Falta de confidencialidade e discriminação persistem como causas do abandono de tratamento por indivíduos com VIH/SIDA

O diagnóstico precoce permite iniciar o tratamento o mais cedo possível, protegendo-se contra infeções oportunistas /Foto: OMS

De acordo com o Instituto Nacional do Combate ao VIH/SIDA, de 1996 seropositivos, registados de 2003 a 2023, cerca de 400 pararam de tomar os medicamentos antirretrovirais doados pelos centros de saúde.

“Esta mulher tem VIH, é uma puta e burra. Quis acabar com a minha vida, mas pensei no meu filho, que ainda é pequeno, e mudei de ideia”.

“Depois de dois dias de saber o resultado do teste, toda a comunidade já tinha sido informada. Ninguém queria estar perto de mim, chegaram mesmo a deixar de comprar produtos no meu quiosque. A minha família preparou um lugar no galinheiro para eu viver. Fui vista como um nojo”.

“Ainda não sabia o resultado do teste, mas os profissionais de saúde já sabiam. Três dias depois de ter feito o exame, fomos convocados para saber o resultado. Se o meu resultado fosse positivo e do meu parceiro negativo, não queria que ele soubesse imediatamente do meu estado, mas, naquele dia, chamaram-no primeiro”.

“Quando descobri que estava infetado, fiquei com medo e culpei-me”.

Os testemunhos supracitados, de quatro pessoas diferentes, fazem parte do documentário intitulado Haksolok (Alegria), da autoria da Organização Não Governamental (ONG) Estrela+, que atua na defesa dos direitos das pessoas com VIH/SIDA em Timor-Leste.

Um estudo da ONG, de 2019, denominado “Índice do Estigma”, evidenciou que 40% dos timorenses infetados tiveram o diagnóstico revelado aos familiares por pessoal de saúde sem terem dado consentimento. Mostrou ainda que 90% das mulheres com VIH/SIDA sofrem abuso verbal e físico e 60% de todos os participantes do levantamento reconheceram que têm baixa autoestima.

Para a Estrela+, a falta de confidencialidade representa uma violação dos direitos humanos e a desinformação leva à estigmatização e discriminação, contribuindo para que os seropositivos sejam excluídos, ameaçados, culpados e envergonhados. Em certos casos, há episódios de violência e alguns doentes chegam a ter pensamentos suicidas. A ONG está a elaborar um segundo estudo, para ser divulgado em breve.

O desrespeito pelo sigilo do paciente por profissionais da saúde contraria o que prevê a Lei nº 10/2004 (do Sistema de Saúde em Timor-Leste), que, no artigo 7º, sublinha que é direito dos utentes a garantia da privacidade e confidencialidade dos dados pessoais – em consonância com os códigos éticos e deontológicos da profissão de médico.

“Na nossa profissão, juramos manter a informação dos pacientes em segredo e ter cuidado na abordagem. Os profissionais de saúde que não respeitem esse princípio devem ser punidos”, afirmou Elvis Guterres, médico geral do programa VIH/SIDA no hospital em Formosa, Díli.

Outra razão que afasta os pacientes de continuar o tratamento tem a ver com a preferência em recorrer a medicamentos tradicionais em detrimento dos antirretrovirais. No país, devido a aspetos culturais e apego a crenças, muitas pessoas acreditam que a infeção do vírus é uma maldição ou castigo dos antepassados.

Contribui também para o abandono do tratamento a dificuldade de acesso aos medicamentos. Como os antirretrovirais estão em hospitais ou postos de saúde, alguns cidadãos, sobretudo os que vivem em áreas remotas, têm dificuldade na deslocação – devido à falta de dinheiro para o transporte ou mesmo às precárias condições das estradas.

De acordo com o Instituto Nacional do Combate ao VIH/SIDA (INCSIDA), de 1996 seropositivos, registados de 2003 a 2023, cerca de 400 abandonaram o tratamento.

Diferença entre VIH e SIDA e importância do tratamento

Elvis Guterres, que também integra a Maluk Timor, uma ONG que apoia o sistema de saúde timorense, explicou que o Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH) é o que causa a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA). O VIH ataca o sistema imunológico da pessoa, tornando o corpo mais suscetível a infeções e doenças.

A SIDA, argumentou Elvis Guterres, é o estágio mais avançado da infeção pelo VIH. Uma pessoa é diagnosticada com SIDA quando o seu sistema imunológico está severamente danificado, medido por uma contagem de células CD4 abaixo de 200 por milímetro cúbico. Neste estágio, o corpo tem dificuldade em combater infeções e doenças, e a pessoa é mais suscetível a uma série de problemas de saúde graves, como certos tipos de cancro.

