem ser encaminhados para as F-FDTL [Falintil -Forças de Defesa de Timor-Leste] ou irem para leilão”, afirmou.

Carlos Amaral acrescentou que a inexistência de abrigos para animais nos municípios se deve à “falta de recursos financeiros e humanos”.

“Muitas pessoas ainda não têm consciência da responsabilidade de ter um animal”

O médico veterinário Antonino do Carmo sublinha a importância de as autoridades criarem medidas que ofereçam abrigo e esterilização aos animais em Timor-Leste, “com programas claros que garantam a boa alimentação e os cuidados necessários”. Antonino critica ainda o Governo, que, na sua opinião, “só protege os animais que são criados para vender”.

O veterinário chama também a atenção para o facto de, no país, grande parte dos donos não vacinar os animais. “Muitas pessoas ainda não têm consciência da responsabilidade de ter um animal”, observa.

Não é o caso de Nobelinha Sarmento, 26 anos, dona de três cães. Para a estudante, manter os bichos vacinados é uma garantia de bem-estar, “tanto o deles como o nosso”. “Sempre que noto algo diferente no comportamento dos três cães, entro logo em contacto com o veterinário, explicando-lhe os sintomas para saber o que têm. Se for necessário, levo-os à clínica”, detalha.

O Diligente entrou em contacto com a Associação dos Médicos Veterinários de Timor-Leste (AMVTL) e com a Direção Nacional de Veterinária para saber os registos mais atuais de zoonoses no país, mas ambas as instituições destacaram que, no momento, não possuem dados. Porém, enfatizaram que será realizado um “estudo profundo sobre o tema”.

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Kitty, gata tirada doente da rua. Antes, já em tratamento, e depois (em casa) adulta, saudável e feliz. Fotos: Antonino do Carmo e Cláudia Alves
Animais maltratados

Não existem abrigos, programas de esterilização ou uma lei de proteção dos animais de companhia. Uma fonte que trabalha com animais em Timor-Leste, mas que preferiu não se identificar, relatou que casos de maus-tratos aos bichos são recorrentes no país. A fonte já atendeu diversas situações de animais que lhe chegam com infeções por causa de ferimentos provocados por atos de violência cometidos por pessoas.

Cães golpeados por catanas ou alvo de mutilações genitais são alguns dos casos. Uma das situações envolveu um cão com o testículo amarrado por uma corda e que resultou numa infeção. A intenção do dono, detalha, era castrar o bicho sem anestesia. “Uma crueldade sem tamanho”, resume a fonte.

“Muitos acham ridículo recolher fundos para esterilizar gatos. Os que dizem isso não valorizam os animais”

Os maus-tratos aos animais em Timor-Leste causam indignação também a Titi Irawati Supardi, indonésia de 68 anos. Recorda um episódio em Díli, em 2006. Na altura, o país passava por uma crise política e muitas pessoas refugiaram-se na associação HAK, no Farol. “Vi que algumas tinham levado cães. Pensei que o tinham feito por gostarem dos animais e os quererem proteger. Estava enganada. À noite, ouvi o choro dos cães e saí para ver. Estavam a matá-los para os comerem. Chorei muito”, lembra.

Embora em outros países a carne de cão também faça parte da gastronomia, o que Titi viu marcou-a. Desde então, passou a resgatar animais de rua. Atualmente, vive com 20 gatos e três cães. Criou também um grupo que, de forma independente, promove a esterilização de gatos recolhidos pela Organização Não-Governamental (ONG) Haburas, onde vivem muitos felinos abandonados. O procedimento com os animais é feito em clínicas veterinárias. “Não é barato. Às vezes, não fazemos [a esterilização] por falta de dinheiro”, lamenta.

Titi conta com a ajuda de alguns voluntários, como a ativista timorense Berta Antonieta. “Muitos acham ridículo recolher fundos para esterilizar gatos. Os que dizem isso não valorizam os animais”, conta Berta. Para a ativista, a violência cometida contra os animais é um reflexo do comportamento nocivo do ser humano de forma geral.

