Prática comum no ensino superior em Timor-Leste, estágio social implica trabalho físico, forçado e gratuito por meses, em atividades que nada têm a ver com a área de formação dos universitários. Defensores da dinâmica destacam retorno para sociedade, sobretudo para as comunidades carenciadas.
Para alguns, a universidade foi a melhor fase da sua vida. Para outros, tornou-se um pesadelo. No entanto, todos têm um mesmo sonho: atingir um patamar mais alto na vida profissional. Para que isso se concretize, em Timor-Leste é necessário fazer o estágio social, uma das últimas etapas para concluir o curso, realizada antes da apresentação da monografia. O problema é que, para muitos universitários, a dinâmica significa sofrimento, já que são obrigados a fazer atividades – muitas vezes puramente braçais– que não têm qualquer ligação com a área de formação.
Numa segunda-feira nublada, por volta das sete da manhã, percebiam-se os autocarros que entravam e saíam pela porta principal da Faculdade de Economia e Gestão da Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL) para apanhar os cerca de 100 estudantes estagiários, com destino a Aileu.
Olhares desassossegados e lamentações por dizer, um a um, os jovens, carregando malas, documentos pessoais, tendas, almofadas, cobertores, lençóis, panelas e pratos, entravam nos veículos. Levavam consigo incertezas quanto um futuro melhor e tudo o que achavam necessário para se manterem durante alguns meses no serviço de estágio social.
Ana Costa (nome fictício), finalista da Faculdade de Economia e Gestão na UNTL, fez o estágio social no ano passado e não ficou satisfeita com o modo como se concretizou. “Depois de três anos de estudo, para terminar o curso, em vez de fazermos um estágio profissional ligado à área, perdemos dois meses a construir um campo de futebol em Same”, disse Ana, com alguma revolta.
Identificar o terreno, fazer serviço de limpeza, elaborar uma proposta de apoio para conseguir fundos para comprar materiais de construção, até à construção propriamente dita, foram as atividades sociais que Ana Costa e colegas tiveram de realizar. A universitária, que se sentiu explorada durante todo o período, diz que o sentimento é comum a muitos outros jovens que optam por ficar em silêncio e não se manifestam por medo de represálias. O assunto, porém, faz parte do dia a dia nas conversas de corredor nas universidades timorenses.
“Usar o estágio social para justificar trabalho gratuito é uma forma de exploração moderna”
Adriano Verdial, 27 anos, terminou a licenciatura em Comunicação Social na UNTL em 2021, mas confessa que “não foi um final feliz”. O processo por que passou com os colegas, relata, não foi agradável. O jovem, tal como os restantes estagiários, aceitou seguir as regras para concluir a licenciatura.
Para Adriano, os dois meses de estágio social foram “infernais”, de puro “desperdício de tempo”. Noites mal dormidas, frio, mosquitos, má alimentação, entre outras coisas que, em nada contribuíram para a formação, foram alguns dos problemas levantados pelo jovem.
“Não tínhamos condições para dormir. Ficámos na sede de suco em troca de serviços, como a limpeza nos arredores do suco e ainda tínhamos de gastar dinheiro para comprar tintas para pintar o prédio da sede. Eu não me importo de ajudar as pessoas. O problema é que estamos a fazer um trabalho que não deve ser o nosso e usar o estágio social para justificar trabalho gratuito é uma forma de exploração moderna”, lamentou.
Natalino de Jesus Costa, 24 anos, terminou o curso em Relações Internacionais na Universidade da Paz (UNPAZ), em 2021. Tal como Ana Costa e Adriano Verdial, a experiência não foi boa.
“O nosso estágio social demorou um mês. Resumiu-se à construção de uma cerca para a nossa universidade, o que não me agradou muito”, disse o jovem, acrescentando que os responsáveis do estabelecimento de ensino superior justificam o estágio com o lema da UNPAZ, que refere os estudantes como “agentes transformadores”.
