Dois anos depois das cheias, 23 famílias continuam sem casa

Registo das forças de segurança de Timor-Leste da inundação de 4 de abril de 2021 (Foto: Reprodução/Twitter/UN Timor-Leste)

Vítimas das inundações de 4 de abril de 2021 aglomeram-se em residências temporárias arrendadas pelo Governo, que prometeu construir 4 mil casas até ao fim de 2022 para os desalojados e moradores em áreas de risco.

Na madrugada de 4 de abril de 2021, domingo de páscoa, Timor-Leste acordou com chuva torrencial, que não parou durante três dias. Como resultado, Díli e outros municípios acumularam rastos de destruição e vítimas: 44 mortos, 4 desaparecidos e aproximadamente 10 mil desabrigados. Dois anos após o incidente, 23 famílias continuam desalojadas, de acordo com o Ministério da Administração Estatal (MAE).

São pessoas que, na sua maioria, residiam em locais próximos de ribeiras, áreas classificadas como sendo de risco. Quase todos os chefes de família que moravam nestas construções, ao serem questionados, alegam que sabiam dos perigos.

Porém, perante as dificuldades em financiar uma habitação num local mais seguro, dizem que não havia muita escolha: ou se sujeitavam a morar numa região sem muita segurança ou voltavam para os municípios, onde as oportunidades de trabalho são ainda mais escassas.

A inundação e o esforço para salvar a família

Em Hera, suco de Díli, momentos antes da tragédia, numa moradia de tijolos e madeira, Carlota Freitas e a família estavam a dormir. Acordaram, sobressaltados, às 2h da madrugada, por causa do barulho dos vizinhos. Saíram de casa e viram que a água da ribeira, situada nas proximidades, chegava até à varanda. Acharam que se tratava de uma cheia habitual após a chuva e decidiram voltar para a cama.

 

Carlota Freitas, 34 anos, mãe de três filhos, quase foi arrastada pela corrente com o filho mais novo/Foto: Diligente

Alguns vizinhos, soube-se depois, já se deslocavam para outros lugares mais seguros. A luz da residência da Carlota apagou-se e, quase imediatamente, uma árvore de aproximadamente quatro metros caiu sobre a cozinha, acordando todos. Com a ajuda do marido, a mulher foi buscar os filhos para sair de casa. Naquele momento, a torrente já chegava aos joelhos e era forte o suficiente para arrastar objetos e pessoas.

Carlota, de 34 anos, mãe de três filhos, o mais novo com 5 anos. Os minutos passavam e cada vez mais água entrava na sua residência. Uma vizinha chamou-os para subir para o telhado da sua casa, por ser mais alta. Sem pensar muito, Carlota subiu com os três filhos, enquanto o marido tentava salvar o que conseguia dos pertences. A seguir, também foi para o telhado.

Já quase a amanhecer, o nível da água aumentou e já ultrapassava o tórax. Muitas pessoas tiveram de subir a árvores para se salvarem.

A cerca de dez metros de onde Carlota e a família estavam com a vizinha, havia uma outra residência com mais estrutura, de dois pisos, pertencente a um polícia. Carlota pediu-lhe ajuda. O marido viu uma corda que costumavam usar para pendurar roupa, desatou-a, amarrou-a a uma extremidade de um coqueiro próximo e lançou a outra ponta para o polícia a prender no poste da casa. Desceram do telhado e foram enfrentar a inundação: com a ajuda da corda, caminharam pela enxurrada.

Os filhos mais velhos conseguiram chegar a casa do polícia. Quando chegou a vez da mulher e do filho mais novo, a corrente tornou-se mais forte. O marido não os deixou passar, com medo que fossem levados pela água. Esperaram até acalmar e depois passaram os três. No meio da travessia, escorregaram na lama, mas reergueram-se e conseguiram chegar a casa do agente policial.

Quando o nível da água baixou, foi possível identificar os estragos provocados pela chuva: parecia que um tsunami feroz tinha passado pelas casas, destruindo-as.
Em Hera, morreram três pessoas arrastadas pela enchente: um bebé de um ano, além de uma mulher e o seu filho.