Para o desinteresse em relação ao sofrimento dos animais, além da falta de recursos financeiros da maioria dos timorenses para tratar os animais, contribuem inúmeras superstições e os gatos são os que mais sofrem com elas. Por serem muitas vezes símbolo de azar, os felinos não servem de alimento, mas são encarados de forma negativa devido a vários mitos enraizados em torno do animal.

Muitos timorenses acreditam que os gatos provocam acidentes, quando transportados numa viatura, que trazem má sorte quando são mortos, mesmo que acidentalmente, que lançam feitiços com o olhar ou anunciam a morte de alguém através dos miados do cio. Em tétum, usam-se expressões como “busa iis” (respiração do gato) ou “busa mear” (tosse do gato) para denominar a asma.

Animais sacrificados em lutas, rituais e cerimónias culturais

Outras questões culturais levam igualmente ao desrespeito pelos direitos dos animais, de que são exemplo as lutas de galos ou o sacrifício em rituais e cerimónias culturais timorenses, que variam de acordo com os municípios, postos administrativos e sucos.

Segundo a monografia de Romeu Soares da Silva, intitulada “Os animais nas cerimónias e rituais tradicionais em Marobo, Timor-Leste: uma contribuição etnozoológica para Zoparqueologia”, “os animais servem como meio de unir os dois mundos, o mundo do ser humano e o mundo sobrenatural e também como uma demonstração de desculpas sobre os erros humanos cometidos contra a lei da natureza”.

Descreve-se, ainda na dissertação, um ritual em Marobo. “Quando não chove no tempo previsto, os anciãos deslocam-se aos locais sagrados, onde comunicam com a natureza ou com Deus (divindade que tem força sobre a natureza), enquanto seguram um galo/uma galinha e o/a oferecem à natureza e/ou Deus. Cortam-lhe o pescoço, usam o sangue para molhar as folhas e noz-de-areca e deixam tudo no local. O procedimento seguinte é abrir o galo/galinha para tirar o intestino e o pâncreas para perceber a resposta da natureza”.

“Considero a forma de matar os animais muito cruel. Por exemplo, os cabritos são asfixiados com uma corda, os porcos são mortos com uma faca espetada no pescoço e cortam o pescoço dos galos/galinhas”

O veterinário Antonino do Carmo explica que sacrificar animais para rituais ou cerimónias culturais é algo antigo. “Isto acontece desde o tempo dos bisavós e as gerações agora imitam e acham que é uma coisa boa. Eu próprio não concordo, mas a sociedade já esta habituada a realizar este tipo de procedimento”, argumenta.

Por sua vez, Olávio Morais, presidente da AMVTL, avalia que a cultura não deve ser diminuída ou trocada por outra. “No entanto, considero a forma de matar os animais muito cruel. Por exemplo, os cabritos são asfixiados com uma corda, os porcos são mortos com uma faca espetada no pescoço e cortam o pescoço dos galos/galinhas”. Enquanto veterinário, Olávio apela à comunidade que não mate os animais de forma cruel.

Entretanto, nas ruas de Díli, continuam a vaguear animais maltratados, magros e doentes, como se também eles fossem objetos que fazem parte do lixo espalhado pela cidade e não seres sencientes, que sentem dor como os humanos. Ghandi dizia que a grandeza de uma nação pode ser avaliada na forma como as pessoas tratam os animais. Como avaliar, então, Timor-Leste?

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    1. Pois, Carlos. Ninguém duvida de que as pessoas estão mal. É por isso que os animais também vivem muito mal e não têm quase ninguém que os defenda. O problema não é só a pobreza. É a falta de civismo e os maus-tratos aos animais. Vi muitas situações de crueldade completamente desnecessárias. Além disso, melhorar a vida dos animais, como explica a reportagem, é também melhorar a vida das pessoas. Já viu o cão da foto? Quantas pessoas já terão ficado doentes, se é sarna? Não sei como está a situação agora, mas, há uns anos, a sarna era uma das doenças com maior prevalência nos centros de saúde timorenses.

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