Uma justificação que, para Natalino, está um pouco distante da realidade, visto que os estudantes acabam por ser “trabalhadores obedientes”.
O lado bom do estágio social (para alguns)
Ao contrário de outros colegas, há quem veja o estágio social com “bons olhos”. É o caso de José Barros, finalista do departamento de Filosofia, e de Isabela Fernandes, finalista do departamento de Geologia e Petróleo, ambos na UNTL. Ainda assim, tudo depende da “sorte” de cada estágio e da experiência de cada jovem.
José Barros fez o estágio social em junho deste ano, mas, no seu caso, só demorou um dia. A atividade consistiu em ajudar a construir o convento das madres, no Posto Administrativo Hatulia, em Ermera.
“O convento das madres estava em construção e quase finalizado. Como os construtores pediam uma quantia muito grande para deixar a obra pronta de uma só vez, as madres recusaram, porque só faltava colocar argamassa no chão. Portanto, uma das madres entrou em contacto com o nosso decano. Ambos concordaram em realizar o estágio social lá. Éramos 40 estagiários. Fomos numa sexta-feira, aplicámos a argamassa no dia seguinte e voltámos para Díli, no domingo”, explicou.
Para o estudante, o estágio social “é uma experiência académica fundamental para o desenvolvimento pessoal, principalmente nas relações humanas”.
O mesmo se passou com Isabela Fernandes. O estágio social ensinou-lhe o verdadeiro sentido de estender a mão a quem mais precisa e de amar o próximo, sobretudo a população nas áreas rurais. A universitária defende com afinco que a atividade é necessária para todos os estudantes de qualquer faculdade.
“Conhecer a realidade de cada município ajuda-nos a perceber as necessidades das pessoas para que, um dia, quando terminarmos os estudos e trabalharmos no Governo, possamos, de alguma forma, ajudar a população no que for preciso”, argumentou, com confiança.
As palavras dos jovens coincidem com a ideia que alguns responsáveis tentam transmitir. Luís Maia, Vice-decano dos Assuntos Académicos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, afirmou que o trabalho desenvolvido no convento de madres em Hatulia é uma forma de serviço social. Para o professor, a ação faz parte de uma iniciativa abrangente, “através de debates, palestras, ajuda a pessoas necessitadas e tudo é supervisionado”.
O decano da Faculdade de Ciências Sociais da UNTL, Camilo Ximenes Almeida, em declarações ao Diligente, sublinhou que o estágio social contempla a tripla missão da instituição: ensino, pesquisa e serviço e dedicação à sociedade. “O laboratório dos estudantes de Ciências Sociais é a sociedade. Deste modo, o estágio social aqui na Faculdade é obrigatório e faz parte do currículo”, justificou.
Acrescentou ainda que, se alguns estudantes não ficarem contentes com o estágio, que se dirijam diretamente à reitoria, uma vez que a faculdade apenas implementa o programa da universidade.
Por sua vez, o decano da Faculdade de Economia e Gestão, Filipe Mendes Pereira, corroborou as declarações de Camilo Almeida, e reforçou a ideia do colega, referindo as três principais vertentes do percurso académico em Timor-Leste.
Filipe Pereira realçou ainda que a decisão em aplicar ou não o estágio social no programa curricular de determinado curso pertence a cada faculdade.
“No nosso caso, achamos que o estágio social é relevante para as comunidades nas áreas rurais, porque os estagiários têm ajudado muito na melhoria das condições de vida da população em zonas mais remotas”, destacou.
Filipe Pereira deu o exemplo do ano passado, em que um chefe de suco de Laleia pediu aos estagiários para ajudarem a construir uma casa de banho para uma família vulnerável. Os estudantes fizeram uma proposta de patrocínio ao Ministério da Solidariedade Social e a algumas empresas privadas para conseguirem os materiais de construção. Dessa forma, a casa de banho foi feita.
