“Dois são um”: consumidores burlados no mercado de Taibessi

Mesma quantidade de carne, pesada em diferentes balanças, mostra uma possível falta de calibração/Foto: Diligente

Há clientes a pagar por um quilograma de carne o preço de dois. A lei de proteção dos consumidores exige que os vendedores apresentem informação verdadeira relativamente aos preços, o que, em alguns casos, não está a acontecer.

O Diligente foi ao mercado de Taibessi, em Díli, para verificar a existência de um alegado esquema de burla nas bancas de venda de carne. De acordo com informações de algumas fontes que costumam comprar no local, os vendedores estariam a inflacionar os preços através de manipulação na pesagem, o que se confirmou no local.

Escolhida uma banca, aleatoriamente, foi pedido um quilograma de carne: “Cinco dólares por quilo, mana”, disse o vendedor. Quando o ponteiro da balança apontou para um quilo, impôs-se a pergunta: “É mesmo um quilograma?”. Perante esta questão e ao aperceber-se de que a dúvida poderia trazer alguma desconfiança, o vendedor apressou-se a subir o preço, ao mesmo tempo que respondeu: “Um ‘verdadeiro’ quilograma de carne custa oito dólares”.

Para confirmar qual a quantidade de carne que ainda seria necessária para chegar ao quilograma, aceitou-se o preço indicado pelo vendedor, apesar da subida repentina de mais três dólares. O vendedor foi, então, colocando mais carne em cima da balança até os ponteiros apontarem para os dois quilogramas.

Questionado sobre a indicação de dois quilogramas na balança quando tinha sido pedido apenas um,  o vendedor confessou: “Dois são um”. Numa outra balança, confirmou-se, posteriormente, que era, de facto, um quilograma de carne e não dois, como apontava o equipamento do mercado de Taibessi.

A história foi outra com Cristiano (nome fictício), 38 anos. A tia pediu-lhe que comprasse 10 quilogramas de carne para uma festa. Para aceder ao pedido, aceder deslocou-se numa quinta-feira de manhã ao mercado de Taibessi e, perante o preço que o vendedor lhe apresentou – sete dólares por quilograma – e que considerou baixo, decidiu comprar 11, pelos quais pagou 77 dólares americanos. O vendedor fez Cristiano acreditar que lhe estaria a oferecer um quilo, já que na balança o peso apresentado foi de 12 quilos.

Dinheiro para o lado de lá, carne para o lado de cá, voltou para casa, ainda que apreensivo, porque regressou também a intuição de que o saco de carne estava demasiado leve para 12 quilos. Quando entregou o saco de carne à tia, pouco antes de voltar diretamente para o seu trabalho em Hera, também ela suspeitou do peso e pôs a carne na balança de casa para confirmar.  E confirmaram-se as suspeitas de ambos. A tia verificou que se tratavam, na verdade, de pouco mais de cinco quilos, muito longe dos 11 pelos quais pagou.

“Optei por denunciar o caso aos media para tentar que mais pessoas tomem conhecimento do que está a acontecer e, eventualmente, os vendedores deixem de o fazer”

Uma vez que o sobrinho se tinha apressado a regressar ao trabalho, não foi possível, nesse mesmo dia, voltar ao mercado para devolver a carne, como era intenção da tia. Assim, foi obrigada a pedir ao genro para comprar mais carne para a festa. O familiar dirigiu-se, desta feita, ao mercado de Comoro, onde comprou exatamente cinco quilogramas de carne por 40 dólares americanos, praticamente metade dos 77 dólares que Cristiano tinha pago pelos mesmo cinco quilos de peso real no mercado de Taibessi.

Questionado sobre a razão pela qual não fez queixa à Autoridade da Inspeção e Fiscalização da Atividade Económica, Sanitária e Alimentar (AIFAESA), Cristiano disse não querer “levantar questões, porque talvez o vendedor precisasse do dinheiro”. Ainda assim, não deixa de se preocupar com outras possíveis vítimas deste género de burla. “Sinto-me muito triste, porque, se o engano acontecer a pessoas com maiores dificuldades financeiras, é mesmo lamentável”, sublinha.

Por outro lado, a tia queria apresentar queixa. Porém, tendo em conta que o sobrinho não quis identificar o vendedor que o “enganou”, acabou por não o fazer. “Optei por denunciar o caso aos media para tentar que mais pessoas tomem conhecimento do que está a acontecer e, eventualmente, os vendedores deixem de o fazer”.