Na casa do polícia, onde também estavam outras pessoas abrigadas, grande parte delas rezava, pedindo a Deus que a moradia não fosse atingida por árvores ou destruída pela força das águas. Naquele dia, a residência e todos os que lá estavam ficaram a salvo.

Depois da tempestade, os problemas

Doze horas depois do início do forte temporal, a chuva abrandou. Em Hera, as famílias conseguiram deslocar-se até à igreja e à residência dos padres. Não levaram nada, apenas a roupa do corpo. Os padres receberam-nos e deram-lhes roupa, comida e tendas. Dias depois, líderes e Organizações Não Governamentais (ONGs) ajudaram com mais bens de primeira necessidade.

“Os padres e os seus familiares foram os que nos ajudaram mais. O Governo levou arroz MTCI (marca do Governo) e supermi (tipo de massa). O avô Nana (Xanana Gusmão) levou obralan (roupas usadas) e cada família escolheu dez peças. Porém, a maior ajuda foi dos amigos e dos familiares dos padres”, contou Carlota. Ela e a sua família, tal como outros 22 grupos, ficaram na residência dos padres durante três meses.

Para tentar minimizar o problema, a Secretaria de Estado de Proteção Civil procedeu ao registo das pessoas interessadas em receber materiais de construção e dinheiro. A iniciativa, porém, ainda hoje não contempla muitos cidadãos que perderam as suas residências na tragédia. Como é o caso de Augusto Guterres.

O homem, pai de dois filhos, vivia em Hera e viu a sua casa desmoronar-se pela força da água. Chegou a morar numa tenda com as crianças, antes de se mudar para casa dos pais. Inscreveu-se para receber o apoio da Secretaria, mas não recebeu nada até hoje.

Da última vez que tentou saber da sua situação, foi encaminhado para o Ministério da Solidariedade Social, que, por sua vez, o enviou para o MAE, onde nada foi resolvido. Augusto diz que se sente numa “encruzilhada de burocracias” e “não sabe mais o que fazer” para receber o apoio a que tem direito.

Questionada, a Secretaria de Estado da Proteção Civil não aceitou dar informações sobre o assunto. Por sua vez, o Diretor-Geral da Descentralização Administrativa, Belarmino Neves, limitou-se a dizer que “tal impedimento podia acontecer”, mas estava confiante de que todos receberiam ajuda.

Deslocações e promessas

Em julho de 2021, o Governo resolveu deslocar os desabrigados que se encontravam na residência dos padres para a capela de Hera, onde passaram a viver em tendas. As condições pioraram. Além da falta de água e de alimentos, a capela fica perto da estrada, o que trouxe um novo problema: pó. As pessoas dormiam e comiam no meio do pó. Se houvesse água no poço, lavavam a estrada para diminuir os efeitos das partículas de poeira.

Para isso, tinham de ir buscar água à residência dos militares, porque o reservatório de que dispunham esgotava-se em dois dias. Ao ver a situação dos desalojados, o Governo transferiu as 33 famílias para residências temporárias. Numa dessas habitações, vivem 23 famílias. É lá que Carlota e os seus filhos ainda moram. A mulher trabalha numa loja em Bidau, em Díli, e o marido é agricultor.

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Casa arrendada, temporariamente, pelo Governo, onde 23 famílias desabrigadas vivem: 7 pessoas dividem um quarto/Foto: Diligente

No edifício, sete pessoas dormem num quarto de dois por três metros. Todos os dias, vão buscar água ao poço ou à residência dos militares. Muitas pessoas, desempregadas, cultivam e vendem vegetais nas redondezas para terem dinheiro para se alimentarem.

Outras 10 famílias, que estavam alojadas numa escola, em Hera, regressaram aos locais onde viviam aquando da grande inundação. Essas pessoas reconstruíram as casas com os materiais doados pelo Governo, que orientou os cidadãos para não voltarem aos lugares de risco onde moravam.