“Quando se fala de social, você dá o que tem. Não pode ser uma obrigação”
Em alguns cursos superiores em Timor-Leste não se aplica o estágio social. A Faculdade de Direito da UNTL é um deles. O decano do curso, Isidoro Viana, considera o estágio profissional mais viável, “por permitir ao estudante o acesso a uma formação em contexto de trabalho e, sobretudo, a possibilidade de vivenciar uma situação concreta na respetiva área de formação, supervisionada por um profissional”.
Na avaliação de Isidoro, o estágio social deve ser uma atividade voluntária. “Quando se fala de social, você dá o que tem. Não pode ser uma obrigação”, observou.
Na mesma perspetiva, Teodoro Soares, decano da Faculdade de Educação, Artes e Humanidades na UNTL, defende o estágio profissional como sendo o mais adequado, “por preparar melhor os jovens para o ambiente de trabalho no futuro”.
O professor recordou que, anteriormente, a faculdade também aplicava o estágio social, como atividade obrigatória. A dinâmica acabou em 2012. “Vimos que, em 75% dos casos, não havia um contributo para a vida profissional, porque os estudantes andavam só a construir contentores de lixo nos municípios. Decidimos, então, passar o estágio social para estágio profissional/pedagógico, com a duração de seis meses”, informou.
Explicou ainda que, apesar de o estágio social poder fazer parte do currículo, os responsáveis da faculdade têm autonomia para decidir quais são atividades educativas que os alunos devem fazer. “Se os alunos sentem que estão a ser abusados, é necessário tomar medidas em conjunto, que abranjam alunos, professores e funcionários, para o bem comum”, concluiu.
O Vice-Reitor dos Assuntos Académicos da UNTL, Samuel Freitas, disse que não há regulamento específico sobre o estágio social. Esta prática é uma iniciativa antiga que vem de cada faculdade para ajudar a comunidade, porém, “independentemente de haver ou não regulamento académico, isso não impede que as faculdades a implementem ou encaixem no currículo”.
Samuel Freitas considera que a etapa é uma maneira de incrementar competências sociais, que servem de complemento à formação académica. “Sempre que surge algum problema ou alguns estudantes ficam descontentes com alguma prática, é da responsabilidade da faculdade resolver e corrigir as falhas. Os estudantes têm de avaliar e dar retorno através do departamento que se dedica a esses assuntos”, esclareceu.
O Diligente entrou em contacto com a Agência Nacional para a Avaliação e Acreditação Académica (ANAA), o instituto público responsável pela garantia da qualidade do ensino superior.
Apesar de ter um programa que permite avaliar e registar os processos, resultados e decisões de avaliação da qualidade e de acreditação, o Diretor-Executivo, Nilton Paiva, limitou-se a dizer que, “se houver mesmo casos de exploração dentro do estágio social, é um problema interno da universidade”. Dito isto, o diretor não quis prestar mais declarações.
O decreto-lei nº 21, de 1 de dezembro de 2010, da ANAA, aborda os requisitos para a acreditação de um ciclo de estudos, destacando (no artigo 21.º, alínea a), que as atividades desenvolvidas se devem tratar de “um projeto educativo, científico e cultural próprio, adequado aos objetivos fixados para esse ciclo de estudos”.
Já o artigo 22.º estipula no primeiro parágrafo: “O incumprimento dos requisitos legais ou das disposições estatutárias e o incumprimento dos critérios científicos e pedagógicos que justificaram a acreditação determinam o seu cancelamento, após audiência prévia da instituição em causa”.
Entre o desejo de terminar um curso superior e o “preço” a pagar para tornar esse sonho realidade, levantam-se questões que apontam para uma reflexão a respeito das medidas que vigoram no ensino superior em Timor-Leste.
Se a consciência social justifica o trabalho obrigatório de jovens junto da população, deve-se considerar que uma parte desse trabalho deveria ser da responsabilidade das entidades competentes. Um estudante que é forçado a trabalhar gratuitamente meses a fio pode ser, assim, encarado como um “agente transformador”?