Lei garante direito dos consumidores a informação verdadeira

A lei 8/2016 prevê o direito dos consumidores ao acesso a informação verdadeira, proteção económica e de saúde, entre outros. Já o decreto-lei 29/2011 aborda a questão da especulação de preços.

“No caso de os comerciantes de carne dizerem aos compradores que uma determinada quantidade é um quilograma, quando, na verdade, não é, estão a violar a lei de proteção dos consumidores, nomeadamente o direito a informação verdadeira”, explicou o presidente da Associação Tane Consumidor (ATC), António Ramos da Silva. Sempre que fazem manipulação dos preços, estão a violar também o decreto-lei sobre o preço justo, avançou.

De acordo com o mesmo responsável, o caso descrito pelo Diligente é o primeiro que chega ao conhecimento da TANE. Reconhece, no entanto, que já aconteceram outras situações semelhantes aquando da distribuição da cesta básica. “O problema no mercado de carne em Taibessi, que ficámos a conhecer através desta investigação, serve para a TANE poder agora atuar em conformidade”.

A TANE faz, a cada trimestre, uma pesquisa sobre os preços dos bens no mercado. No primeiro trimestre deste ano, excluiu a avaliação dos preços da carne, porque “muitas lojas não estavam nessa altura a comercializar o produto, não sendo por isso possível fazer uma comparação”.

Vítimas devem apresentar queixa

O chefe do Departamento de Proteção do Consumidor do Ministério do Turismo, Comércio e Indústria (MTCI), Hipólito da Costa, mostrou-se indignado com o facto de as vítimas não fazerem queixa desta situação. “Ainda não há queixas sobre casos destes nem tenho nenhuma informação. Esta situação mostra que a informação prestada aos consumidores precisa de ser mais frequente para os clientes conhecerem os seus direitos e saberem como apresentar queixa”.

O chefe de departamento enfatizou que os consumidores que se sentem prejudicados devem fazer uma reclamação, por escrito, para que o MTCI se possa coordenar com a AIFAESA e o Instituto para a Qualidade de Timor-Leste e o caso seja inspecionado.

Na reclamação, o consumidor deve explicar o que aconteceu, quando, onde e como é que aconteceu a alegada manipulação, nomeadamente quantos quilogramas foram comprados e qual o peso que se confirmou após nova pesagem. Hipólito da Costa recomenda que a queixa seja enviada diretamente à AIFAESA, porque “tem mais recursos humanos e equipamentos para levar a cabo a inspeção”.

Para o responsável, a manipulação de peso está intimamente relacionada com a inflação do preço da carne . “O custo também pode ser influenciado por questões de logística e transporte, preparação da carne e número de trabalhadores a quem têm de ser pagos salários”, explicou.

“Temos poucos funcionários no terreno, o que faz com que os vendedores já conheçam os nossos inspetores e saibam quando estes saem da sede”

A Direção de Metodologia e Padronização da AIFAESA, que controla e assegura a quantidade e pesagem de carne e de outros produtos mensuráveis, faz inspeção diária das balanças que os vendedores usam no mercados.

O inspetor-geral da AIFAESA, Ernesto Monteiro assume, no entanto, a ““pouca eficiência” do trabalho da autoridade de inspeção, justificando-a com “o reduzido número de funcionários e poucas horas de trabalho”, o que leva a que seja “impossível chegar a todos os locais que é preciso inspecionar” apenas num dia. “Temos poucos funcionários no terreno, o que faz com que os vendedores já conheçam os nossos inspetores e saibam, inclusivamente, quando estes saem da sede. A informação espalha-se rapidamente por todos os comerciantes, que ficam assim alerta para a possibilidade de haver uma inspeção”, lamentou.

Além deste programa de inspeção, a AIFAESA também atua no seguimento de queixas apresentadas pelos consumidores, que o podem fazer sempre que considerarem estar em causa os seus direitos. “As queixas devem incluir factos para que possamos processar legalmente os praticantes da suposta infração. A sanção pode ir de três até 20 mil dólares”, informou.

O inspetor-geral considera  que os vendedores devem ser capazes de responder à capacidade de compra dos consumidores e, se necessário, vender em parcelas e quantidades mais pequenas, mas de uma forma justa. “Se o consumidor quer uma quantidade de carne que custa cinco dólares, deverá receber, à partida meio quilograma, de acordo com os preços de mercado. Não é justo quando o cliente paga cinco dólares, o vendedor só fornece 200 gramas e ainda diz que se trata de meio quilograma”.