Após as cheias de 4 de abril de 2021, o Governo começou a trabalhar num plano de realojamento, com o objetivo de criar um centro multifunções em Hera, onde as vítimas de catástrofes naturais seriam acolhidas temporariamente. De acordo com o MAE, o projeto deve custar 7 milhões de dólares americanos e prevê a construção de 162 apartamentos, um refeitório para 300 pessoas e uma unidade médica. Até ao momento, não há uma previsão para o início da obra.

Antes disso, porém, o Governo pretendia, até ao fim de 2022, construir quatro mil casas, tanto para os desalojados devido às cheias, como para outras famílias que moram em áreas de risco. No entanto, o projeto ainda não começou.

O Diretor-Geral da Descentralização Administrativa, Belarmino Neves, afirmou, no ano passado, que o atraso se devia “à dificuldade em encontrar um terreno”. Recentemente, porém, a autoridade contradisse-se, quando informou o Diligente de que, em 2022, a ideia não era concluir a construção, mas sim “terminar de traçar o plano”. Neves contou que as moradias, tal como o centro multifunções, devem começar a ser construídos este ano.

O titular do Ministério das Obras Públicas, Abel Pires da Silva, atribuiu a lentidão do processo ao facto de o projeto, uma Parceria Público-Privada (PPP), envolver muitas partes, como o Governo, a Corporação Financeira Internacional (IFC, em inglês) e um membro do Banco Mundial, e por também ser necessário realizar um estudo dos impactos sociais e ambientais.

Enquanto isso, os desabrigados continuam a residir no prédio arrendado pelo Governo, em Hera. O contrato de arrendamento foi renovado, em novembro de 2022, e é válido até 15 de novembro deste ano.

Outra medida que o Governo ambiciona realizar, com o objetivo de reduzir o número de pessoas a viver em lugares inadequados, é implementar uma lei de habitação, que ainda vai ser debatida no Parlamento Nacional, para regular as construções. A proposta foi aprovada em Conselho de Ministros, em fevereiro deste ano.

Já o ministro do Plano e Ordenamento, José Maria dos Reis, ressaltou, aquando da calamidade, há dois anos, que “o desastre é um bom acelerador para o plano de ordenamento territorial”, e culpou os “cidadãos teimosos” por não quererem sair das áreas de risco. A criação do referido plano só foi aprovada em Conselho de Ministros, em fevereiro de 2022, dez meses depois das cheias.

Passado um ano da aprovação, a iniciativa ainda se encontra em fase de discussão. Na passada sexta-feira (31/03), o Ministério de Plano e Ordenamento promoveu um encontro, em Tibar, com os chefes de suco, de aldeia e demais representantes de Ataúro, Bobonaro, Ermera, Díli, Liquiçá e Oé-Cusse (RAEOA), para apresentar a proposta, que visa ordenar a utilização do espaço territorial de todo o país.

“O plano inclui prevenção das cheias, porque também regula os locais onde podem ser construídas casas ou grandes edifícios, tendo em conta os riscos de desastres naturais”, argumentou José Maria dos Reis.

A iniciativa, que deverá ser concluída apenas em 2026, segundo o Diretor-Geral Belarmino Neves, consiste ainda em motivar as pessoas a viver nos municípios, através da criação de empregos em órgãos públicos.

Para isso, as autoridades pretendem realizar uma descentralização administrativa, estendendo a estrutura física do Governo para as regiões mais remotas.

O objetivo é que a medida, gradualmente, leve os moradores, de forma espontânea, a deixar as atuais residências em locais vulneráveis.

Enquanto as promessas não se concretizam, aqueles que não têm condições para encontrar uma habitação mais segura vão continuar a morar em áreas de risco, nas montanhas e perto de ribeiras, rezando para que um novo temporal não caia sobre as suas casas e cabeças.

Ver os comentários para o artigo

  1. O papel do jornalista é lembrar os poderes que as promessas feitas ao povo ainda estão por cumprir.
    Bom trabalho.
    Mais um grande esforço vosso para desenvolver uma sociedade mais consciente dos seus direitos, reivindicativa e exigente com os políticos.
    Parabéns.
    Isto é jornalismo.
    Do melhor.

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