O que os antirretrovirais fazem, portanto, é limitar a replicação do VIH no corpo, para impedir que a pessoa desenvolva SIDA. Quando a quantidade do vírus diminui até menos de 40 cópias, o VIH não é transmissível. Um bebé, filho de pais seropositivos que seguem o tratamento, pode nascer, por exemplo, sem ser contaminado pelo vírus. “Por isso, é importante tomar os medicamentos para evitar a transmissão e não desenvolver SIDA”, aconselhou o médico.

Para que o VIH se mantenha controlado ou diminua, o paciente precisa de tomar os antirretrovirais todos os dias, para toda a vida. Em Timor-Leste, o medicamento é distribuído gratuitamente nos hospitais e centros de saúde. Recomenda-se que os seropositivos realizem uma consulta de três em três meses para verificar o nível de VIH no corpo.

No entanto, o médico salientou que, sem um tratamento adequado, o vírus replica-se e, depois de 5 ou 10 anos, consegue danificar a imunidade, desenvolvendo a SIDA. Nessa altura, a quantidade de vírus ultrapassa 50 mil cópias e a pessoa facilmente transmite o vírus e contrai infeções oportunistas, como a tuberculose.

Elvis Guterres sublinhou, portanto, que o VIH/SIDA não é uma doença. “Não chamamos os seropositivos de Ema Moras VIH/SIDA (Pessoas com doença VIH/SIDA), mas de Ema Moris ho VIH/SIDA (Pessoas que Vivem com o VIH/SIDA)”, distinguiu.

Transmissão e deteção

De acordo com Elvis Guterres, a transmissão do VIH não acontece apenas através de relações desprotegidas, mas também por meio de partilha de seringas e lâminas não esterilizadas. Além disso, explicou, “uma mãe seropositiva com carga viral alta também pode transmitir VIH ao bebé, durante a conceção, o parto e a amamentação”.

O médico informou ainda que o vírus só é detetado três meses depois de se infiltrar no corpo. Os sintomas de VIH envolvem constipação, dor de garganta, de cabeça e de corpo, além de febre durante alguns dias.

A deteção do VIH pode ser feita com um teste rápido em centros de saúde e demanda apenas uma gota de sangue. O procedimento leva menos de 30 minutos. Já o exame laboratorial, que é mais preciso, só é necessário se o teste rápido for positivo.

As pessoas com SIDA são tratadas primeiro com medicamentos para combater a infeção oportunista. Depois, continuam a tomar os antirretrovirais. O tratamento tardio de pessoas que desenvolvem SIDA pode levar à morte, pois se a imunidade estiver muito fragilizada é difícil recuperar das infeções.

Elvis Guterres alerta ainda para a resistência do vírus aos antirretrovirais, se forem tomados sem seguir a rotina ou se deixar de os tomar durante uma semana. “Depois de um mês sem tratamento, a pessoa fica bem, mas a partir de um ano, já será suscetível a infeções oportunistas”, especificou. Se voltar ao tratamento, são aplicados os medicamentos de segunda linha, que são mais fortes do que os primeiros.

Em meados de 2021, o Ministério da Saúde trocou o antirretroviral de primeira linha. Cada dose do atual medicamento tem 600 miligramas, em vez de 1,2 gramas. “É mais eficaz do que o anterior, que tinha mais efeitos secundários, e ao qual muitas pessoas já são resistentes”, observou o médico.

Desinformação

O presidente do INCSIDA, Daniel Marçal, ressaltou que o órgão tem realizado campanhas de sensibilização em escolas, universidades, aldeias e sucos para informar a população sobre os comportamentos de risco (sexo sem preservativo, contacto com seringas ou lâminas não esterilizadas), a importância de realizar os testes de sangue e de não abandonar os antirretrovirais em virtude das abordagens tradicionais.

Em Timor-Leste, o desconhecimento sobre VIH/SIDA ainda é evidente. Em Becora, onde o INCSIDA realizou uma ação recentemente (11 de abril), Maricol da Costa, 36 anos, pensava que não havia tratamento para os seropositivos. Também Agostinha Soares, 51 anos, moradora do suco, achava que a condição era exclusiva das prostitutas.

De acordo com o INCSIDA, entre os 1996 seropositivos registados de 2003 a 2023, 1,3 mil são homens e cerca de 600 são mulheres. Estão a fazer tratamento 1078 pessoas e 329 morreram.

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