O que argumentam os vendedores

Miguel Soares, 54 anos, vendedor de carne no mercado de Taibessi, defende que os clientes “obrigam” os comerciantes a vender mais barato e é, por isso, que diminui também a quantidade de carne: “Se os compradores pedem cinco dólares de carne, damos 500 gramas, porque um quilo vale nove dólares”, explicou.

“Os compradores não veem os quilos, veem o preço. Então, dizemos o valor que eles pretendem. Mas, depois, damos a quantidade que se adequa a esse valor”

Conta que alguns compradores estão conscientes da possibilidade de serem enganados na hora de pesar a carne e, por isso, pedem para que o peso seja exatamente de um quilograma de carne, pelo qual aceitam pagar os nove dólares. “Os que querem pagar menos recebem o peso que corresponde ao valor que estão dispostos a despender”. Explicou ainda que, quando os clientes não têm dinheiro para pagar um quilograma, “tiramos cerca de 250 gramas e cobramos sete dólares”.

Questionado sobre se os vendedores usam balanças que não estão calibradas, confessou que “existem” equipamentos nessas condições, mas negou que sejam utilizados. Sobre a suspeita de os comerciantes prestarem informações falsas relativas aos preços efetivos dos produtos comercializados, Soares alega que há clientes que não comprariam, caso os vendedores dissessem que o verdadeiro valor a pagar por um quilograma é de oito ou nove dólares. “Os compradores não veem os quilos, veem o preço. Então dizemos o valor que eles pretendem. Mas depois, damos a quantidade que se adequa a esse valor.”

Confrontado com o caso de Cristiano, o vendedor explica que “se acontecer mesmo isso, a pessoa deve voltar para se voltar a pesar e dar o verdadeiro peso ao verdadeiro preço”.

Afonso Pinto, 45 anos, de Quelicai, vendedor de carne no mercado de Comoro, concorda com Miguel Soares sobre os efeitos das “exigências dos clientes”.

“Com os ajustes que precisamos de fazer no peso para corresponder às possibilidades dos clientes, estes não vão perceber se lhes tentarmos explicar que diminuímos a quantidade de carne para podemos baixar o preço”, diz o comerciante de Quelicai.

Relativamente à calibração das balanças, conta que “os funcionários da AFAESA não fazem esse controlo e, às vezes, só aparecem na véspera do Natal!”.

Além disso, “as vacas estão cada vez mais caras. Com 10 mil dólares, não se consegue comprar dez vacas”. Tendo em conta o aumento do preço dos animais, o vendedor defende que “o preço justo devia ser 10 ou até 15 dólares por quilograma, mas, se fosse assim, os clientes não iam conseguir comprar”.

Por outro lado, atribui responsabilidades ao Governo pela quantidade elevada de carne que o país importa e que considera “prejudicar a venda local”. Acrescenta ainda que, muitas vezes, os supermercados “não aceitam comercializar carne que não seja importada”.

O facto de Timor-Leste ter muitos animais e terrenos para criar gado leva Afonso Pinto a defender um investimento urgente na pecuária para que se consiga aumentar a qualidade da carne criada localmente e abandonar a dependência do comércio estrangeiro. “Só assim é que os supermercados e restaurantes vão aceitar o nosso produto, porque, da forma como estes animais são criados atualmente, os empresários da restauração acham que não cumprem os critérios de qualidade”.

O vendedor de carne realça que já teve muitos encontros com as autoridades para pedir ajuda na concretização do seu plano de criação de gado. Porém, “não tive ainda resposta positiva do Governo, que alega falta de orçamento”.

O comerciante lamenta também o facto de os governantes optarem por comprar nas lojas em vez de se esforçarem para melhorar os mercados locais, tornando-os uma opção para as suas próprias compras.  Mostra-se desanimado pelo facto de haver poucos clientes, já que “muitos, continuam a preferir comprar carne importada”, o que leva também “a um maior desperdício de carne nos mercados”.

De acordo com os vendedores, as carnes que estão à venda no mercado de Taibessi e de Comoro são fornecidas, maioritariamente, pelos municípios de Same, Lospalos e Viqueque, que, para Afonso Soares, são os locais onde “se produz melhor carne”.

Um cliente pode conseguir um quilograma de carne em Taibessi por  oito dólares, quando a procura é escassa. Quando há muitos clientes ou, nos casos em que os distribuidores vendem a um preço mais alto, o valor sobe para os nove dólares. Acontece que os preços praticados não correspondem muitas vezes ao peso real.

Pelo contrário, no mercado de Comoro, os clientes podem encontrar bancas a vender um quilo ‘verdadeiro’ por um preço idêntico ao praticado no mercado de Taibessi.

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